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As galinhas do Dr. Aron

No Brasil, o que vemos do grupo de Bolsonaro é que ele não quer paz civil, mesmo que não comece a guerra aberta. A isso, respondem galinhas assustadas.
No Brasil, o que vemos do grupo de Bolsonaro é que ele não quer paz civil, mesmo que não comece a guerra aberta. A isso, respondem galinhas assustadas. – por André Ortega | Revista Opera
Galo de briga em Otavalo, Equador. (Foto: © Superbass / CC-BY-SA-3.0 via Wikimedia Commons)

A publicação do livro “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil” levou a Revista Opera a reafirmar muitos vezes a guerra como origem da política e a política, no limite, como a guerra. Delimitamos isso como parte de nosso argumento, com algum nível de abstração, sem se estender na questão em si. O professor Raymond Aron, no entanto, em seu clássico “Paz e Guerra: Uma Teoria das Relações Internacionais”, discute as origens da violência, da hostilidade e o papel que elas cumprem nas formações sociais. Sem cair em um reducionismo naturalista, mas iniciando e preenchendo sua discussão, Aron fala da hostilidade presente no mundo animal, colocando como referência alguns estudiosos do comportamento de espécie diversas, especialmente em ambientes controlados, como ratos e galinhas.

É claro que o sociólogo prossegue sua discussão falando de psicologia, frustração, reflexões filosóficas sobre a hostilidade, antropologia, confrontos rituais, luta de classes, disputas por recursos e fatores sociais mais básicos. Demonstra de forma categórica que não só a guerra é um fenômeno social (o que é óbvio, por esta ser violência coletiva organizada), como a própria hostilidade humana é mais social do que animal.

Mesmo assim, olhando para o Brasil hoje, não consigo deixar de pensar nas galinhas do Dr. Aron. “Quando duas galinhas se encontram pela primeira vez, quase sempre se enfrentam; uma ganha e a outra perde”, escreve. Elas brigam de novo, mas a que perdeu tende a vacilar mais e se retirar mais cedo da luta. “Depois de algum tempo se estabelece em uma o hábito de ameaçar e na outra o de fugir”, com uma galinha se convertendo em dominante e a outra reduzida ao papel de subordinada.

Aron também se refere a experiências feitas com camundongos, que servem para exemplificar como a conduta combativa é modificada pela experiência individual, sujeita a processos de aprendizado, supressão ou esquecimento. Afinal, um camundongo pode lutar, fugir ou ser passivo, dependendo dos estímulos. A agressividade no ratinho sempre está presente de uma forma ou de outra, mas com determinada orientação pode ser exacerbada ou suprimida. A melhor forma de criar um rato lutador é conceder várias vitórias aparentes no início da sua formação, em dias sucessivos, tirando o rato adversário da jaula – depois, ele começa a se lançar com mais agressividade contra o adversário que resiste. Com os primeiros triunfos fáceis o rato vai se capacitando mais para a luta e se torna um combatente duro. Em situação normal, o camundongo que vence se torna mais confiante na sua agressividade; quando os cientistas criam um grande número de vitórias artificiais, o roedor se torna implacável.

O contrário também acontece: os indivíduos que apanham criam o hábito de fugir ou até mesmo de se submeter sem lutar, apesar de, segundo o famoso geneticista citado por Aron, John Paul Scott, a conduta agressiva ser particularmente difícil de desaparecer; sua supressão é demorada. Não obstante, se normalmente os indivíduos teriam comportamentos variados de luta e fuga, os experimentos poderiam criar ratos super-agressivos ou sua contraparte passiva, resignada. Na natureza, o roedor costuma lutar e resistir quando encurralado.

Entre as galinhas, ocorre uma pacificação pela hierarquia – uma hierarquia da força que é confirmada pela luta e cria uma situação estável, pacificada. Indivíduos humanos não medem suas forças nem organizam seus espaços assim, suas relações de conflito e solidariedade são mais complexas, mas nesse caso é difícil resistir a um outro tipo de instinto, que é o instinto metafórico. A agressividade e violência estão inscritas na história humana não como exceções, mas como parte expressiva de conflitos presentes nas relações sociais. Podemos abstrair do enfrentamento uma dinâmica própria, em que as forças políticas atuam e aprendem.

Tanto quanto de violência e coação, o Estado e a política se constroem através de legitimidade (hegemonia); mas estas duas coisas não são separadas, porque a combatividade, seu ritmo e a correlação de forças estão ligadas às formas de legitimação – resultados de embates históricos e a capacidade ameaçadora de partes da sociedade sedimentam hierarquias, estabelecem os termos de negociação, impõem termos e criam memórias.

Por mais que nossa compreensão seja mais fácil se pensarmos na generalização abstrata do conflito, as unidades políticas não se enfrentam em um terreno abstrato: existe um efeito cumulativo da história e da memória, que acompanha cada conflito em específico. “A razão recomenda que pensemos na paz a despeito do fragor dos combates e que não esqueçamos a guerra quando as armas silenciarem”, diz Aron, observando que guerra e diplomacia são duas formas de um mesmo intercâmbio ativo. Unidades políticas se enfrentam em um tabuleiro criado por confrontos passados. E, diferente dos ratos e galinhas, o ser humano sempre pode se revoltar.

Relações internacionais se dão, a princípio, entre unidades estatais; entretanto, ao reler o Dr. Aron falando da conduta combativa dos animais, não posso deixar de lado a imagem de Bolsonaro como um camundongo que vai se acostumando com vitórias e seu comportamento vai se adequando, se tornando mais agressivo – mesmo que em muitos momentos o comportamento possa lembrar o do roedor selvagem quando encurralado, que faz de tudo para sobreviver.

Mesmo sofrendo acosso e enfrentando a possibilidade muito clara de sua destruição, duvidando da lealdade de ministros e sabendo que não pode contar com a fidelidade dos políticos do Congresso, Bolsonaro ainda assim se move e faz suas apostas. Chegamos ao ponto em que, em uma troca de farpas com um ministro do STF (Celso de Mello), o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, escreve uma carta ameaçadora falando de instabilidade e “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Essa declaração foi secundada por uma turma de formandos da AMAN de 1973, que evocou a possibilidade de “guerra civil”. Em seguida, até o domingo do primeiro dia de junho, outras sete turmas de formandos da AMAN, pelo menos, enviaram notas de apoio ao posicionamento do general Heleno, mais uma nota do Clube Naval (incluindo oficiais da ativa e da reserva), e ainda outra carta de apoio, com duas mil assinaturas de oficiais formados no CPOR e NPOR – algumas das notas também fizeram suas “análises de conjuntura nacional”. Todo o discurso de Augusto Heleno era marcado, de forma consistente, por uma defesa do equilíbrio dos poderes e “contra a intervenção de um poder sobre o outro”.

O general Paulo Chagas, que gosta de fazer declarações, se posicionou sozinho e disse que guerra civil é uma possibilidade no último dos casos – ele, que sempre foi visto como mais “bolsonarista”, atualmente moderou seu tom pró presidente em nome de sua fidelidade maior, que é dirigida ao Exército.

No domingo que abriu o mês de junho, a discussão sobre guerra civil ou golpe de estado se intensificou. Uma mensagem privada do ministro do STF, Celso de Mello, dirigida aos seus colegas de suprema corte, comparou o momento atual com os últimos momentos da República de Weimar. Dizia abertamente que a democracia está em perigo e um golpe militar é um risco. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, grupos “em defesa da democracia” foram às ruas, o que ampliou as ansiedades.

Na segunda semana de junho, veio o segundo round da pancadaria em forma de pronunciamentos. O ministro do STF, Luiz Fux, deu uma decisão liminar no dia 12 de junho, um tanto extraordinária, que interpreta a Constituição no sentido de interditar uma “eventual intervenção militar”, declarando que não cabe à chefia das Forças Armadas interpretar a Constituição ou cumprir papel de “poder moderador”. Por mais que isso possa soar uma tautologia e sirva de base para piadas no estilo “agora o golpe foi proibido”, não deixa de ser um marco importante para mostrar em que pé estamos e, quanto à decisão em si, uma letra que serve nas disputas de legitimidade e pode ganhar força a partir de movimentações na arena política. Afinal, os próprios generais estavam frequentando o STF e sondando a legalidade de uma “intervenção constitucional”. Claro que, sendo uma decisão provisória (liminar), nada impede que no futuro o próprio STF mude sua interpretação, provavelmente movidos por argumentos mais convincentes da ultima ratio militar. 

Leia também – Palavras e golpes

No mesmo dia, no que foi considerado uma ameaça, o general Ramos, responsável pela articulação do governo com o Congresso, disse à Revista Veja: “Fui instrutor da academia por vários anos e vi várias turmas se formar lá, que me conhecem e eu os conheço até hoje. Esses ex-cadetes atualmente estão comandando unidades no Exército. Ou seja, eles têm tropas nas mãos. Para eles, é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”.

Não é tão difícil desconstruir a declaração para entender o porquê dela ter sido considerada uma ameaça. Afinal, ele alerta; “não estica a corda”, o que deixa o golpe como alternativa, como ameaça. Muitos se concentraram nesse aviso central, mas também é notável que ele faça questão de dizer que quem se sente ultrajado e ofendido não é ele precisamente, mas seus alunos da academia, que “atualmente estão comandando unidades no Exército”, “têm tropas nas mãos”. Ainda acrescenta que “o próprio presidente nunca pregou o golpe”, o que é mentira e acaba por botar a honestidade da sua pretensão apaziguadora em questão – aliás, o próprio Mourão falou de golpe mais de uma vez, sendo que enquanto candidato falou na GloboNews da possibilidade de “autogolpe”, no caso de “anomia” .

Ora, talvez Ramos se sinta honesto por não considerar suas ideias de intervenção “golpistas” de forma alguma, exatamente como fez Mourão quando falou de autogolpe na GloboNews. É importante ressaltar o que o vice-presidente falou lá atrás: “E eu, em nenhum momento, preguei golpe militar. É uma questão de, quando você olha a missão constitucional das Forças, tem uma missão que eu considero, que ela é uma coisa, como é que interpretar isso, que é a tal da garantia dos poderes constitucionais. Como é que a gente garante os poderes constitucionais? Mantendo a estabilidade? E, se um Poder não consegue mais cumprir a sua finalidade, o que nós fazemos?”

Na entrevista, Mourão expõe a mentalidade de que não se trataria de um golpe se o movimento ocorresse em uma situação de anarquia, na qual os poderes constitucionais não são garantidos por iniciativa de nenhum poder, que retira a prerrogativa de interpretação do STF, deixando-a na mão dos militares. Antes, ele e outros generais sempre enfatizaram que as Forças Armadas “sempre defenderam a democracia e a liberdade”, e dentro da instituição o golpe de 1964 é tratado de forma positiva, ou como uma revolução ou como um contra-golpe (divergência que aqui não faz diferença). A tônica do intervencionismo é, sempre, a de preservação. Em entrevista concedida em maio ao Valor Econômico, Mourão disse que “enquanto as atribuições dos Poderes estiverem sendo respeitadas, as decisões das autoridades acatadas e a disciplina das Forças Armadas mantida, não há qualquer ameaça ao Estado de Direito Democrático”. Mas e se julgarem que as atribuições estão sendo desrespeitadas?

Recorrendo ao que vem sendo dito nos últimos meses e anos, as declarações que chocam agora, em junho de 2020, deixam de ser tão impressionantes.

Bolsonaro, Mourão e o general Fernando Azevedo (Ministério da Defesa), por sua vez, engrossaram a posição do general Ramos e assinaram uma nota respondendo à liminar de Fux dizendo que as Forças Armadas “não cumprem ordens absurdas” e “não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”, sugerindo que o supremo tribunal é golpista para depois dizer que “na liminar de hoje, o Sr. Min. Luiz Fux, do STF, bem reconhece o papel e a história das FFAA [sic] sempre ao lado da Democracia e da Liberdade”, em um tom de aprovação disciplinadora.

O discurso está perfeitamente alinhado em torno de um suposto “equilíbrio entre os poderes”: desde a carta de Heleno e seus agradecimentos a apoiadores militares, passando pelas declarações de Mourão até chegar nesta última nota, em que o sujeito locutor é mais as Forças Armadas do que a Presidência da República. É um discurso legalista ou pseudo-legalista. É de se notar que a ameaça cabe tanto ao STF como ao Tribunal Superior Eleitoral, referindo-se a “julgamentos políticos” – o TSE tem nas mãos processos que podem cassar a chapa Bolsonaro-Mourão.

Não podemos subestimar o amor desses generais às chicanas. O caminho predileto, nesse momento, parece ser se agarrar à legitimidade do poder Executivo até mesmo para uma intervenção, que serviria para “garantir” este poder. No jogo entre força e legitimidade, não querem botar todo o seu projeto de poder a perder resolvendo o problema com uma simples ocupação militar.

Para alguns, como a maior parte da história do Brasil é marcada por composição e não por ruptura, apostam rapidamente em algum tipo de normalização. O problema é que estão despreparados para a ruptura. Essa visão corre o risco de ser uma tautologia estatística: um índice maior de momentos de composição não significa que não vamos ver uma ruptura e cria uma falsa segurança, já que dispensa a explicação do fenômeno de ruptura – é deixar o problema de lado. Se apegar a essas coisas é estar despreparado para a anomalia.

E se houver composição, que ela terá como base? No dia 31 de maio, Mourão disse em seu Twitter que são as Forças Armadas que hoje “mantêm a estabilidade institucional do País”. Não uma maioria parlamentar, mas o Exército. A ideia de “Carta no Coturno” é importante por não se restringir à realização de um golpe, mas falar da presença dos militares na política e da ameaça de golpe exercendo um peso próprio. O partido fardado vira um ator central na formação de composições, como já foi em 2019, conforme o presidente do STF, Dias Toffoli, descreveu em entrevista para a Revista Veja.

Dentro desse jogo perigoso, Bolsonaro não vai parar agora. Vai continuar atacando e, mesmo quando não consegue bater com força, tenta bater para derrubar. A imagem de uma guerra civil é colocada no horizonte político brasileiro desde 2015 e foi reforçada com a eleição de Bolsonaro, sendo objeto da pregação do núcleo de radicais de seu governo.

Contra isso, surgem algumas respostas inseguras, mesmo que barulhentas, geralmente apelando para união – alguns não se preocupam tanto e, tapando um pouco os ouvidos, dizem que essas escaramuças públicas são apenas um espetáculo que ocorre enquanto “as instituições funcionam normalmente” (frase que vem sendo repetida por Mourão e alguns de seus colegas, também).

Unidade se forja na política, não com intenções difusas, rarefeitas; discussões genéricas sobre qual tragédia histórica queremos eleger para encenar como farsa, sem fazer o devido aprofundamento e criando clichês moralistas – 1922, 1933, 1964, 1984. Bolsonaro está disciplinando sua própria frente, a ferro e fogo. Ter certas posições definidas e até irredutíveis não significa não falar com os claudicantes, centristas e oportunistas, mas é a partir da posição que se oferece algo para eles – não se pauta por eles.

Na esquerda se fala de frente unida, de fascismo e até de nazismo, enquanto essa unidade se traduz em poucas coisas e no Congresso supostos amigos negociam com o governo. Isso cria uma situação neurótica: precisamos dos amigos “democratas” pois Bolsonaro gostaria de ser um ditador e porque o triunfo do nazismo nos ensinou na década de 30 a importância da frente ampla, mas os “democratas” são tão entusiasmados com a democracia que compõem negociações normais com o governo supostamente nazista. O mesmo se aplica ao STF, onde já se fazem comparações com nazismo e fala-se de golpe militar: se o problema não é hipocrisia, então é fraqueza.

A ofensiva é a política que mais tende a alterar a correlação de forças. Impor-se é uma forma de convencer e a grande ironia é que muitos que falam de “convencimento” a partir de figurões liberais na verdade estão legitimando uma imposição.

Se há de haver alguma união contra Bolsonaro, é preciso no mínimo identificar a realidade de conflito, mas a oposição frequentemente reluta e prefere falar em “proteger a democracia” em termos abstratos, querendo disciplinar o presidente em prol do “jogo democrático” e deixando a iniciativa para Bolsonaro.

Alguns estão preocupados em contar números e procuram estatísticas antes mesmo de se posicionar de maneira firme. “Não temos números suficientes”, disse um, ao que outro respondeu que “somos 70%”, apesar desse 70% não ser quase nada – maioria amorfa formada a partir de um cálculo forçado. Um tipo de arremedo de democrata que confunde sua opinião com ondas da opinião pública.

É compreensível quando esse tipo de reorganização utilitária das prioridades – a tal da maximização da utilidade, o cálculo econômico – ocorre com um objetivo claro em mente, como “vencer eleições”, o que por si só pode levar à degeneração moral, a concepções egoístas da vida. Mas quando essa mesma postura vem de considerações confusas de atender a um “público” desconhecido, sem nenhum cuidado programático, quando valores são entregues de graça, por desespero, é difícil entender – nos parecemos menos com humanos, mais com galinhas, seja das assustadas, seja das agressivas. 

Na esquerda em particular, a atitude reativa parece muito forte. Aterrorizados, desesperados, colocam esperanças na última novidade espetacular: o comunicador Felipe Neto se posicionar contra Bolsonaro vira renovação e esperança, ou logo no primeiro dia surgem grandes ilusões com o novo pacote de manifestações, como se tivesse ocorrido uma mudança radical e a esquerda tivesse renascido.

Em nome de frentes que não existem, de figurões midiáticos que atraem publicidade ou atos performáticos, surgem os pregadores do pseudo-realismo. A tese marxista sobre a filosofia “transformar, ao invés de interpretar”, está servindo – de forma pervertida – para evitar a interpretação enquanto não se transforma nada.

A esquerda está repleta desses guardiões, prontos para policiar o debate e até mesmo de usar a máxima-clichê de que “não é hora de criticar”. Este desespero lembra o da galinha que se submete cansada de apanhar, mas com um componente demasiado humano para dizermos que é igual ao comportamento do pobre galináceo: a adaptação é ideológica, discursiva, e pode ser um ponto de virada na formatação de um campo político.

Até agora, a mistificação prática da “frente democrática” é acompanhada pela mistificação de interpretações errôneas, como a narrativa romântica em que Bolsonaro se explica como subproduto de uma “internacional fascista” ligada a Steve Bannon, ou a explicação ideológica dos liberais sobre a ascensão do populismo explicando “como as democracias morrem”. O que as mistificações normalmente têm em comum é o fato de ignorarem ou subestimarem o fator militar nos últimos anos, reduzindo-o agora a algo subordinado ao fenômeno bolsonarista. Assim, mesmo quando se fala do impeachment de Jair Bolsonaro, é impossível não pensar no dia depois disso e no posicionamento dos militares na política brasileira – por isso, o problema está um pouco além da psicologia coletiva, das ideias da moda ou índices de aprovação por legendas partidárias.

Pelo menos com essa visão estratégica, é possível ser mais assertivo e não se colocar sob o cabresto do cretinismo democrático que marca o discurso da “oposição de elite” (na mídia e no parlamento), como se o problema fosse simplesmente a “falta de postura” de Bolsonaro.

As ameaças de Bolsonaro – e dos militares – devem ser levadas a sério, entendidas à letra. A partir daí, essas ameaças ajudam a pensar no terreno político delimitando quem são os aliados, com algo mais sólido do que afinidades rarefeitas e quase inexistentes.

Raymond Aron foi um leitor de Clausewitz, o general prussiano autor da definição de guerra como “a continuação da política com outros meios”. Quer dizer, a guerra não é só a política que se transforma em outros meios, uma outra forma de política, mas uma continuidade do político. É por isso que depois Carl Schmitt usaria esta definição da guerra para discutir “O Conceito do Político” (nome da obra), já que é possível fazer o caminho inverso da guerra até a política: a guerra só é a culminação máxima, extrema, dos antagonismos que estão no fundamento da política. A inimizade, a dualidade amigo/inimigo, vêm à tona quando as dinâmicas de poder são perturbadas e os ataques estão no nível de coletividades, acima do nível de cidadãos privados. Ainda que os nossos democratas questionem o uso dessa dualidade na política interna, ela é bastante consequente quando se coloca a guerra civil no horizonte, uma ruptura aberta com o potencial de um conjunto de valores em comum.

Como explica Aron, quando forças distintas se julgam em uma hostilidade mortal, o regime político e social é abalado; não é possível redigir uma lei que impeça um partido ou sindicato de sabotar o regime, eles devem abster do conflito aderindo à cooperação que precede a competição subjacente. Significa que têm suas relações e sua competição regulada por uma constituição que eles aceitam, e a constituição pressupõe formas para se impor bem como formas de legitimidade e adesão (hegemonia). “Nenhuma sociedade está definitivamente segura contra a explosão em violência aberta, ou mesmo em violência organizada dos conflitos que tolera”, diz Aron. A socialização sequer atenua a agressividade individual e traz consigo bases para a hostilidade coletiva.

Em geral, a ruptura só não ocorre por ter algumas coisas que atuam contra ela. Os grupos geralmente renunciaram à força física por domínio de uma força maior. Não é que faltem inimizades, é que as relações estão sujeitas a certas normas de costumes, consuetudinárias, legais, uma certa consciência de solidariedade que se sobrepõe, ou o medo de perder certos ganhos: seja prebendas, espaços já controlados, o que já foi conquistado, ou simplesmente coisas triviais, pessoais, como a integridade física, a família, a tranquilidade e as riquezas. O mais importante é existir uma força que se impõe irresistivelmente em caso de necessidade. Minorias podem conduzir à ruptura da paz, caso se sintam muito atingidas, sub-representadas, ameaçadas. São esses os princípios da paz civil.

A princípio, um sistema democrático em especial precisaria de valores amplamente reconhecidos e de uma certa virtude republicana. A isto alguns podem divergir apontando que esta é uma concepção antiquada e que o sistema contemporâneo funciona como uma máquina, independente desses valores – mas o que acontece quando a máquina é atacada? Como essa máquina funciona sozinha enquanto os homens se atacam? A cooperação se dá em grande escala através da funcionalidade, de sistemas, de máquinas, mas isso não destrói a dimensão humana do conflito, que muitas vezes está incluído dentro do sistema impessoal na forma de contradições – enquanto técnica, a máquina tem um comando e o comando pode ser capturado. Para todos os efeitos, o problema da paz civil continua.

No Brasil, o que vemos do grupo de Bolsonaro é que ele não quer paz civil, mesmo que não comece a guerra aberta. Quando ameaçam com a possibilidade guerra ou de intervenção militar, estão disputando para ver quem decide em última instância a exceção (sendo soberano de fato) e fazem uma reivindicação de suserania em relação os outros poderes (direito de ordenar de uma posição superior, de impor, desarmar, expropriar; busco aqui denotar domínio pela força).

Talvez já exista uma guerra civil: uma guerra civil de baixa intensidade, ou uma guerra civil fria. O problema é identificar claramente os partidos. Realmente existem dois lados? Mais parece que existe um ataque, uma incursão, em que um grupo de militares joga Bolsonaro à frente, correndo como um animal raivoso, enquanto eles fazem sua progressão efetuando disparos – parece mais uma operação, um golpe, sendo conduzido contra as instituições, forças políticas esparsas e a população em geral. Não deixa de ser uma ação de guerra, é verdade – mesmo que uma ação de “guerra fria” ou, no termo da moda, de “guerra híbrida”. Enquanto eles avançam, o resto reage.

Vivemos entre ratos e galinhas? Se Bolsonaro é um rato e a oposição está repleta de galinhas assustadas, pelo menos podemos respirar mais aliviados sabendo que galinhas devoram ratos – isto é, se não é permitido que eles comam e cresçam o suficiente até virar robustas ratazanas, o que é mais provável quando o animal vive no esgoto. Infelizmente, galinha nenhuma sabe mostrar os dentes, pois não os têm, e às vezes é de dentes que precisamos, como lobos e felinos. 

Não somos nem ratos e nem galinhas para brigar em laboratórios e galinheiros, para brigar por reflexos condicionados – temos a grande obra da cultura para realizar, vidas para seguir, coisas grandes e pequenas com as quais nos importar. Ninguém deve virar um animal de rinhas. Mas tanto quanto nos recusamos a ser animais briguentos, tão pouco devemos alimentar nossa submissão para depois enfeitá-la com a racionalidade de justificativas diversas. Atuação de minorias ativas; mas antes delas, a afirmação mínima da consciência. 

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