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Tanuru, solidão e silêncio

Tanuru nunca soube que se tornou símbolo. Para o mundo exterior, era o “índio do buraco”, o último de sua etnia, observado à distância

Frei Betto
O povo Tanuru foi extinto pelo genocídio praticado pelo latifúndio ao derrubar matas e exterminar indígenas para ampliar seus pastos. Restou apenas um indivíduo. Chamavam-no Tanuru. Faleceu em agosto de 2022, após se enfeitar com um cocar e se deitar em sua rede. (Foto: FUNAI / Reprodução)
O povo Tanuru foi extinto pelo genocídio praticado pelo latifúndio ao derrubar matas e exterminar indígenas para ampliar seus pastos. Restou apenas um indivíduo. Chamavam-no Tanuru. Faleceu em agosto de 2022, após se enfeitar com um cocar e se deitar em sua rede. (Foto: FUNAI / Reprodução)

No mesmo 11 de setembro de 2025 em que o STF condenou Bolsonaro e sua organização criminosa, o ministro Edson Fachin homologou um plano de trabalho para a criação do Parque Nacional Tanuru. Localizado na fronteira de Rondônia com a Bolívia, o território se estende por cerca de oito mil hectares. 

Ali viveu isolado, por 26 anos, o último representante do povo Tanuru, conhecido como “índio do buraco”. Segundo o ministro, a decisão é “uma reparação da histórica violência e vulnerabilização sofrida pelos povos originários do Brasil”. 

O povo Tanuru foi extinto pelo genocídio praticado pelo latifúndio ao derrubar matas e exterminar indígenas para ampliar seus pastos. Restou apenas um indivíduo. Chamavam-no Tanuru. Faleceu em agosto de 2022, após se enfeitar com um cocar e se deitar em sua rede. 

Seu nome ecoa como um sussurro de vento ou como o som do rio que nunca cessa de correr. Tanuru, indígena isolado, solitário, sobrevivente de tempos em que sua gente era numerosa, resistia ao contato. Não lhe restaram irmãos, tampouco aldeia. A floresta inteira era a sua casa e o céu seu teto.

Em sua solidão, havia uma liberdade que poucos conseguem conceber. O que para nós, citadinos, se apresenta como isolamento insuportável, para ele era comunhão com árvores, rios e animais. Cada gesto de Tanuru carregava a memória invisível de sua gente, o último fio de uma tradição que resistia sem precisar de testemunhas.

Tanuru despertava com o nascer do sol. Em seguida, saía em busca do sustento. Suas armadilhas eram engenhosas, fruto de séculos de conhecimento ancestral. Com pequenas varas de madeira, construía cercos simples para capturar pequenos animais. Às vezes, cavava armadilhas no chão da mata. Outras, buscava raízes e frutos. Nenhum alimento lhe era casual; cada escolha revelava um pacto antigo com a terra.

Ao caçar, não o fazia por prazer, mas por necessidade. O animal abatido recebia um gesto de respeito, e a carne era aproveitada com parcimônia. Ao coletar frutos, nunca esgotava uma árvore; deixava o suficiente para que pássaros e outros bichos também tivessem sua parte. Em sua prática silenciosa e solitária, Tanuru ensinava uma ética da partilha, uma ecologia do coração.

Muitos diriam que Tanuru era infeliz por viver sem companhia e rechaçar, com suas flechas, qualquer aproximação de estranhos. Ora, isso seria olhar o mundo com os olhos do preconceito. Para Tanuru, a solidão era um espaço pleno, nunca um vazio. Não precisava de espelhos humanos para confirmar sua existência. Sabia-se vivo porque sentia o vento na pele, ouvia os sussurros da floresta e, a cada noite, contemplava o crepitar do fogo que acendia com paciência para preparar seu alimento.

Havia uma alegria misteriosa no fato de não precisar se explicar. Dançava quando queria espairecer, cantava quando a memória lhe trazia um canto antigo. Sua música não se destinava a ouvidos externos, mas à própria floresta, que o acolhia como mãe. Era uma felicidade que não dependia da aprovação alheia, mas da simples experiência de existir em harmonia.

Indígena isolado não acumula. Não constrói cercas, não mede a vida em posses. Seu tesouro está no conhecimento das plantas, na memória dos caminhos, na leitura atenta dos sinais da chuva e da lua. Tanuru guardava em si o saber de muitas gerações, ainda que fosse o último a pronunciá-lo para ninguém ouvir.

Sua virtude maior talvez fosse a humildade diante do mundo natural. Ele não se colocava acima dos rios ou das árvores; sentia-se parte de um organismo maior, como a folha é também árvore. Essa percepção, rara entre nós, tornava sua vida uma prece constante.

Não se apressava. Esperava a fruta amadurecer, a caça surgir, a noite cobrir o céu de constelações brilhantes. O tempo da floresta não é o tempo dos relógios, mas o da respiração do mundo.

Tanuru nunca soube que se tornou símbolo. Para o mundo exterior, era o “índio do buraco”, o último de sua etnia, observado à distância por indigenistas e documentaristas. Para ele, isso não importava. Não vivia para ser visto. Seu simples existir já era uma forma de resistência, um lembrete de que nem tudo precisa ser incorporado à lógica da sociedade de consumo.

Os misteriosos buracos que seu povo cavava (foram encontrados 1.300), seja para se esconder, seja para caçar ou reverenciar espíritos da selva, é também metáfora de sua vida, um abrigo em meio à imensidão da floresta. Ali, deitado, se recolhia como quem retorna ao ventre da terra. A cada nova escavação, renovava seu pacto com o invisível, com a ancestralidade que o sustentava. 

Tanuru era, paradoxalmente, o mais livre e vulnerável dos homens. Não tinha armas contra o avanço da fronteira agrícola, de motosserras que abrem clareiras e vírus invisíveis que pudessem dizimá-lo. Sua liberdade era absoluta, não dependia de salário, de patrão, nem conheceu o peso das dívidas. Vivia do que a terra lhe dava e retribuía com respeito.

Em sua solidão, Tanuru revelava que a vida pode ser suficiente em si mesma. Não é preciso cercar e acumular para existir com plenitude. Sua felicidade solitária nos interpela. Talvez o que chamamos de progresso seja, em grande parte, perda.

À noite, quando o fogo iluminava sua figura magra, Tanuru conversava com as estrelas. Seus cantos, guardados da memória ancestral, ressoavam como orações. Não havia plateia, nem testemunho humano. Mas a floresta escutava. O vento levava seu canto para longe, como se devolvesse ao universo a voz de um povo extinto.

Esse canto invisível era uma oferenda. Prova de que a humanidade não se define apenas pela multidão, mas também pelo indivíduo capaz de sustentar, sozinho, uma tradição inteira.

Tanuru era a imagem da dignidade indígena levada ao extremo. Não por escolha, mas por destino. Vivia só e, no entanto, alcançava uma forma rara de felicidade, impossível de ser traduzida em nossos termos urbanos. Seu mundo, pequeno em aparência, era vasto em essência.

Quando pensamos nele, talvez sintamos pena. Mas é provável que, ao nos observar, fosse ele quem tivesse pena de nós que vivemos sempre cercados de ruídos, prisioneiros da pressa, incapazes de escutar o simples bater das asas de um pássaro.

Tanuru é a lembrança viva de que a felicidade não está na posse nem na quantidade, mas na comunhão silenciosa com o que existe. Ele nos ensina, sem jamais dirigir-nos a palavra, que ser só também pode ser uma forma de ser muitos e de ser pleno.

(*) Frei Betto é escritor, autor do romance sobre a ditadura e indígenas amazônicos, “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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