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Moderação no Brasil da fila dos ossos

Uma centro-esquerda que se conduz ativamente rumo à moderação, no Brasil da fila dos ossos e dos 600 mil mortos, se escapa de alguns desacertos, corre também certos perigos.
Uma centro-esquerda que se conduz ativamente rumo à moderação, no Brasil da fila dos ossos e dos 600 mil mortos, se escapa de alguns desacertos, corre também certos perigos. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Ricardo Stuckert / Divulgação)

O passado 17 de abril marcou seis anos da aprovação do impeachment contra Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados. Lembro-me bem da data: as duas vias que compõem o Eixo Monumental, que dá acesso à Praça dos Três Poderes, em Brasília, encontravam-se completamente isoladas uma da outra. Por um lado, à direita de quem se dirigia ao Congresso, desciam os de amarelo; aquelas criaturas que haviam surgido, como verdadeiros patriotas, adesivando carros pelo preço dos combustíveis com viscerais imagens da presidenta, idolatrando gigantescos patos de borracha e “pixulecos” ao som de vuvuzelas. Uma massa disforme, por vezes histérica, formada por velhos bigodudos e jovens engomadinhos, uns pedindo por intervenções militares, outros pela “ucranização do Brasil”, organizada, por grupos declaradamente liberais, tal qual os movimentos “Brasil Livre” e “Vem Pra Rua”. Pelo outro lado, vindos acampados do Estádio Mané Garrincha, desciam os de vermelho, amplamente revistados pelos cordões policiais. Lembro-me bem dessa divisão não pela gigante grade de isolamento metálica que foi erguida em frente ao Congresso para garanti-la, mas por observar, à noite, logo após a votação, como um lado subia o Eixo cabisbaixo e a pé, enquanto do outro lado viam os ecos das buzinas triunfantes de SUVs e picapes. A gigante fila de caminhantes, de um lado; a grandiosa coluna motorizada, do outro. Uma pedra voou, pousando talentosamente no vidro lateral de um dos carros. Logo veio a polícia, descendo o cacete em quem presumiram ser o autor do feito fortuito.

Mesmo para quem acompanhou de perto as manifestações em 2013 e 2014, impressionava a violência e quantidade de lições que 2016 fornecia. Ameaçada, Dilma concedia vergonhosamente, em desespero, àqueles que a perturbavam; em detrimento e em oposição às suas próprias bases. Contando votos de deputados até aquele 17 de abril, na virginal ingenuidade de impedir o processo por vias puramente institucionais, o Partido dos Trabalhadores quase nada fazia em termos de mobilização. Enquanto isso, a direita galopava em bloco, da imprensa à vice-presidência, passando pelo Judiciário e a Lava Jato e – o que consistia novidade – por grandes mobilizações de rua. “O povo não entrou em campo”, me disse um importante dirigente à época. Perguntei-o dois anos depois se o que havia ocorrido não era decorrente de um imobilismo por parte do PT e suas organizações, isto é, uma escolha deliberada por não resistir. “Acho que teve um limite na resistência ao golpe que é difícil fulanizar, é difícil atribuir a um setor ou outro e dizer ‘tal pessoa não quis resistir, tal organização não quis resistir’”, me respondeu o dirigente, apesar de sequer um esforço comunicacional básico, usando as atribuições da presidência, tal qual o uso da cadeia de rádio e TV, tenha se realizado durante o golpe.

O golpe passou. Como o próprio Lula diria, logo após ser condenado, “esse partido passou um monte de tempo gritando que não ia ter golpe e teve golpe.” O governo Temer avançaria sem restrições contra a classe trabalhadora: aprovou a PEC do Teto dos Gastos, que até hoje trava, na prática, os investimentos sociais; a Lei da Terceirização, que estendeu a modalidade para qualquer atividade; a reforma trabalhista, que efetivamente pôs fim à CLT, colocando os trabalhadores de joelhos frente aos patrões e dando o golpe final nos sindicatos; além de ter instaurado a política de Preço de Paridade de Importação (PPI) na Petrobras, por meio da qual o combustível nas bombas brasileiras passou a ser pago em dólares, de acordo com as flutuações do mercado internacional. Aspecto pouco comentado hoje, no entanto, foi a proeminência que o Partido Fardado ganhou sob seu governo: o general Joaquim Luna e Silva, agora saído da presidência da Petrobras, foi colocado, no governo Temer, no cargo de ministro da Defesa – o que não ocorria desde a redemocratização; como Secretário Nacional de Segurança Pública, o general Santos Cruz, também membro do governo Bolsonaro; comandando a FUNAI, o general Franklimberg Ribeiro Freitas; finalmente, à frente do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Sérgio Etchegoyen, reorganizador da inteligência brasileira e membro de família com longa tradição golpista – fato que, relembrado no relatório final da Comissão da Verdade em 2014, muito incomodou o general. As operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foram várias: no Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Pernambuco. Os militares também foram usados em Brasília, durante as manifestações das centrais sindicais de maio de 2017; em escala nacional, durante a Greve dos Caminhoneiros, em maio de 2018; e intervieram no Rio de Janeiro, de fevereiro a dezembro de 2018, isto é, durante o período eleitoral.

Finalmente, com Lula preso – não sem a ajuda do comandante do Exército, é claro, visto por muitos à época como um democrata –, impedido de concorrer, e com uma campanha que centrou-se e vendeu a ilusão de que este seria a cabeça da chapa, marcada também por um imobilismo tão evidente que a ilusão do “vira-voto” tomou muitos a duas semanas do segundo turno, Bolsonaro foi eleito. Seu governo não foi mais do que aprofundamento, com poses piromaníacas, daquelas tendências já vistas em Temer: ultraliberalismo assentado em fardas e nos setores mais bandoleiros do Congresso, apelidado de Centrão. É fato importante que só três pontos diferenciem o governo Bolsonaro do de Temer em questão de qualidade: 1 – o “estilo”: as recorrentes menções golpistas, o chulo racismo, a misoginia mais baixa, a evidente homofobia e todas essas coisas já evidentes e características do hoje presidente; 2 – o fato de conservar bases próprias e fanáticas, coisa que lhe é possível precisamente por este “estilo”, e que Temer absolutamente não tinha; 3 – a atuação durante a pandemia, tão abertamente sociopata que me parece improvável que qualquer outro político a tivesse levado adiante (o que, deixando claro, não é elogio algum a qualquer político). Deste aprofundamento do ultraliberalismo e da atuação pró-Covid do governo resulta um Brasil esfomeado, cujo símbolo são os miseráveis disputando ossos ou queimando-se com álcool, e mais de 600 mil mortos pela Covid-19.

Em meados do ano passado, após o pico da pandemia, já com 500 mil mortos, organizaram-se grandes manifestações nacionais pelo Fora Bolsonaro. É fundamental lembrar qual foi a atuação do Partido dos Trabalhadores e suas organizações durante este processo: o boicote. Não me refiro ao boicote aberto do vice-presidente do PT, Washington Quaquá, que escreveu um artigo dizendo ser um “desastre” convocar a manifestações, mas o furtivo: desmarcar a presença nas vésperas dos atos; a recusa a mobilizar; a ausência e o silêncio de Lula. Para quem tenha acompanhado todo o processo, ficou evidente que o único ato em que as organizações petistas colocaram esforço foi no de 2 de outubro, submetido à lógica dos showmícios e já encaminhando as festividades de fim de ano. Na prática, o resultado é que Bolsonaro, o temível “genocida, miliciano e fascista”, foi menos pressionado nas ruas do que Temer.

É fundamental lembrar desta ativa atuação pela inércia porque agora se reafirma, com o anúncio de que Alckmin será candidato à vice-presidência junto a Lula, a necessidade de “moderação”, sob a lógica da frente-ampla. Fala-se em “unidade”, em “não fazer o jogo da direita” (e sim aliar-se a ela!) em “esquecer os rancores do passado” (recentíssimo passado!) enquanto nos é lembrado – acertadamente – que “a eleição não está ganha” e que “Bolsonaro não é cachorro morto”. Mas é ou não verdadeiro que as mobilizações do ano passado poderiam ter aprofundado a impopularidade de Bolsonaro? É ou não um fato que foi precisamente neste contexto de mobilizações que o presidente, protegido em sua redoma verde-oliva, voltou ao desespero golpista, cuja maior demonstração foi dada no 7 de setembro? É ou não verdadeiro que os dirigentes petistas pouco fizeram por essa “unidade” à esquerda, esvaziando os atos – de bases e de sentido – enquanto prosperavam as conversas com figuras como Alckmin? Se tudo isso é exato, por que o apelo à “unidade” e à lembrança de que “as eleições ainda não estão ganhas” deveria passar em silêncio, sem contestação? A atuação durante os atos pelo Fora Bolsonaro não é elemento para pôr em dúvida a versão de que “é difícil atribuir a um setor ou outro e dizer ‘tal pessoa não quis resistir, tal organização não quis resistir’” em 2016? E os efeitos de 2016 não se fazem sentir hoje?

O problema não é especificamente Alckmin – apesar de Alckmin ser um problema específico. É o que significa: sob qual lógica se tem operado estes apelos obstinados, e que efeito terão. Na dita esperança de angariar mais votos – coisa que dificilmente a aliança com Alckmin traz –  ou reestabelecer pactos (com quem? A que custo?) usa-se à exaustão o mito do “Brasil dividido”, como se esta dita divisão, que não é nova nem exclusiva ao País, fosse produto do acaso. Se exorciza a perigosa figura de Bolsonaro como se a sorte o tivesse produzido e o vácuo o sustentasse, enquanto o esquecimento deve limpar de nossas mentes o que foi a figura de Alckmin.

Não é só que seja indigno; trata-se de uma ilusão. Os senhores a quem essas demonstrações de moderação se destinam, a experiência Dilma o demonstrou, pouco se importam. Não procurarão um governo “moderado” se no aloucado tiverem – como tiveram – seus lucros ampliados. Pelo contrário: só costumam se dispor às conversas quando sob ameaça.

Mas há um outro elemento, sobre o qual tenho insistido e que lembramos em editorial: o Partido Fardado. De fato, talvez a escolha de Alckmin seja mais explicada por este fator do que pelas opiniões que “o mercado” sustenta. Ocorre que, sendo este o caso, a ilusão é ainda maior. Já no final do ano passado foram noticiadas as tentativas de interlocutores de Lula em tratar com militares que se afastaram de Bolsonaro. As respostas teriam sido negativas. No UOL, Kennedy Alencar informa que “Alckmin fará pontes com militares anti-PT”. No Estadão, Vera Rosa diz que “emissários do ex-presidente Lula […] querem saber se Lula conseguirá tomar posse, caso seja eleito. A resposta não foge ao script: nada impedirá o vencedor, qualquer que seja ele, de assumir a cadeira no Palácio do Planalto.” Há citação de Nelson Jobim, que diz ao jornal que “A impressão que fico, nessas conversas, é a de que as Forças Armadas são totalmente legalistas”. Se o são, para quê consultá-las?

Não se trata de esperar do Partido dos Trabalhadores e de Lula nenhum tipo de jacobinismo. Ocorre que uma centro-esquerda que se conduz ativamente rumo à moderação, num Brasil da fila dos ossos e dos 600 mil mortos, se escapa de alguns desacertos, corre também certos perigos. O primeiro deles é que aqueles que promovem filas de famélicos e valas para adoecidos, que apearam Rousseff do poder e deram sustentação a Temer e Bolsonaro, não sejam muito dispostos à conciliação. Colocado assim, não parece claro? O segundo é que, com esta mania de confundir-se com o inimigo, se promova a despolitização entre suas próprias bases. Não fica o sentimento evidente mesmo naqueles que dizem que “apesar de tudo, vou votar em Lula”? Combinados estes dois elementos com um contexto de ameaça militar – e afinal há tais “emissários” tomando chás com militares – os perigos tornam-se evidentes. Tal qual o imobilismo em 2016 cobrou seus preços, e o de 2021 permitiu que Bolsonaro passasse incólume, chegando a este ano eleitoral em condições mais favoráveis, estas súplicas à despolitização, ao “o importante é tirar Bolsonaro”, ao custe ao que custar, também terão contrapartidas. É verdade que o PT já anuncia a necessidade de reverter algumas das medidas adotadas no último período, entre as quais a contrarreforma trabalhista e o Teto de Gastos, e de buscar a “superação do Estado neoliberal” e a “consolidação de um Estado social assentado nos pilares da democracia, do desenvolvimento, da sustentabilidade ambiental, da soberania nacional, do combate às desigualdades, da ampliação e da retomada de direitos da classe trabalhadora, bem como da promoção do conjunto dos direitos do povo brasileiro”. Mas acenando com tanto afinco à moderação agora, se disporão esses dirigentes a mobilizar o povo para que estas e outras necessárias mudanças sejam aprovadas no Congresso? E o povo, estará disposto, neste contexto, à mobilização? A mensagem de Alckmin, mesmo que agora travestindo-se de um Marat em seus discursos a sindicalistas, representa um chamado a protestos em Brasília – o tipo de protestos que ele tão bem reprimia – ou um convite a tirar este ou aquele ponto demasiado polêmico desta ou daquela reforma para formar um conchavo e aprová-la? Alckmin é indicação de chamados à classe trabalhadora ou do já batido lamento de “não temos força no Congresso…”?

À entrega da vice-presidência a Alckmin, se soma agora a federação com o PV. O PSOL acompanha a tendência, formando sua própria federação com a REDE. Um esforço consistente para confundir aquelas duas vias de Brasília em 2016, tão essencialmente divididas, ligadas somente às pedradas.

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