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Militares escolhidos por Heleno ainda dirigem Sala no Planalto sobre os povos indígenas

A Sala de Situação Nacional, criada em 2020 por ordem do STF, continua sob o comando de aliados de Bolsonaro escolhidos por Heleno.
A Sala de Situação Nacional, criada em 2020 por ordem do STF, continua sob o comando de aliados de Bolsonaro escolhidos por Heleno. Por Rubens Valente | Agência Pública
(Foto: Antônio Cruz/ABr)

Militares escolhidos pelo ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) Augusto Heleno, um ferrenho bolsonarista que já deu várias declarações contra indígenas, suas organizações e a demarcação de terras indígenas, continuam presidindo as reuniões da SSN (Sala de Situação Nacional) sobre os povos indígenas que reúne cerca de 20 órgãos públicos e entidades. Criada pelo Palácio do Planalto em 2020 por força de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), a SSN é destinada ao acompanhamento da saúde indígena e das invasões e desintrusões de terras indígenas sob ameaça no país, incluindo a Terra Indígena Yanomami, invadida por 20 mil garimpeiros na gestão de Bolsonaro.

O estranhamento de indígenas e indigenistas ouvidos pela Agência Pública começa no próprio fato de o GSI, um órgão formado por militares e hoje sob suspeita de ter facilitado a invasão, por golpistas bolsonaristas, do Palácio do Planalto em 8 de janeiro, continuar dirigindo as reuniões do SSN mesmo no governo Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 1º de janeiro. E com as mesmas pessoas do governo Bolsonaro. O coronel aviador da FAB (Força Aérea Brasileira) Ivan Lucas Karpischin, que presidiu reuniões da SSN ao longo de 2022 como representante do GSI de Augusto Heleno, continua na função e já comandou duas reuniões da Sala durante o governo Lula, em 20 de janeiro e em 3 de fevereiro. A próxima está prevista para esta sexta-feira (17).

Além dele, atuaram pelo GSI de Augusto Heleno na Sala de Situação e continuam atuando no governo Lula o tenente-coronel da FAB Cláudio Paradelo Peixoto, o tenente-coronel do Exército Ricardo da Silva Vieira e o sargento do Exército Anderson da Silva Santos.

“A gente esperava que [após a posse de Lula] aqueles militares não mais estariam ali. E eles permanecem. É uma situação que de fato constrange. É um resquício. A imagem deles representa aquele momento tão trágico que a gente viveu”, disse o advogado Maurício Terena, coordenador jurídico da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a principal organização indígena do país. A SSN foi criada justamente após a APIB ingressar no STF com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que recebeu o número 709, com o objetivo de tentar controlar a pandemia da Covid-19 entre os povos indígenas, face à inação do governo federal no início da doença.

A SSN é formada por vários órgãos públicos, como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a DPU (Defensoria Pública da União) e o MPF (Ministério Público Federal) e por organizações não governamentais como a APIB e o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato).

“A nossa expectativa era que houvesse uma mudança nos militares que estivessem mediando aquelas reuniões. Porque o papel deles é muito mais de mediador, mas entendo que por diversas vezes, durante a ex-gestão de Bolsonaro, eles ‘passavam muito pano’ para o governo. A SSN foi feita para ser um ambiente em que a gente conseguisse ter acesso à informação, trocasse impressões e fizessem com que a ADPF alcançasse de fato seu objetivo. Ocorre que durante o governo Bolsonaro os agentes designados não contribuíam nem estavam a fim de contribuir com informações fidedignas, com raras, bem raras exceções. A política indigenista era de total abandono dos povos indígenas”, disse Maurício Terena.

Colocar o GSI no papel de presidir as reuniões da SSN foi uma escolha feita pela gestão de Augusto Heleno. A decisão do STF determinava a criação da SSN, mas não o órgão que a conduziria. Um paralelo sobre essa função “indigenista” de militares pode ser encontrado na ditadura militar (1964-1985), quando o aparelho da repressão SNI (Serviço Nacional de Informações), criado pela ditadura logo após o golpe de 1964, e outros organismos militares, como o CSN (Conselho de Segurança Nacional), buscavam interferir e dar opinião no andamento do tema indígena, em especial sobre terras indígenas na Amazônia. Desde o fim da ditadura, em 1985, nunca o GSI ou seus órgãos antecessores em outros mandatos presidenciais, como o Gabinete Militar ou a Casa Militar nos anos de 1990, se imiscuiu na condução da política indigenista de forma tão direta como ocorreu na gestão de Bolsonaro.

A Pública procurou saber do Palácio do Planalto o motivo pelo qual os militares foram mantidos na SSN. A resposta lacônica da Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) foi: “A Secretaria de Comunicação Social não vai comentar”. A Pública então pediu que fossem enviados os contatos de Karpischin para que ele se manifestasse, mas não houve qualquer resposta.

Coronel já disse que “rezava” pela saúde de Bolsonaro

O coronel aviador da FAB Ivan Lucas Karpischin, presidente das reuniões da SSN na gestão Bolsonaro e mantido na gestão Lula, ocupava e ocupa no GSI o cargo de diretor do Departamento de Assuntos de Defesa e Segurança Nacional. Qualquer ligação anterior sua com a temática indígena era totalmente desconhecida de indigenistas e indígenas até o governo Bolsonaro. Em fevereiro de 2021, ele deixou seu cargo mais importante até então, o de comandante da Base Aérea de Salvador (BA). No mês seguinte, na gestão de Augusto Heleno, ele foi designado para um cargo de confiança de assessor militar no GSI. Simultaneamente, passou a atuar na SSN.

 Leia também – Diretamente ou não, tragédias na Amazônia têm dedo militar 

Em outubro de 2019, numa entrevista a um programa da TV Câmara Municipal de Salvador, Karpischin disse que estava “rezando” em favor de Bolsonaro. “O presidente… Eu digo ainda que a administração dele é recente. É um período de quatro anos, o presidente não completou nem um ano ainda. Tem algumas realizações. A gente vê muita coisa na mídia, muita coisa na notícia. Interessante que a gente vê nele a vontade de fazer, a vontade de realizar. E o Brasil precisa… A gente reza pra que lhe dê saúde e pra poder escolher bem a sua equipe, ter uma equipe boa ao seu lado, desenvolver um bom trabalho em prol de todo o país, não apenas das Forças Armadas.”

Ivan Lucas Karpischin é um homem branco na faixa dos 40, 50 anos. Ele tem cabelos grisalhos e olhos escuros. Ivan veste uniforme da aeronáutica azul.
Ivan Lucas Karpischin, indicado por Heleno, ainda continua no comando das reuniões da Sala de Situação Nacional. (Foto: Reprodução)

O papel de Karpischin é organizar as reuniões e mediar as discussões na SSN. Para muitos dos participantes, também cabia a ele dar encaminhamentos e cobrar uma resposta dos órgãos da União que fazem parte da SSN, como a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde, e a Funai. Durante o governo Bolsonaro, inúmeros questionamentos sobre a situação dos povos indígenas foram levantados pelas organizações não governamentais nas diversas reuniões presididas pelo GSI. O caso da tragédia humanitária dos Yanomami demonstra como a resposta dos órgãos do governo foi pequena, tardou ou inexistiu.

A instalação da SSN foi determinada em julho de 2020 pelo ministro relator da ADPF 709, Luís Roberto Barroso, a princípio com o objetivo de monitorar e reduzir os impactos da pandemia da Covid-19 nos povos indígenas. Mas logo a SSN também passou a abordar as invasões de terras indígenas por madeireiros e garimpeiros, entre outros invasores, que era outro tema levantado pela APIB desde o início do ajuizamento da ação e também acolhido pelas decisões do Supremo. Simultaneamente, Barroso abriu um procedimento que cobrava providências do governo Bolsonaro sobre sete terras indígenas invadidas e degradadas no país.

Caso Bruno e Dom

Na reunião da SSN de junho de 2022, que discutia o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips no Amazonas, os militares do GSI – o que inclui Karpischin, que presidiu o encontro – manifestaram uma dúvida que chamou a atenção dos integrantes da Sala. Conforme registra a ata do encontro, o GSI quis saber “se os desaparecidos chegaram a entrar em área indígena e se estes fizeram contato com a Funai previamente”, como se esse fosse o ponto mais importante do caso. Àquela altura, os dois continuavam desaparecidos. A Funai respondeu que “não há notícia de que eles tenham ingressado em território indígena”. Depois ficou fartamente comprovado que Bruno e Dom não entraram na terra indígena Vale do Javari.

Ao abrir a sessão, o GSI havia destacado “a importância de que os assuntos tratados na reunião se atenham ao âmbito da ADPF 709, sob pena de desviar-se a atenção dos temas de fato relevantes estabelecidos pelo STF. A título de apontamentos, teceu comentários sobre os documentos recebidos no GSI e ainda em diligência nos órgãos de interesse”. Vários participantes da reunião imediatamente citaram o caso de Bruno e Dom, que naquele momento atraía a atenção de todo o país.

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