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Cultura, IA e poder: como os artistas estão se levantando contra a tecnologia da moda

Artistas de todo o mundo estão levando empresas de inteligência artificial aos tribunais, com ações que mostram que a IA traz altos riscos para o mundo da cultura.
Artistas de todo o mundo estão levando empresas de inteligência artificial aos tribunais, com ações que mostram que a IA traz altos riscos para o mundo da cultura. Por Pablo Jiménez Arandia | El Salto – Tradução de Pedro Marin
Imagem gerada com a IA DALL-E sob a instrução “pintura realista de artistas protestando contra a AI”

A relação entre a inteligência artificial (IA) e a cultura não é nova. Há anos, artistas de todos os tipos vêm fazendo experiências com essa tecnologia para criar seus trabalhos. Mas, assim como em outros campos, o surgimento da inteligência artificial generativa – aquela capaz de criar conteúdo aparentemente original a partir de instruções básicas fornecidas pelo usuário – está provocando uma profunda controvérsia no mundo da arte.

Os sistemas generativos de imagem (Dall-e, Midjourney e Stable Diffusion são alguns dos mais populares) e de texto (ChatGPT, Bard) possibilitam a criação de trabalhos altamente verossímeis em apenas alguns segundos. Isso é possível graças à grande quantidade de conteúdo com o qual foram treinados: esses aplicativos de software reproduzem os padrões que viram se repetir várias vezes durante o treinamento, sejam eles imagens, textos ou sons.

Nos últimos meses, ao mesmo tempo em que a popularidade e o número de usuários das versões mais recentes do ChatGPT, Dall-e ou Midjourney aumentaram, também surgiram as primeiras reclamações contra as empresas que criaram essas ferramentas.

Em janeiro, Sarah Andersen, Kelly McKernan e Karla Ortiz, três artistas plásticas dos Estados Unidos, foram ao tribunal em São Francisco para acusar várias empresas de inteligência artificial – incluindo a Stability AI, criadora do Stable Diffusion – de violar leis de propriedade intelectual, publicidade e concorrência no estado da Califórnia.

As artistas argumentam no processo que, com essa ação, buscam impedir “a flagrante e enorme violação de seus direitos” ao ter seu trabalho usado para a construção desse software. E alertaram que seu próprio ofício, o de artistas, estava em risco se essas práticas não fossem interrompidas.

O que exatamente está por trás dessas acusações e por que cada vez mais vozes estão se levantando contra as empresas que criam esse software?

Imagens protegidas e falta de consentimento

Nos enormes bancos de dados a partir dos quais programas como o Stable Diffusion e o Midjourney foram criados, há uma mistura de imagens licenciadas para uso público e aquelas protegidas por direitos autorais.

Por exemplo, para essas inteligências artificiais – capazes de criar imagens falsas de realismo chocante, como algumas que se popularizaram, como as do Papa Francisco em um casaco branco ou Donald Trump sendo preso antes de seu julgamento – foram usadas milhões de fotografias tiradas por fotojornalistas de todo o planeta. Entre eles, muitos profissionais espanhóis.

Como explicou o meio de comunicação Newtral, os repórteres espanhóis Emilio Morenatti, Anna Palacios, Manu Brabo, Santi Palacios e Anna Surinyach, entre uma longa lista de outros, têm algumas de suas fotografias nos repositórios usados por essas empresas. “É impressionante”, disse o fotojornalista Palacios, ganhador de um prêmio Ortega y Gasset, ao saber que parte de seu trabalho está no banco de dados LAION, com o qual a Stable Diffusion foi treinada.

Até o momento, as reclamações contra as empresas de tecnologia por trás da inteligência artificial generativa não vieram apenas de artistas individuais. No Reino Unido e nos EUA, a agência fotográfica Getty Images, uma das maiores fornecedoras de imagens do mundo para a indústria de mídia, também levou aos tribunais a empresa por trás da Stable Diffusion.

“O motivo [da reclamação] é que a Stability AI usou a propriedade intelectual de outros, sem a devida permissão ou consideração, para criar um produto comercial para seu próprio ganho financeiro”, diz a Getty.

A popularidade conquistada em um curto espaço de tempo por essas inteligências artificiais ajudou as empresas do setor a obter cada vez mais recursos de grandes investidores. E, portanto, a aumentar os lucros das empresas e de suas equipes de gestão sem que uma parte fundamental desse sucesso, ou seja, os criadores da arte na qual seus programas se baseiam, tenham recebido algo em troca.

A escritora norte-americana Naomi Klein coloca a questão da seguinte forma: “Por que uma empresa com fins lucrativos deveria ter permissão para alimentar um programa como o Stable Diffusion ou o Dall-E 2 com pinturas, desenhos e fotografias de artistas vivos, para que eles possam gerar versões duplicadas do trabalho dos mesmos artistas, com os lucros fluindo para todos, exceto para os próprios artistas?”

O advogado Matthew Butterick, que conduz o processo contra a Stability AI na Califórnia, vai ainda mais longe e compara esse caso de “apropriação indébita” ao roubo, em 1990, de treze obras de arte do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, nos EUA, considerado o maior da história.

O caminho para a regulamentação

Nos últimos meses, vem crescendo o consenso de que a inteligência artificial precisa ser regulamentada. E o mesmo acontece com as ferramentas generativas que já estão sendo usadas por milhões de pessoas em todo o mundo.

O Parlamento Europeu propôs recentemente obrigar os fornecedores desse tipo de software a tornar público “um registro suficientemente detalhado do uso de dados protegidos por leis de direitos autorais”, entre outras exigências. Nos próximos meses, uma nova regulamentação para essas tecnologias será aprovada no continente europeu e deverá ser implementada por todos os estados-membros da UE.

As propostas para evitar o uso negligente do trabalho de artistas muitas vezes anônimos também estão vindo da própria profissão. A iniciativa Arte es Ética (Arte é Ética), por exemplo, é promovida por coletivos de artistas da América Latina e da Espanha que advogam um controle muito mais rigoroso sobre a inteligência artificial generativa.

Seus membros exigem, entre outras medidas, que haja consentimento prévio e explícito do autor para que uma obra seja usada no treinamento de softwares desse tipo. Exigem também que as imagens produzidas por meio dessas ferramentas incluam por lei uma marca d’água e uma assinatura digital com informações sobre a porcentagem de automação utilizada no processo de criação e o nome do usuário que a gerou, entre outros dados.

Eles também reivindicam que essas ferramentas de software cancelem a função atualmente disponível de usar os nomes dos próprios artistas para replicar seu estilo ou trabalho, caso esses criadores não tenham concordado em ser incluídos no banco de dados de treinamento do programa.

A jornalista de tecnologia e poder Marta Peirano escreve que a história da cultura é essencialmente o processo de modificar o que já existe para criar algo novo. Mas como garantir que o trabalho e os direitos dos artistas sejam respeitados diante dessas novas ferramentas tecnológicas?

Peirano, a respeito das ações judiciais que surgiram nos últimos meses, aponta para uma direção: “Nenhum dos autores rejeita a tecnologia. Os artistas estão pedindo que sejam garantidos os três Cs: crédito, consentimento e compensação”.

Nos próximos meses, certamente veremos mais propostas que busquem avançar em direção a um uso responsável da IA no mundo da arte. O que está em jogo é a construção de uma cultura mais justa e inclusiva com todos os atores envolvidos.

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