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Dois anos desde o assassinato do presidente do Haiti

Dois anos após o magnicídio contra Jovenel Moïse, o Haiti segue em crise e sob a sombra de uma nova intervenção internacional de segurança.
Dois anos após o magnicídio contra Jovenel Moïse, o Haiti segue em crise e sob a sombra de uma nova intervenção internacional de segurança. Por Jake Johnston e Chris François | CEPR – Tradução de Pedro Marin
O ex-presidente do Haiti, Jovenel Moïse, assassinado em julho de 2021. (Imagem: CEPR)

O último 7 de julho marcou dois anos desde o assassinato do presidente Jovenel Moïse no Haiti. O Escritório de Proteção Civil haitiano denunciou a “lentidão inaceitável” da investigação no Haiti, ao mesmo tempo em que pediu maior proteção para o juiz Walter Wesser Voltaire. Ele é o quinto juiz a supervisionar o caso depois que outros se demitiram por motivos pessoais ou foram substituídos.

Associated Press informou que um juiz anterior disse “que sua família lhe pediu para não investigar o caso porque temiam que ele fosse morto, enquanto outro juiz renunciou depois que seu assistente morreu em circunstâncias obscuras”.

Atualmente, cerca de 40 suspeitos permanecem em condições precárias de cárcere no Haiti, enquanto 11 indivíduos estão sob a custódia dos EUA e foram acusados por seus respectivos papéis na conjuração. O julgamento nos EUA foi mais uma vez adiado e está programado para começar em maio de 2024.

Conforme relatado pelo Miami Herald no aniversário de dois anos do magnicídio, as investigações no Haiti e nos EUA têm objetivos diferentes. O caso dos EUA concentra-se estritamente no papel dos cidadãos e atores norte-americanos no sul da Flórida, mas, segundo o Herald, “a questão de quem planejou o ataque continua sendo uma tarefa para o Haiti resolver”.

O artigo continuou:

“Inicialmente, os agentes do FBI queriam investigar quem planejou o assassinato, mas os promotores federais rejeitaram a ideia, preferindo uma investigação mais focada. Agora, uma ordem de mordaça de um juiz federal de Miami impede que os advogados de defesa compartilhem provas com terceiros, inclusive com as autoridades haitianas, dificultando os esforços de Voltaire, o quinto juiz investigativo do Haiti designado para o inquérito, para chegar ao cerne do assassinato.”

Em 13 de julho, o The New York Times publicou um artigo de Jake Johnston, pesquisador associado do CEPR, detalhando os laços entre o primeiro-ministro de facto do Haiti, Ariel Henry, e os suspeitos de envolvimento no assassinato. Mas, como observa o artigo, não são apenas as autoridades do Haiti que parecem ter algo a esconder. Alguns dos suspeitos sob custódia dos EUA têm vínculos documentados com agências governamentais dos EUA.

Em 2021, o Congresso dos EUA determinou que o Departamento de Estado apresentasse um informe sobre o magnicídio, incluindo detalhes sobre quaisquer informantes ou contratados dos EUA que pudessem estar envolvidos. O relatório, apresentado meses depois do exigido, não respondeu substancialmente a nenhuma das perguntas do Congresso norte-americano. Este mês, a deputada norte-americana Ayanna Pressley propôs uma emenda à Lei de Autorização de Defesa Nacional (NDAA) que solicitaria um relatório atualizado sobre o assassinato. Essa emenda não foi incluída na legislação final aprovada pela Câmara.

Blinken se reúne com Henry e reitera o apoio dos EUA à intervenção

Em 5 de julho, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, reuniu-se com o primeiro-ministro de facto do Haiti, Ariel Henry, e reiterou o apoio de Washington a uma intervenção externa de segurança no país. A reunião, realizada à margem de uma cúpula de chefes de governo da CARICOM, evidenciou um período turbulento de manobras diplomáticas em apoio ao envio de tropas ao Haiti.

No final de junho, o especialista independente em direitos humanos da ONU no Haiti, William O’Neill, concluiu uma visita de 10 dias ao país. Em uma coletiva de imprensa, O’Neill chamou o envio de uma força internacional para trabalhar ao lado da polícia nacional haitiana de uma etapa “essencial” para restaurar a segurança. Poucos dias depois, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, visitou a capital do Haiti.

“Repito: não estamos pedindo uma missão militar ou política das Nações Unidas. Estamos pedindo uma força de segurança robusta enviada pelos Estados Membros para trabalhar lado a lado com a Polícia Nacional do Haiti para derrotar e desmantelar as gangues e restaurar a segurança em todo o país”, disse Guterres. O Miami Herald obteve uma cópia de um documento confidencial da ONU com mais detalhes sobre o escopo e o mandato de uma possível formação da força de segurança.

Depois de deixar Porto Príncipe, Guterres viajou para Trinidad e Tobago para participar da cúpula da Comunidade do Caribe (CARICOM), onde as discussões sobre o Haiti continuaram. Embora os governos da CARICOM tenham expressado ceticismo em relação a esse envio de forças de segurança, o órgão parece ter mudado de rumo após pressão dos EUA e da ONU.

O presidente da CARICOM e primeiro-ministro de Dominica, Roosevelt Skerrit, disse a jornalistas que o pensamento do órgão regional havia mudado desde a reunião anterior e que um destacamento de segurança seria necessário para fornecer “um corredor seguro para poder trazer apoio humanitário, do qual o Haiti precisa desesperadamente”. Skerrit também observou que Ruanda, cujo presidente viajou para a cúpula com o Secretário de Estado Blinken, “indicou sua disposição de auxiliar na manutenção da paz e fornecer equipes de segurança”.

No início deste ano, o governo do Quênia assumiu um compromisso semelhante. No entanto, a formação planejada ainda não tem um país líder, e os EUA insistem que não têm interesse em assumir essa função. Tanto o Brasil quanto o Canadá, que desempenharam papéis fundamentais na última missão de segurança da ONU no Haiti, já recusaram pedidos dos Estados Unidos para liderar a força multinacional, embora os ministros de Relações Exteriores de ambos os países tenham se reunido no final do mês passado para discutir a situação no Haiti. Apesar de a posição da CARICOM ter mudado, Skerrit acrescentou que qualquer envio precisaria da autorização do Conselho de Segurança da ONU – algo que está longe de ser garantido.

No dia seguinte à conclusão da cúpula em Trinidad, o Conselho de Segurança da ONU se reuniu para discutir novamente o Haiti. Antes da reunião, Guterres pediu aos países membros que “ajam agora para criar as condições para o envio de uma força multinacional para ajudar a Polícia Nacional do Haiti”. Embora muitos países tenham expressado seu apoio a uma força de segurança multinacional, nenhuma resolução concreta sobre o envio saiu da reunião, com representantes da China e da Rússia expressando preocupação com a viabilidade de tal opção a longo prazo. O representante da China observou que qualquer ação externa teria pouco efeito sem um maior progresso na política interna.

No final da reunião, o Conselho de Segurança votou por unanimidade para estender o mandato do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH) por mais um ano. Sua resolução também solicita ao Secretário-Geral António Guterres que

“apresente um relatório por escrito ao Conselho, em consulta com o Haiti, no prazo de 30 dias, delineando toda a gama de opções de apoio que as Nações Unidas podem oferecer para melhorar a situação de segurança, incluindo apoio para combater o tráfico ilícito e o desvio de armas e materiais relacionados, treinamento adicional para a Polícia Nacional Haitiana, apoio a uma força multinacional não pertencente às Nações Unidas ou uma possível operação de manutenção da paz, no sentido de apoiar um acordo político no Haiti”.

Embora o Congresso dos EUA tenha se mantido relativamente calmo sobre a questão do envio de forças para o Haiti, a representante Cori Bush propôs uma emenda à Lei de Autorização de Defesa Nacional que proíbe que os fundos sejam “usados para proporcionar uma intervenção armada unilateral ou multilateral no Haiti, a menos que o Congresso promulgue primeiro uma resolução conjunta autorizando o uso específico de tais fundos”.

A sociedade civil responde

Ao comentar sobre o novo apelo do secretário-geral para o envio de forças, Jacques Ted Saint-Dic, membro do Escritório de Monitoramento do Acordo de Montana, deixou clara a posição do grupo: “[…] se for oferecida assistência técnica adequada ao país e se nos for permitido comprar armas e munições, realizar um processo de certificação e despolitização dentro da Polícia Nacional do Haiti e romper os laços entre o Estado e as gangues, poderemos pôr fim à crise de segurança do país”.

Com base nesse argumento, Pierre Espérance, diretor da Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, argumentou na Foreign Policy que mais policiais não seriam suficientes para resolver a situação da segurança. “No Haiti, os membros das gangues não são senhores da guerra independentes que operam à parte do Estado. Eles fazem parte da forma como o Estado funciona – e como os líderes políticos exercem o poder”, escreveu ele.

No artigo, Espérance detalhou como as operações policiais contra as gangues foram sabotadas ou abortadas por oficiais de alto escalão, muitos dos quais ligados diretamente aos próprios grupos armados:

“O reforço da força policial não trará mudanças se não houver um acordo político mais amplo. A Polícia Nacional do Haiti está dividida entre oficiais corajosos e comprometidos que lutam contra as gangues e oficiais que estão ajudando as gangues. Se a comunidade internacional treinar e abastecer o departamento policial agora, os policiais corruptos continuarão a compartilhar informações táticas, veículos, armas e munição com as gangues. A debilitada força policial não fará mais nenhum progresso.”

Em vez de se concentrarem apenas no envio de uma força de segurança, as autoridades americanas deveriam “criar e executar uma política clara e consistente para o Haiti que coloque a democracia em seu centro e apoie os que estão buscando romper o domínio de um regime antidemocrático”, concluiu.

Ecoando a análise de Espérance, as comissões de direitos humanos da Escola de Direito da Universidade de Nova York e da Escola de Direito de Harvard divulgaram uma carta enviada ao Secretário de Estado Blinken e a Brian Nichols, o principal diplomata dos EUA para o Hemisfério Ocidental. “O progresso nos direitos humanos e na segurança e o retorno à ordem constitucional só serão possíveis se o povo haitiano tiver a oportunidade de mudar seu governo, e isso só ocorrerá se os Estados Unidos deixarem de apoiar a administração ilegítima”, escreveram os grupos.

“As autoridades dos EUA dizem que não estão escolhendo vencedores ou perdedores políticos no Haiti e, no entanto, seu polegar está na balança a favor do Dr. Henry. Isso precisa acabar. O governo dos EUA e outros atores estrangeiros devem abrir espaço para que o povo haitiano retorne à ordem constitucional e construa sua própria democracia.”

CARICOM viaja ao Haiti para dar continuidade às negociações políticas

Em 12 de julho, o Grupo de Pessoas Eminentes da CARICOM chegou a Porto Príncipe para dar continuidade ao diálogo político iniciado em Kingston, na Jamaica, no mês passado. Henry se comprometeu a aumentar a “inclusão” em seu governo de facto, mas a maioria dos outros participantes da reunião de Kingston pressionou por um acordo que distribuísse o poder entre um primeiro-ministro e um colegiado presidencial.

O Secretário-Geral da ONU, Guterres, em sua visita ao Haiti, expressou apoio ao processo de diálogo facilitado pela CARICOM. No entanto, na reunião do Conselho de Segurança na semana passada, o chefe da missão política da ONU no Haiti apoiou a proposta de Henry de expandir o Conselho de Alta Transição existente e seus planos de avançar com a formação de um novo conselho eleitoral provisório.

Ao retornar ao Haiti após a cúpula da CARICOM, Henry falou à imprensa, reiterando sua promessa de formar um conselho eleitoral provisório e reformular o gabinete ministerial. No entanto, é improvável que esses esforços ampliem significativamente a abrangência do governo de transição. Na verdade, os esforços para avançar com um conselho eleitoral antes de um acordo político mais amplo provavelmente exacerbarão as tensões políticas e ameaçarão minar as negociações em andamento, facilitadas pela CARICOM.

Após três dias de reuniões em Porto Príncipe, os resultados foram novamente inconclusivos, sem que se chegasse a um acordo político entre os signatários da declaração de Kingston e os do Acordo de 21 de dezembro. Em uma declaração ao Le Nouvelliste, André Michel, signatário do Acordo de 21 de dezembro, denunciou as “ambições excessivas” dos signatários de Kingston, argumentando que eles rejeitaram as propostas de sua coalizão para se concentrar na defesa de um colégio presidencial.

No entanto, Liné Balthazar, presidente do partido PHTK e signatária da declaração de Kingston, apresenta um quadro diferente: “Até o momento, a única proposta escrita apresentada à CARICOM é a dos signatários da declaração de Kingston”. Ele argumenta que as discussões fracassaram porque as outras partes não apresentaram propostas concretas, apenas declarações verbais. As partes estabeleceram a meta de continuar as discussões para chegar a uma decisão até 31 de julho, mas os detalhes de suas futuras negociações permanecem desconhecidos.

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