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A biblioteca de Milei

Se Milei crê que pode seguir fazendo campanha, e que tudo se resolve polemizando, o mileísmo não ganhará a batalha política, nem a batalha cultural
Alfredo Serrano
Comício de encerramento de campanha do Javier Milei, em uma casa de shows, Buenos Aires. (Foto: Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA)

Tenho uma péssima notícia para Milei: a arte de governar é infinitamente mais difícil do que a arte de polemizar (ou seja, comentar absolutamente tudo na TV, no rádio e nas redes sociais).

A tão anunciada nova-velha era na Argentina já chegou. E, a partir de agora, o presidente, além de falar, terá que agir e tomar decisões. Está chegando ao fim um ciclo que deu certo, no qual bastava ir a entrevistas e dizer qualquer coisa. A partir de agora, não basta apenas saber comunicar. A esta competência terá de acrescentar outra: o saber-fazer.

Em outras palavras: governar exige poder executivo, e não apenas poder comunicativo.

Isto, por sua vez, implica passar das generalidades aos detalhes. Ou seja: traduzir em algo concreto o seu mantra “reajuste+choque+motosserra porque não há alternativa”.

Chegou o momento das letras pequenas.

Milei terá de detalhar e especificar como se aplica cada ideia, com que instrumento legal, qual o apoio parlamentar que tem, qual o seu apoio social, quem é afetado, em que medida, em que prazo.

Para enfrentar este desafio da práxis política que se aproxima, Milei, que se gaba de ser um excelente leitor, irá certamente procurar as respostas mais precisas nos livros e nos textos.

Como será a biblioteca do presidente na Quinta de Olivos? Quantas correntes de pensamento estarão presentes?

Imagino que a biblioteca tenha quatro prateleiras, com estas seções: primeira, Anarco-liberalismo experimental; segunda, Macrismo conservador; terceira, Menemismo retrógrado; e quarta, Negacionismo a la [Victoria] Villarruel.

Como em qualquer livraria, há também uma seção chamada “Geral” (embora também pudesse se chamar “Desastre”), com um pouco de tudo: FMI, Doutrina Monroe, Chabad-Lubavitch, Darwinismo, Fascismo, Cinologia, Financeirização e Especulação, Anarquismo e, claro, Auto-ajuda.

Uma amálgama muito colorida que gera ansiedade e incerteza. Mais do que já havia.

Porque, além disso, nenhuma biblioteca na vida real de um presidente consegue manter tanta ordem como a que há nas estantes. Haverá disputas entre as diferentes doutrinas e haverá conflitos de interesses entre os diferentes atores.

Há demasiadas mãos “invisíveis” e poderosas que, no final, atuarão como os verdadeiros criadores do que Milei chama de “a ordem libertária espontânea”, que é simplesmente a mesma ordem que o neoliberalismo vem defendendo há meio século.

Este poderia ser o futuro da Argentina, a menos que ocorra um acontecimento social não tão improvável: que uma grande percentagem dos que o apoiaram eleitoralmente comecem a se oporem politicamente.

Este fenômeno, que pode parecer utópico nos primeiros momentos, acontece com mais regularidade do que se imagina ao longo do tempo. Sobretudo quando o presidente confunde os votos do segundo turno com a sua verdadeira base; e quando não sabe diferenciar entre o volume de cidadãos que o elegeram num cenário condicionado em que há muito voto “anti” (55%) e aqueles que verdadeiramente confiaram nele, tanto nas PASO (eleições primárias) como no primeiro turno (30%).

Além disso, este quase terço é muito heterogêneo e, além disso, muito volátil. Vai e vem. Hoje escolhem uma canção e amanhã outra. Um assunto cada vez mais característico das Democracias Spotify que estão emergindo globalmente.

O fim da fidelidade (para sempre) a um partido político permitiu, entre outras coisas, que Milei se tornasse presidente. Mas, paradoxalmente, este mesmo traço da época pode também ser a causa de uma perda acelerada de meios de sustentação, se não resolver o mais rapidamente possível os problemas cotidianos das pessoas. Porque as necessidades nunca têm paciência.

Se Milei acredita que pode continuar a fazer campanha como se nada tivesse acontecido, e que tudo se resolve comunicando, com falsos diagnósticos e propostas genéricas, o mileísmo não ganhará a batalha política. Nem a batalha cultural. Porque para que as ideias triunfem, os fatos e as suas consequências não podem ser negligenciados.

(*) Alfredo Serrano Mancilla é PhD em economia pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB). Ele é especialista em economia pública, desenvolvimento e economia global. É colunista convidado do Página 12, La Jornada, Público, Russia Today, e atual diretor executivo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG).

(*) Tradução de Raul Chiliani

CELAG Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica

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