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’42 | Fatima e a Maré da Morte [Ep.1]

No primeiro capítulo da série de ficção ’42, Alex contata Fatima, uma ex-militante climática marroquina que atuou junto a seus pais
João Camargo e Nuno Saraiva
'42
António, filho de Alex, nasce, fazendo-o buscar as histórias esquecidas de seus avós. (Ilustração: Nuno Saraiva)

A Revista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.

Leia os capítulos anteriores: [Prólogo]


De: alexaguas@voo.com
Para: fidrissi@nhope.ma
Data: 23 de mai. de 2042, 16:20
Assunto: Re: Meus sentimentos pelo seu pai

Salam, Fatima.

Como está? Faz tempo que não nos falamos. A última vez foi quando meu pai morreu, batemos aquele papo pelo Zoom, lembra? Espero que suas dores de cabeça estejam melhor, fiquei preocupado contigo. Vocês centennials andam muito doentes para a sua idade. Espero que você esteja se cuidando e que a família também esteja bem.

Tenho grandes novidades. Tive um filho, um menino chamado António, como o meu pai. Estou muito feliz e só tenho pena que nem o meu pai nem meu avô estejam aqui para o conhecerem, tenho certeza que ficariam muito felizes e orgulhosos. Estou te mandando um vídeo. Ele é muito tranquilo e dorme super bem. Nasceu há 10 dias.

Agora te digo porque entro em contato. A Lia sempre foi super curiosa sobre a minha mãe, meu pai e as suas aventuras e ações. Quando estava grávida, vasculhou as caixas da minha mãe e sugeriu que eu escrevesse sobre o que aconteceu nas últimas décadas, para contarmos ao menino quando ele fosse maior, também para conhecer os avós. 

Quando ela me falou nisso eu fiquei um pouco indeciso, porque meu pai não gostava nada daqueles tratamentos de “herói” que às vezes faziam, odiava cerimônias e só queria ficar em paz, e com a doença piorou. Eu não queria escrever, apesar dela insistir. Mas quando vi António pela primeira vez, algo mudou. É mesmo parecido com o meu pai, Fatima. Apesar de ser bebê, fui procurar fotos do velho na infância e encontrei algumas escaneadas num HD velho. São mesmo iguais, o velho e o garoto: nos olhos, na boca, no sorriso, mas o nariz é da Lia. 

Nas caixas da minha mãe encontramos revistas, artigos, escritos por você, pelo meu pai, pelo Sukumar, pela Stephanie, e fotos de vocês. Você ainda tem o contato destas pessoas? Em outro HD também tinha videos, fotos, notícias e reportagens onde apareciam coisas da Última Geração, da Liga, do Mundo Novo. Há ali muita coisa que eu não sei. Lembro-me de algumas coisas, claro, mas falta muita informação que não está lá, especialmente sobre a minha mãe, e também falta entender a ordem em que as coisas aconteceram.

É por isso que te mando este mail. Decidi juntar histórias sobre o que aconteceu nos últimos 30 anos para contar ao garoto. Estou recolhendo notícias e informações em geral para explicar como acabamos chegando aqui. Sei que muita coisa desapareceu com as grandes redes, mas ainda deve haver material, não? Olha, também quero saber melhor sobre o que aconteceu à mamãe, à toda aquela gente que ia lá em casa. Algumas delas eu cheguei a rever, outras desapareceram. Havia Pepe, que o meu pai sempre defendia na prisão, e que trazia sempre os melhores presentes para nós, lembra? A polícia sempre estava à procura dele. Acho que tinha a sua idade. 

Então, não vou te encher mais com isso, mas se estiver de acordo em me ajudar e quiser falar comigo podíamos marcar uma chamada um dia desses à tarde. Que acha?

– Alex


Foi assim que esta história começou. O meu email para a Fatima Idrissi, uma camponesa marroquina que militou com os meus pais nos movimentos revolucionários dos anos 20 foi o primeiro de muitos contatos que fiz durante vários meses com pessoas de vários lugares. Os entrevistei, viajei e recolhi material para tentar ajudar a contar a loucura que foram os últimos 25 anos.

Me perdoem pela confusão, mas estes anos foram mesmo uma loucura. Comecei escrevendo esta história para o meu filho, mas descobri, ao longo do caminho, que o fazia muito para mim, e pela memória dos meus pais e de tanta gente que se empenhou em conseguir impedir as Grandes Crises ou a Grande Mudança, como as chamamos agora. Não sabemos se as coisas vão piorar, porque no ano passado a temperatura voltou a aumentar, depois de quatro anos de queda, mas não voltou ao calor mortal de anos atrás. Conseguimos cortar as emissões que eram necessárias até 2030 e continuam a descer desde então.

Fui convencido por outras pessoas, incluindo a minha companheira Lia e amigas que trabalham na imprensa e no mundo do entretenimento, a transformar esta história num livro. Talvez. Não sou especialista nisso, muito do que vão ler são impressões minhas, coisas que me aconteceram, entrevistas que fiz, pessoas que conheci, notas sobre os nossos dias (principalmente os meus), notícias que conseguimos recolher, correspondências que troquei com a Lia e os grandes esquemas que fomos construindo para explicar algumas das ramificações do que aconteceu durante décadas.

Talvez alguém possa pegar tudo isso, escrever algo e até fazer uma peça de teatro ou um filme. Seria bom, para  entendermos melhor o que aconteceu. Hoje sei bem mais sobre eu mesmo e sobre quem me criou. Fiquei impressionado, assustado, frustrado e deslumbrado pela história louca do mundo nas últimas décadas e o papel que pessoas normais como a minha mãe e o meu pai desempenharam nela. 

– Alexandre Águas
Lisboa, janeiro de 2043


Sento-me na janela de minha casa em Lisboa. Moro em Santa Apolónia, próximo do rio Tejo. O antigo Hotel da Estação, tão frequentemente inundado, foi abandonado há mais de uma década. A poucos metros da minha casa pego o bonde que sobe até Graça. As antigas docas e o cais dos cruzeiros, que há meia dúzia de anos ainda apareciam acima da água durante a maré baixa, agora estão sempre submersos. Há vários anos que os cruzeiros desapareceram dali.

Cumprimento a cobradora do bonde, lembrando-me do tempo em que fiz este trabalho, durante mais do que um ano. Era tranquilo, embora um pouco monótono, ficar subindo e descendo as ruas durante quatro horas por dia. O bonde passa por entre as árvores da rua do Vale de Santo António e consigo pegar um pêssego com a mão – mas ainda está verde. Estamos na primavera e está quase época da colheita da fruta. Esta encosta foi toda plantada com pessegueiros, enquanto outras partes da cidade têm outros frutos, de acordo com o solo e o sol.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Há mais de uma década que o asfalto foi arrancado, mas o nível de contaminação dos solos, depois de tantos anos debaixo de alcatrão, não permite ainda plantar comida nem frutos em várias zonas da cidades. As ruas que tinham pedra em vez de asfalto são as que estão em melhor estado e por isso têm sido aquelas com mais produção. Chegado a Graça, caminho na direção da Biblioteca da Penha de França. Apesar de haver bibliotecas mais próximas de casa – e há mais de 300 bibliotecas em Lisboa – é ali que consegui marcar um estúdio com os materiais de gravação e o sinal de internet para gravar a entrevista com a Fatima. 

Conheço a Fatima há muitos anos, de um período de talvez quase um ano que ela passou na casa dos meus pais. Ela vinha fugida da polícia política marroquina, segundo me lembro. Deve ter uns 50 anos e esteve em vários movimentos desde nova. Na entrevista com ela vou tentar entender o que aconteceu entre o fim dos anos 10 e o fim dos anos 20, porque ela afastou-se das coisas mais tarde. 

— Olá Fatima. Salam!

— Alexandre, você está tão bonito! Que felicidade te ver. Fiquei muito interessada no que me escreveu. Tenho todo o prazer em te ajudar, também tenho muito material aqui guardado que pode te interessar. Posso te mandar fotos e arquivos.

— Seria ótimo, sim, Fatima. Olha, vou gravar a chamada, ok?

— Sim, já não me preocupo com essas coisas há muito tempo.

— Desculpa, na verdade, já estava gravando sozinho, começou automaticamente.

— Não tem problema, Alexandre. Conta-me então o que você quer saber.

— Muito bem. Fatima El Idrissi, pode nos contar quem você é?

— Bem, sou uma agricultora urbana em Marrakesh. Fui militante revolucionária durante muitos anos, criei e dirigi organizações políticas, participei na Revolução Marroquina e fiz parte, durante vários meses, da assembleia constituinte ecosocial da República de Marrocos. Depois participei nas Caravanas do Futuro antes de me retirar da vida ativa, porque tenho estado doente. Pulmões e coração. O preço a pagar por tanta agitação.

— Quando você começou a se envolver com política?

— Comecei a ganhar consciência política durante as primaveras árabes. Tinha 18 anos e participei nos protestos aqui no Marrocos. Olhávamos para o que ocorria no Egito, onde tiraram o Mubarak, para a Tunísia, para a Líbia… O mundo estava todo mudando. Fiquei muito entusiasmada quando foi anunciado que íamos ter uma nova constituição, mas no fundo acabou por ser um truque. O rei manteve o seu poder intocado, e apesar de alguma maquiagem, as coisas ficaram quase iguais. Depois as coisas começaram a explodir pela Europa, Estados Unidos, Brasil, Turquia. No fim, com o que aconteceu no Egito, na Líbia, na Síria, na Grécia e até mais tarde nos Estados Unidos e Brasil, foi muito frustrante.

O mundo parecia avançar para melhor e em poucos anos tudo voltou para trás. Perdi a minha inocência política aí. Mas a vida continuou. Em 2017 a COP-22 foi aqui em Marrakesh. Foi um processo de aprendizagem e de envolvimento muito interessante para mim, de conhecer um mundo novo. Eu já estava interessada em alterações climáticas e quis participar. Fui convidada por um amigo a participar em alguns eventos e ele me explicou tudo: o governo tinha inventado uma série de ONGs para fazerem papel de figuração de sociedade civil, as negociações não iam dar em nada, nas mesmas salas eram feitos grandes negócios – agrícolas, energéticos, de transportes – pelas mesmas empresas que estavam agravando as guerras climáticas. Era incrível. O furor depois da assinatura do Acordo de Paris estava desaparecendo e, mesmo no meio da COP, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. Não se falava de mais nada na conferência, ele tinha prometido mesmo acabar com o Acordo de Paris. Mais uma desilusão para mim, mas pelo menos o meu amigo já tinha me avisado. 

(Ilustração: Nuno Saraiva)

— Foram muitas desilusões, como você fez para se manter entusiasmada e envolvida?

— Ia ligando e desligando. Nessa altura ainda não estava em nenhum grupo, fazia alguns trabalhos avulsos, traduções, algum secretariado. Procurava não ficar deprimida, seguia a minha vida. Era amiga de várias pessoas que estavam envolvidas em lutas ambientais, sociais, as lutas dos professores. Marrocos era muito agitado… Mesmo antes da COP em Marrocos tínhamos tido protestos por todo o país, porque a polícia tinha assassinado um vendedor de rua, as pessoas estavam descontentes de forma intermitente. Estavam desde as primaveras árabes. Antes, mesmo…

— Mas dizia-se nessa época que o governo marroquino era muito avançado em termos de política climática… 

— O rei era dono das barragens, das centrais a carvão e a gás, das centrais solares. Tinha sido construída em Ouarzazate a maior central solar do mundo, hectares e hectares de painéis no meio do deserto, não dava para ver a extensão toda a partir do chão, era preciso subir uma torre. Mas aquela energia não era para nós, todos os planos eram exportar para a Europa, claro. E como não havia água para limpar a areia, era preciso estar sempre tirando água de onde as comunidades precisavam dela. Além disso, o governo e o rei continuavam a explorar os combustíveis fósseis, lembro-me bem que mesmo durante a cúpula eles estavam dando concessões para explorar petróleo e gás no mar, e gás de xisto em terra.

Tudo o que pudesse dar dinheiro para o rei e o seu séquito, eles faziam. Entretanto, uma grande parte da população não tinha sequer energia elétrica. Se desmantelassem a central solar de Ouarzazate e entregassem painéis solares nas aldeias e nos bairros, as coisas seriam profundamente diferentes, mas isso não servia os interesses da monarquia.

— E quando você começou a se envolver mais seriamente?

— Em 2019, quando começaram as greves climáticas, a minha irmã mais nova me pediu ajuda para falar com professores e organizar greves, e eu aceitei ajudá-la. Depois surgiu o Extinction Rebellion Maroc e eu fiquei curiosa, participei em algumas ações, éramos muito reprimidas pela polícia, mas começamos a criar um grupo com alguma confiança, e a falar com outras organizações que não eram focadas em mudanças climáticas, mas também estavam preocupadas.

Algumas pessoas que tinham estado envolvidas em protestos da COP-22 e que queriam mesmo fazer alguma coisa juntaram-se. Com a Covid, tudo foi abaixo, e com a morte de uma pessoa importante para o movimento eu senti a necessidade de assumir mais responsabilidade. Depois veio a crise pós-Covid, a crise da energia, os preços de tudo aumentaram, a invasão da Ucrânia pela Rússia, o genocídio em Israel e a ascensão da extrema-direita na Europa, pareciam uma premonição que tudo ia piorar. Começamos a falar com pessoas de vários outros países árabes e do Norte de África. A primeira coisa urgente a fazer era travar o acordo da União Europeia para enviar milhões de refugiados para a Líbia, mas isso não era suficiente. As ondas de calor estavam fazendo milhares de pessoas morrerem todos os anos aqui no Marrocos, mas nunca se dizia que morriam de calor, eram sempre “mortes adicionais”. 

E o descontentamento crescia. Os preços da comida começaram a oscilar muito, fazendo com que por vezes não fosse possível sequer comprar cereais. Quando houve a grande “maré morta”, centenas de milhões de peixes chegaram à costa aqui também. Com o aumento da temperatura, as costas atlânticas da Europa, do Norte de África e a Costa Leste dos Estados Unidos ficaram cobertas do prateado dos peixes mortos e o cheiro nauseante dos seus corpos em decomposição. Foi devastador para as comunidades pesqueiras, todo mundo sentiu a catástrofe. Nessa altura envolvi-me no Mundo Novo, foi a minha primeira grande experiência internacional. Foi nessa época que o governo decidiu vir atrás de nós. Vários companheiros foram presos e eu fui alertada a tempo e fugi para a Europa, porque a minha mãe tinha nacionalidade francesa e por isso eu tinha passaporte.


(Ilustração: Nuno Saraiva)

 

 

Maré da morte
Milhões de peixes mortos nas costas do Atlântico Norte

Cientistas estimam que mais de um bilhão de peixes mortos chegaram às costas da América do Norte, Europa Ocidental e Norte de África. México, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Irlanda, País de Gales, França, Espanha, Portugal e Marrocos acordaram esta manhã com verdadeiras marés de morte, com uma enorme mortandade de toda a espécie de peixes. Os cientistas apontam para o grande aumento de temperatura e para os surtos de algas e cianobactérias que têm coberto grandes áreas do oceano, reduzindo a disponibilidade de oxigênio. As autoridades têm tentado remover os peixes, com ajuda das populações, perante um acumular de nuvens de insetos nas costas que podem constituir um risco maior para a saúde pública.


– – – –  Interrupção de gravação – – – –

(Ilustração: Nuno Saraiva)
'42 ‘42 é uma série de ficção científica escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva. “’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de mudanças climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Rio Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da  construção de uma descrição limpa, higiênica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde ‘a’ até ‘b’, em ’42 vamos ter  retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e  heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro.”

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