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’42 | Gianrocco em Madrid [Ep.7]

No sétimo capítulo da série de ficção ’42, o impacto do movimento revolucionário Ecomunista contra a hecatombe climática
João Camargo e Nuno Saraiva
'42
(Ilustração: Nuno Saraiva)
ARevista Opera tem o prazer de apresentar ao público brasileiro a série portuguesa de ficção científica ‘42, escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva.

Leia os capítulos anteriores:
[Prólogo] | [Ep.1]  | [Ep.2] | [Ep.3] | [Ep.4] | [Ep.5] | [Ep.6] |


Recebi uma chamada no meu celular, de um número que não conhecia. Estava pendurado num telhado consertando o sistema elétrico de um centro comunitário, de cadeirinha e capacete posto, mas consegui atender.

Ciao.
– Sim?
– Alexandre, es Gianrocco Fatin.
– Ah, olá, olá.
Supo que quer falar comigo. Pode falar agora?
–  Uff, agora estou trabalhando, Gianrocco. A Fatima me enviou seu email, posso te contatar por lá?
– Ok. Eu vou viaggiare e só volto ne trê meses. Se quiser enviarmi as tuas perguntas, posso responder por lá.
– Posso saber para onde vai viajar?
– Vou para Barcelona, Madrid e Paris. Você consegue me encontrar em algum desses lugares?
– Acho que consigo pegar o trem noturno para Madrid. Quanto tempo vai ficar?
– Fico as três semanas primeiras de Outubro. Vem me encontrar?
– Preciso ver umas coisas, mas é possível que sim.
– OK! Se precisar de um lugar para dormir eu te posso ajudar.
– Muito obrigado. Entro em contato em breve.
Arrivederci, Alexandre!

Senti que tinha perdido uma oportunidade ao não falar com ele naquele momento, mas fiquei animado com a ideia de viajar e conhecer pessoalmente uma figura histórica como era o Gianrocco. Quando cheguei em casa contei as novidades à Lia e ela não me pareceu muito feliz com a notícia.

– O bebê tem quatro meses e está propondo me deixar aqui com ele sozinha por semanas.
– Não, não, eu achava que podíamos ir todos.
– Mas onde íamos ficar?
– O Gianrocco disse que era possível ajudar com um lugar para ficarmos alguns dias.
– E você tem quilômetros? Eu acho que não tenho suficiente por causa das viagens no ano passado.
– Eu não viajo há quatro anos, tenho quilômetros mais que suficientes para irmos a Madrid.

Lia sorriu.

– Quando vamos?

Durante as semanas seguintes nos preparamos para a viagem, confirmei com a OCT – Organização Central do Trabalho – que seria possível abrir duas semanas no meu calendário, ainda mais fácil por ter sido pai há tão pouco tempo, e informei a assembleia do bairro de que não estaríamos presentes nas comissões a que pertencíamos nesse período. Recolhi material sobre o período revolucionário e sobre o próprio Gianrocco nas bibliotecas e nos materiais dos meus pais.

Na sexta-feira às 14h da noite pegamos o trem noturno para Madrid. Embora exista um trem rápido, eu sempre tinha achado os trens-dormitórios românticos (e com o bebê é o melhor) e práticos, para chegar fresco de manhã em Madrid. Enquanto a Lia e o António dormiam, eu li alguns papéis para me preparar para a minha entrevista do dia seguinte.


Uma revolução sem imprensa livre: entrevista com Gianrocco Fattini, um dos líderes da Liga Disruptiva

Nas últimas semanas temos assistido a ações e protestos pelo clima em uma crescente. Desde a interrupção da final da Taça da Itália à interrupção do abastecimento de gás na região do Piemonte, o grupo tem sido notícia e há neste momento um clamor por parte das autoridades políticas e judiciais para deter e desmantelar o grupo. Falamos hoje com Gianrocco, um dos ativistas envolvidos, que esteve detido durante quatro dias após o bloqueio da estrada A4 de Brescia a Pádua. Mais de 20 ativistas foram presos pelos bloqueios sucessivos em viadutos e no asfalto, que levaram a uma interrupção daquela estrada por mais de 10 horas. 

– Gianrocco, vocês já conseguiram chamar muito a atenção para a questão climática com os seus protestos, a que já ninguém no país é indiferente, mas estão causando caos e afetando gravemente o cidadão comum com a escalada de protestos. Qual é o seu atual objetivo?

– Boa tarde. O nosso objetivo é tornar claro que os desastres que têm acontecido nos últimos anos não são “fenômenos naturais”, mas sim fenômenos “capitalistas”, produzidos no que já só pode ser descrito como deliberado por quem gere o capitalismo nacional e  global. Estamos demonstrando que este é um sistema muito frágil, que não está aguentando a crise climática, mas também que, em vez de ser destruído pela natureza, deve ser desconstruído por nós. E quando dizemos nós, também estamos dizendo à sociedade que não pode ser um pequeno grupo ou pequenos grupos sozinhos resolvendo este assunto, que a velha política de serem os partidos resolvendo não vai funcionar, que as decisões e as mudanças não podem ser operadas simplesmente delegando as nossas responsabilidade a outras pessoas. O assunto não é só crise climática, é todo o sistema que mantém a maior parte da humanidade na miséria, que está destruindo o nosso futuro e que destrói todos os planos de impedir a crise climática. Os planos do nosso governo, fascista ou não, são de levar-nos para o abismo.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– Mas se o objetivo é acusar o governo, porque é que estes protestos não são dirigidos aos ministérios, aos governantes, à primeira-ministra Meloni?
– Nós denunciamos e expomos os governantes, de todos os partidos, há anos. Mas o verdadeiro governo de Itália, os verdadeiros governos do mundo, não são apenas estes arremedos fascistas. Estes são apenas peões do capitalismo econômico, da ENI, da ILVA, da FIAT. O nosso objetivo não é derrubar este governo, que seria rapidamente substituído por outro para manter o mesmo caminho. Nós estamos convocando a sociedade toda a construir um futuro, porque no rumo em que estamos, apenas temos a catástrofe pela frente.

– Mas acham que com este tipo de disrupção, a sociedade vai prestar mais atenção a vocês?
– A sociedade já está prestando atenção, e até pode não gostar da maneira como estamos tentando acordá-la, porque o sono é profundo, mas está acordando. Mais e mais pessoas estão se juntando a nós, apesar de todo o ruído dos setores mais conservadores.

– Mas que legitimidade têm vocês para achar que a sociedade tem de ouvi-los? Vocês não são cientistas, nem sábios que saibam mais do que o restantes pessoas. Porque não levam as suas ideias às urnas, fazendo um partido político?
– Os cientistas estão nos alertando para a crise climática há décadas. Os governos reconhecem que esta crise existe, mas não cortam as emissões. A nossa legitimidade vem do fato de estarmos vivos neste momento. Estamos vivos e de olhos abertos, reconhecendo que se não agirmos agora, as condições que permitiram o aparecimento da civilização humana vão desaparecer – em alguns lugares já desapareceram, e a situação só está se agravando. Formar um partido político para entrar no jogo eleitoral é perder tempo: a crise climática não vai corresponder aos vários calendários eleitorais e às pequenas disputas políticas. As instituições para onde seríamos eleitos foram construídas para se auto-preservarem. Mesmo que provocássemos o maior terremoto eleitoral da história e ganhássemos as próximas eleições, que nem sei em que ano são, as medidas necessárias para travar a crise climática seriam paradas pelas outras instituições feitas para preservar as primeiras: a presidência da república, o tribunal constitucional, os tribunais e outros. Todo esse aparelho está perpetuando o caminho da catástrofe.

Mas isso não é antidemocrático? Vocês são uma minoria. Estão falando dos garantidores da democracia como seus inimigos.
– Não consigo imaginar nada mais antidemocrático do que o colapso da nossa civilização. E a razão pela qual estamos fazendo isso é para falar diretamente com a sociedade, porque não é só nossa responsabilidade agir, é de todo mundo que está vivo. E também o fazemos porque a imprensa não o fará por nós.

– Então do que está falando é de uma revolução. Mas uma revolução sem imprensa livre, um golpe de estado.
– A ideia de que uma imprensa privada que é majoritariamente propriedade das grandes empresas que mandam na Itália e em outros países é uma imprensa livre é muito discutível, para não dizer que é factualmente errada. Mas queremos fazer uma revolução sim, e não um golpe de estado. Senão não estávamos falando com toda a sociedade.

– Mas eu estou aqui, como imprensa. Não é estranho, segundo essa sua ideia?
– Se o negócio é vender informação, e nós somos informação, o que estão fazendo aqui é um negócio.

– E não se pode fazer um negócio e fornecer um serviço à sociedade ao mesmo tempo?
– Quando não há uma fronteira entre onde começa um e acaba outro, não. É isso mesmo que acontece quando a energia ou os transportes se tornam um negócio: deixam de ser um serviço e passam a ser só uma mercadoria. É por isso que estamos nesta crise.

– Obrigado, Gianrocco.
– De nada.


Ecomunistas tomam o poder na Itália, Grécia, Eslovênia, Espanha e Portugal

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Após a ordem de tomada das cidades livres europeias, houve motins em várias Forças Armadas mobilizadas com esse fim. Várias unidades prenderam os seus oficiais, com especial foco das “unidades naturalizadas”. Na sequência destes acontecimentos, dirigentes políticos ligados à “Muralha” na Espanha e Itália fugiram do país, criando um vazio de poder. Neste momento, alianças lideradas pelo movimento Ecomunista ocuparam os parlamentos em Roma, Atenas, Ljubljana, Madrid e Lisboa, enquanto o Exército Verde ocupou os bancos centrais, bolsas de valores e portos nas capitais. Há rumores de que membros da Descarbonária e do Mundo Novo também farão parte das alianças políticas, embora sejam aguardadas informações precisas sobre o processo. Em Roma, um dos porta-vozes ecomunistas, Gianrocco Fatin, anunciou a abolição dos campos de refugiados, a cessação imediata dos ataques à Federação de Cidades Livres, a nacionalização das indústrias fósseis e seu desmantelamento. “Hoje começamos um novo período na História da Europa, e convocamos as pessoas a sair às ruas novamente no próximo sábado para comemorar a Revolução Europeia que se junta às revoluções africanas, francesa e brasileira. Um novo mundo está nascendo, a Humanidade não vai aceitar desvanecer na poeira do lucro e da avareza do capital. Vamos expulsar o ódio que nos tem oprimido durante as últimas décadas. Vamos construir, com as nossas mãos e a nossa força, o futuro. Vamos travar o caos. As unidades insurretas do exército nacional aceitaram a constituição do governo provisório na Itália. Não vamos fazer uma vingança sobre aqueles que nos perseguiram durante anos, mas eles terão de responder perante o povo”, declarou o italiano num vídeo ao vivo do Parlamento em Roma, transmitido no BlueSky. Vários elementos dos conselhos de administração e principais acionistas das indústrias fósseis foram detidos e os seus bens confiscados, tendo-se iniciado um processo de julgamento dos mesmos por genocídio e crimes contra a Humanidade, segundo informação do governo provisório italiano.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Guardei os papéis e baixei a janela. Já tinha lido alguns livros enviados para os meus pais em que o nome Fatin aparecia, ligado a organizações como os Ecomunistas e o Mundo Novo. Era uma figura muito importante! Só me preocupava com não lhe fazer perguntas banais e para as quais não fosse fácil encontrar a resposta só consultando em algum livro ou na internet. Faltava-me conhecimento.

Depois de uma hora, o trem parou. A qualidade das linhas e serviços ainda é fraca, e a nova indústria ferroviária tem tido dificuldades em produzir a quantidade necessária de trens para cobrir todo o território e as panes frequentes. A transformação das carrocerias dos automóveis em outro material metálico é difícil, em particular quando falamos de trens. Só a transformação do material metálico e plástico dos automóveis em bicicletas é que está funcionando plenamente, porque é muito mais simples. Ainda estávamos parados quando adormeci. Fechei os olhos e quando os abri estávamos parando em Madrid. A Lia dava de mamar ao António.

Saímos do vagão na estação de Chamartin. Eram 1h da manhã mas já estavam 28ºC. Fomos comer em uma dessas “cafeterias” que agora só existem ao redor das estações. Pedi churros com marmelada e chocolate quente para mim e para a Lia. 

– Lo siento, no hay chocolate ya hace 2 años. Pero ¿le traigo otra bebida?

Bebemos chá enquanto o senhor tirava os churros da airfryer. O bebê estava super divertido com a música, com os barulhos altos que saíam das máquinas e das pessoas que estavam por ali, muito animadas. Nessa altura entrou no bar um homem moreno, alto e com ombros largos. Tinha uma barba muito preta. Apesar do cabelo grisalho, não parecia muito velho, com pele lisa, e olheiras muito cavadas. Sorriu quando me viu e gritou.

– Alessandro!
– Sim. – respondi.
– Aproximou-se e me deu um grande abraço e dois beijos, como se nos conhecêssemos desde sempre. Afastou-se e abraçou a Lia, beijando-lhe as bochechas também.
– E têm um bambino! Como se chama?
– António.
– Ah, como o nono!

Fez cócegas na barriga do António, que sorriu animado.

– Que bom te ver de novo, Alex!
– Eu acho que nunca nos vimos.
– Vi fotos tuas molte ani fa. Devia ter uns 12 anos. La tua mamma sempre mostravaci le tue foto.
Sorri.
Scusa, vou ligar o simultâneo.

Tirou do bolso das calças o pequeno aparelho que colocou ao redor do pescoço, que traduzia enquanto a pessoa falava.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

– Vocês têm de ficar no centro do Mundo Novo aqui perto. É um edifício bastante grande e há vários apartamentos para viajantes e convidados. Eles me deram um apartamento muito grande e eu estou sozinho com o meu companheiro, apesar de ter vários quartos. Podem instalar-se lá, se quiserem. Quantos dias planejam ficar?
– Dois, se for possível.
– Claro, claro. Vamos. Eu hoje posso falar contigo até às 3h.

Fomos a pé até um grande edifício próximo dali. Na entrada, o Gianrocco falou com o senhor que estava na porta, que nos ajudou a transportar as coisas até o apartamento no 12º andar. Era muito alto e tinha uma excelente vista sobre a cidade de Madrid. Explicou-me que aquela tinha sido a sede de antigas petrolíferas. Era muito alto e ao lado havia três obras. Nos explicaram que tinham sido outras torres semelhantes àquela, que estavam sendo desmanteladas, como outros arranha-céus, para que os seus materiais fossem reutilizados em consertos e isolamento de casas. A própria torre Novo Mundo (à época tinha-se chamado torre Cepsa) começaria a ser desmantelada no ano seguinte, explicou-nos. Subimos no elevador até o andar 40. O Gianrocco contou-me que aquele era o maior edifício do país e um dos maiores da Europa. Abriu a porta e entramos. Levou-nos até um dos quartos.

– Alex, podemos falar agora um pouco antes de eu ter de sair.
– Sim, vamos.

A Lia e o António brincavam em cima da cama. Pisquei para eles e fomos para a mesa da sala.


Entrevista com Gianrocco Fatin

– Gianni, pode me chamar de Gianni.

– Gianni, obrigado pela entrevista. É um prazer te conhecer.
O prazer é todo meu, de conhecer o filho da Marta.

– Quero começar perguntando algo que a Fatima me contou quando nos falamos. O que foi a Assembleia Sangrenta? E qual foi o papel do movimento Ecomunista na mesma?
Foi um massacre que ocorreu em Londres, em que foram mortas centenas de pessoas ligadas à petrolífera Shell. Alguém colocou explosivos no porão do hotel onde se realizava a Assembleia Geral de Acionistas e, durante a reunião, ocorreu uma detonação. Foi uma operação criada para incriminar o movimento climático global e para decapitar a direção da Shell. Nessa altura já existiam frações armadas de outros movimentos: a ORCA, a Decarbonari e os Neolludistas, mas eles não tinham relação política conosco. O movimento Ecomunista internacional tinha sido fundado apenas há um ano, mas já era considerado uma enorme ameaça pelo poder. Foram plantadas provas contra membros nossos no local do crime, e as polícias vieram imediatamente tentar nos pegar. Prenderam quase todas as nossas pessoas com alguma presença pública, e várias organizadoras. A tua mãe foi detida, por exemplo. Nessa altura nós já estávamos preparados para ser atacados, então sofremos o golpe, mas não conseguiram nos destruir. O Exército Verde foi ativado nessa altura. Apesar da intensa campanha midiática e repressiva contra nós, continuamos operando em quase todos os países. Durante seis meses aceleraram processos judiciais para nos condenar rapidamente, colocando até muitos dos nossos membros em isolamento. Na Inglaterra chegaram a condenar pessoas do JSO a 40 anos de prisão, mas era uma fraude. Menos de um ano depois surgiram provas da realidade: a Saudi Aramco foi hackeada e foram revelados os memorandos internos que demonstravam como tinha sido a petrolífera quem preparou o atentado com mercenários corsos. Embora os governos de vários países tenham assumido que tínhamos sido incriminados, muitos tribunais e polícias continuaram a não libertar o nosso pessoal. Então organizamos fugas em massa de várias prisões, articuladas pelo Exército Verde, que fazia as autoridades de trouxas. Em vários locais havia manifestações exigindo a nossa libertação, com ocupações de ministérios e indústrias. Começou uma onda de mais ou menos um mês de sabotagem de gasodutos e dutos de hidrogênio na Europa e até nos Estados Unidos, apesar deles estarem em guerra. A nossa popularidade nunca tinha sido tão grande. Os governos acabaram por nos libertar todos, mas os que hesitaram ficaram muito descredibilizados no processo.

Consegue fazer um resumo de como as coisas ocorreram antes do período revolucionário na Europa?
– Bem, o período revolucionário continua até hoje, apesar das coisas estarem mais calmas. Se fizermos uma análise histórica, a Europa estava há décadas tentando resolver os problemas insanáveis do capitalismo europeu, a desigualdade entre países centrais e periféricos, tentando equilibrar a sua falta de recursos energéticos fósseis, de matérias primas raras e manter relações comerciais extremamente favoráveis (para si) com países mais pobres e antigas colônias. Era um continente velho em todos os sentidos: pirâmide etária, prisão ao passado escravista e colonial, quase irrelevância geopolítica (perante os grande blocos chinês, russo e americano, a Europa se punha na ponta dos pés, sem grande sucesso), nenhuma imaginação ou capacidade de inovação política. Eram o pior dos bons alunos do neoliberalismo, ainda copiando as suas lições históricas dos séculos anteriores. A evolução da União Europeia fracassava em todos os principais aspectos no início da década de 20: havia guerras nas suas fronteiras, extrema desigualdade entre os países, uma geração jovem inteira sem acesso a oportunidades, e uma infraestrutura institucional que agravava todas essas tendências. Além disso, havia a hecatombe climática. Em 2019 começaram as primeiras greves climáticas, na época convocadas por jovens (os chamados Fridays for Future) e o movimento de desobediência civil em massa, com origem no Reino Unido, os Extinction Rebellion. Eram os primeiros ensaios do período revolucionário. Estavam ali alguns dos quadros e militantes que fariam mais tarde as revoluções, mas nem todos vinham dali. Com  a pandemia de Covid-19, os movimentos perderam dinamismo, e houve uma irrupção social nos Estados Unidos (o Black Lives Matter). Depois disso, começou um longo período de dispersão e reflexões táticas e estratégicas. O programa político base estava definido e tinha sido escrito pela comunidade científica: era preciso cortar 50% das emissões de gases de efeito de estufa globais até 2030, em relação às emissões de 2010. Mas faltava o componente político. O programa não podia ser só emissões, esta era a maior transformação material da história da Humanidade, e o sistema capitalista jamais a aceitaria. Também era uma transformação que, se fosse incompleta, seria basicamente inútil. Além disso, se fosse orientada para os interesses dos ricos, implicaria na morte de bilhões de pessoas. Era preciso um programa político muito além de energia e transportes. Incrivelmente, ao invés de um acordo para travar o colapso, a burguesia da época escolheu o colapso civilizacional para manter o sistema, para continuar a ganhar dinheiro durante mais uma dúzia de anos. Olhando para trás, é difícil de entender. Por isso é tão importante ouvir os testemunhos dos CEOs das petrolíferas no Grande Julgamento. Aquelas pessoas julgavam não ser humanos como nós, eram fanáticos religiosos, só que a sua religião era o capitalismo e o capitalismo recompensava-os pela sua devoção… Aliás, eles recompensavam a si mesmos. E tinham recursos suficientes para manter exércitos inteiros, partidos, imprensa, toda uma estrutura para evitar qualquer transformação ou sequer um abrandamento.

– E como vocês se organizaram?
Dentro do movimento havia grande diversidade ideológica, e o nosso acordo político a princípio era frágil, quando grupos e coletivos começaram a se encontrar, se forçaram a se encontrar perante o avanço do caos. Havia um acordo total acerca da necessidade dos cortes de emissões, mas grande hesitação acerca das táticas para atingi-los. Enquanto vários grupos tentavam empurrar o movimento para radicalização e ações diretas cada vez mais contundentes, havia sempre muitos impeditivos para fazer coisas em que muitas pessoas fossem detidas ou que pudessem ser presas.

A perspectiva do que é que o movimento era, qual o seu papel, também era complexa. Alguns achavam que o nosso papel era chamar a atenção e pressionar os governos para fazer os cortes, mas depois de anos a fio de falhas reiteradas em conseguir o que era necessário, quase todos abandonaram essa proposta. Mas mesmo depois desse ponto ultrapassado, havia ainda questões centrais: então se não eram os governos que o iam fazer, quem era? O movimento? Como? Transformar-se em partido? Mas para isso não havia já outros partidos? Crescia desde o início da década a questão do que fazer com a palavra de ordem “Mudar o sistema, não o clima”. O que significava mudar o sistema? Ganhar eleições? Vários partidos verdes tinham ganho eleições sem conseguir fazer o que era necessário. E a esquerda que fazia do clima programa político não conseguia pensar além do que lhe pudesse garantir os votos suficientes para influenciar um programa de governo nacional ou local. Era preciso muito mais do que ganhar eleições, era preciso fazer revoluções. Mas não havia programas para isso, não havia tradições ou guias para isso. Perante a ausência dessas referências, a maior parte das organizações congelava, mesmo perante o caos.

– Mas outras organizações não estavam congeladas, nomeadamente da extrema-direita…
A extrema-direita não tinha vergonha. Em qualquer catástrofe climática despejava o seu programa de ódio: organizavam pogroms contra campos de refugiados depois de incêndios florestais, acusando refugiados e migrantes de ateá-los; quando havia cheias ou furacões atacavam migrantes que pediam auxílio, quando havia fome culpavam judeus, negros, gays e pessoas trans por terem despertado a “fúria divina”. Eles não tinham qualquer hesitação quanto ao poder. E foi através de eleições que muitas vezes chegaram ao poder e não hesitaram em impor as barbaridades que sempre desejaram.

– E como o seu movimento conseguiu  finalmente avançar?
– Partes do movimento e alguns pensadores procuravam novas portas e, muito antes de chegarem à ideia do Ecomunismo, chegaram à teoria revolucionária do “movimento enquanto partido”. Muita gente hesitou, mas gente suficiente avançou para a ideia de que o movimento revolucionário não podia delegar a sua tarefa em abstrações. Ter que ter muita gente não podia ser uma trava. Não podíamos simplesmente ficar presos em noções como “o povo” ou “a classe”, tínhamos de avançar enquanto ainda havia alguma coisa para salvar. A resistência foi enorme, até entre as organizações que se apresentavam há décadas como “revolucionárias”, que se fixavam nas fórmulas antigas das condições objetivas e subjetivas para fazer uma revolução, que era preciso ter a maior parte das pessoas do nosso lado antes de avançar, que a violência não era método para chegar ao poder, que não tínhamos legitimidade para avançar. Mas não tinham qualquer proposta alternativa para tentar derrubar o capitalismo e travar o colapso climático, o que os deslegitimava perante o movimento. Apontavam-nos dizendo que estávamos numa tendência sectária, que íamos ficar isolados, enquanto na verdade o campo progressista todo ia ficando cada vez mais isolado perante a ascensão do terror climático e da extrema-direita. 

– Porque escolheram chamar-se Ecomunistas? Não tiveram receio de ficar associados aos comunistas soviéticos e à Rússia?
– Nessa altura, sabíamos dos imensos riscos que era urgente tomar. Um desses riscos tinha que ver com a ligação política à tradição histórica revolucionária. Não queríamos saber dos estalinistas que usavam o nome “comunista”, e que em grande medida eram negacionistas climáticos, obcecados com a ideia de que a revolução era uma questão de fábricas e operários metalúrgicos e não uma questão de travar o caos. Mas, por outro lado, não podíamos abdicar da tradição revolucionária comunista, das profundas transformações que ocorreram em tantos locais por todo o mundo, que ainda era, em conjunto com as guerrilhas de independência anticolonial, a principal referência para a ação revolucionária. Apesar da retórica ou, aliás, por causa da retórica anti-sistema da extrema-direita, arriscamos (foi só mais um risco, na época tomamos outros muito maiores) chamar-nos Ecomunistas. Partilhávamos com a tradição comunista da necessidade de destruição do capitalismo, abolição dos privilégios das elites dos 1% e, a nossa prioridade imediata, o desmantelamento da infraestrutura do capitalismo fóssil. 

Outra grande divergência tinha a ver com o que fazer depois dos cortes serem atingidos. E aí sabíamos que era mais importante fazer as revoluções que ter o acordo total sobre o que ia acontecer depois. Havia ecoanarquistas, ecossocialistas, ecofeministas, decrescimentistas puros, e misturas entre tudo isso. Conseguimos juntar números suficientes para fazer planos para tentar revoluções em vários países e foi o que fizemos. O nome era mais uma questão de comunicação do que de outra coisa. 

O nosso programa político, o que fez o movimento Ecomunista, era a revolução e o desmantelamento dos combustíveis fósseis. Passados todos estes anos, acho que tivemos toda razão. O que se passou em diferentes territórios foi diverso, hoje nos organizamos de maneiras diferentes, mas chegamos a muitas soluções parecidas e as sociedades, que há pouco mais de uma década asfixiavam na fumaça e no desespero da falta de visão de futuro, aspiram hoje a futuros melhores do que o passado. Assaltamos o Palácio de Verão e ganhamos. E não fizemos o que o Stálin fez. Ainda somos um movimento global, aberto, pragmático e em constante reformulação. E em diferentes contextos fazem-se coisas muito diferentes, não há fórmulas únicas. Vivemos num planeta em grande mudança e para continuarmos a criar um futuro, precisamos continuar a mudar. 

– E como planejaram a revolução?
– Ui, essa pergunta não é fácil de responder com o tempo que tenho agora. Podemos deixar para mais tarde ou amanhã? Eu e o meu companheiro vamos ter reuniões o dia todo e depois queríamos levar vocês para jantar. Pelas 14 da noite? Podemos encontrar vocês aqui?

– Sim, claro. Mas às 14h já é noite?
– Sim, acho que já é. Ainda não se habituou ao horário revolucionário? Aproveitem para passear. Está fresco, dá para andar na rua o dia todo. Vão conhecer as partes novas da cidade, se não conhecem ainda.

– OK, obrigado.
– Pode deixar a chave com o senhor lá de baixo.


Novo horário transitório: como são as novas horas?

Em janeiro entrará em vigor o novo horário global, baseado na duração das horas de sol por dia. Serão mantidas as 24 horas diárias, mas a sua distribuição será transformada, começando o dia, as antigas 00h00 ou meia-noite, no horário do nascer do sol. Quando a transição para o novo horário estiver terminada, após um período de três anos, as horas começarão a ser contadas com o nascer do sol, crescendo até às 23h, a última hora da noite. Como exemplo demonstrativo, um dia no Solstício de Verão em Lisboa, que anteriormente começaria às 6h12 e terminaria às 21h05, começará às 0h00 e terminará às 14h53, prosseguindo a contagem das horas da noite a partir das 14h54 e terminando a contagem das horas diárias às 23h59, antecedendo o novo dia, que recomeça às 0h00.

Na região do Equador a duração dos dias é constante ao longo do ano, de aproximadamente 12 horas. Nas latitudes ao Norte, a duração dos dias aumenta com a latitude entre 21 de março e 23 de setembro e se reduz com as latitudes entre 23 de setembro e 21 de março. Nas latitudes ao Sul do Equador, a duração dos dias diminui com a latitude de 21 de dezembro até 21 de junho e aumenta com a latitude de 21 de junho até 21 de dezembro. Com o aumento da latitude até os círculos polares a Norte e a Sul, a duração do dia com sol pode crescer, até durar as 24h do dia, ou reduzir-se a 0h, dependendo novamente da altura do ano. O novo horário terminará com mudanças de horário.

(Ilustração: Nuno Saraiva)

Como funcionará o horário transitório?

O horário transitório resulta de um equilíbrio do horário atual e do horário futuro. Os dias começarão não às 00h00, mas resultarão de um arredondamento em relação ao horário atual. Isso significa que no Solstício de Verão, as 00h00 não corresponderão exatamente às 6h12, mas antes às 6h00, mantendo o horário da República Ecosocial Portuguesa uniforme em toda a sua extensão. 

Para o ano de 2032 e os dois anos seguintes, se aplicarão horários semelhantes aos seguintes:

Mês Hora média do nascer-do-sol atual Hora convencionada do nascer do sol Equivalência antigo e novo horário
Janeiro 7h49 7h00 7h00 = 0h00
Fevereiro 7h25 7h00 7h00 = 0h00
Março 6h52 7h00 7h00 = 0h00
Abril 5h57 5h00 5h00 = 0h00
Maio 5h22 5h00 5h00 = 0h00
Junho 5h10 5h00 5h00 = 0h00
Julho 5h28 5h00 5h00 = 0h00
Agosto 5h50 5h00 5h00 = 0h00
Setembro 6h17 6h00 6h00 = 0h00
Outubro 6h44 6h00 6h00 = 0h00
Novembro 7h18 7h00 7h00 = 0h00
Dezembro 7h45 7h00 7h00 = 0h00

Este novo horário tem como objetivo ligar as horas do dia às horas de luz e máxima energia, com as primeiras horas sendo as horas da manhã. O objetivo do novo horário transitório é aumentar a harmonia das atividades humanas com o ciclo de energia solar disponível, concentrando a atividade humana quando há mais energia disponível e contribuindo para reduzir o impacto das sociedades humanas no planeta. Esta medida, apoiada em mais de 60 países, faz também parte dos esforços de redução do esforço laboral, da melhoria das condições de saúde e harmonização entre os meios rurais e urbanos.

A comissão para a criação do 13º mês do ano está neste momento trabalhando para a integração do mês de Tellus no calendário, que normalizará todos os meses do ano com 28 dias. Tellus terá 29 dias nos anos bissextos, sendo prevista a sua entrada em funcionamento oficial em 2045.

'42 ‘42 é uma série de ficção científica escrita por João Camargo, pesquisador de mudanças climáticas e militante do movimento por justiça climática, e ilustrada pelo cartunista, pintor e ilustrador Nuno Saraiva. “’42 começa no fim. O futuro em que se conseguiram travar os piores cenários de mudanças climáticas começa na Lisboa de 2042, uma cidade muito transformada em quase tudo: transportes, energia, alimentação, água, lixo, o Rio Tejo e a comunidade. Em vez do exercício linear da  construção de uma descrição limpa, higiênica, contada apenas pelo lado vencedor e com poucas contradições, desde ‘a’ até ‘b’, em ’42 vamos ter  retratos do que aconteceu em Lisboa e em cidades por todo o mundo, testemunhos, notícias, documentos dos anos loucos em que quase tudo mudou. Guerras, migrações em massa, traições, episódios trágicos e  heróicos, revoluções, transformações, um pouco de tudo aconteceu para chegarmos a 2042 e haver novamente esperança no futuro.”

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