Pesquisar

Frei Betto: o legado de Francisco e os desafios do papa Leão XIV

Após morte de Francisco, papa Leão XIV terá a difícil missão de preservar a unidade da Igreja sem sufocar a pluralidade de expressões católicas

Frei Betto
Robert Francis Prevost, o papa Leão XIV, se dirige aos fiéis no Vaticano durante sua posse. (Foto: Mazur / cbcew.org.uk / Catholic Church England and Wales / Flickr)
Robert Francis Prevost, o papa Leão XIV, se dirige aos fiéis no Vaticano durante sua posse. (Foto: Mazur / cbcew.org.uk / Catholic Church England and Wales / Flickr)

Ocenário que o novo papa Robert Francis Prevost herda está longe de ser tranquilo. A Igreja Católica enfrenta inúmeros desafios internos e externos que exigirão habilidade diplomática, coragem pastoral e capacidade de diálogo com o atribulado mundo atual.

Sob o pontificado de Francisco, aumentaram as tensões entre setores conservadores e progressistas dentro da Igreja. A polarização crescente no mundo ecoa na barca de Pedro. Críticas ao seu estilo pastoral e às reformas vieram de cardeais influentes, grupos leigos e teólogos. Essa divisão reflete a diversidade política e cultural que marca a conjuntura global. O papa Leão XIV terá a difícil missão de preservar a unidade da Igreja sem sufocar a pluralidade de expressões católicas.

O fato de adotar o nome Leão na sequência de Leão XIII (1810-1903), o papa da encíclica “Rerum Novarum”, a primeira a abordar o tema das relações trabalhistas, demonstra a sua sensibilidade para as questões sociais. Há que considerar também que Prevost é agostiniano, discípulo de Santo Agostinho, um filósofo pagão que se converteu à fé cristã e se tornou um pilar da teologia. Boa parte de sua atividade sacerdotal e episcopal foi no Peru, o que nos permite considerá-lo o segundo papa latino-americano. 

No entanto, a escassez de vocações sacerdotais, sobretudo na Europa e no continente americano, ameaça a sustentabilidade pastoral da Igreja em muitos lugares. Ao mesmo tempo, o envelhecimento do clero e a sobrecarga das funções pastorais dificultam a presença efetiva da Igreja nas inúmeras comunidades. Isso reabre os debates sobre o celibato facultativo, a ordenação de mulheres, o direito dos casais homoafetivos ao sacramento do matrimônio.

Após doze anos de pontificado, o papa Francisco deixou um legado marcante na Igreja Católica e na conjuntura mundial, tanto por sua abordagem pastoral quanto por suas posições diante dos problemas contemporâneos. Primeiro papa latino-americano, primeiro jesuíta no cargo e primeiro a adotar o nome Francisco — em referência a São Francisco de Assis —, Jorge Mario Bergoglio conduziu a Igreja por tempos turbulentos, marcados por crises internas e profundas transformações sociais, políticas e ambientais.

Desde sua eleição em 2013, Francisco buscou uma Igreja mais próxima dos excluídos e do mundo real. A opção preferencial pelos pobres, o cuidado com a Criação, a crítica à cultura do descarte e a defesa dos migrantes foram marcas registradas. Encíclicas como “Laudato Si’” (2015), sobre a ecologia integral, e “Fratelli Tutti” (2020), sobre a fraternidade universal, revelaram um papa com sensibilidade global e consciência dos desafios éticos da contemporaneidade.

Na Igreja, promoveu reformas significativas na Cúria Romana, buscou maior transparência financeira, puniu um cardeal corrupto, simplificou estruturas administrativas. Adotou uma postura mais pastoral em temas sensíveis, como a homossexualidade, os divorciados recasados e o papel das mulheres na Igreja, embora mantendo a doutrina tradicional em muitos aspectos. Seu estilo direto e despojado, aliado ao compromisso com a misericórdia, revitalizou a imagem da Igreja para muitos fiéis.

Apesar dos esforços de Francisco para valorizar a presença feminina na Igreja, as demandas por maior protagonismo das mulheres crescem. A nomeação de mulheres para cargos na Cúria Romana e a criação de comissões para estudar o diaconato feminino são passos importantes, mas insuficientes. A misoginia é muito forte na Igreja. O novo pontífice enfrentará uma pressão crescente por avanços concretos nessa área, inclusive com implicações doutrinárias e eclesiológicas. Os conservadores, no entanto, bradarão com seus velhos argumentos de que Jesus era homem e não havia nenhuma “apóstola” no grupo dos Doze…

 Leia também – A jornada de Jorge Bergoglio, o Papa que tentou reformar a Igreja e não conseguiu 

O escândalo dos abusos sexuais continua sendo uma ferida aberta na Igreja. Francisco deu passos significativos para enfrentar o problema – como o motu proprioVos Estis Lux Mundi” –, mas há ainda resistência institucional e omissões. Leão XIV precisará manter e aprofundar políticas rigorosas de prevenção, punição e apoio às vítimas.

O mundo multipolar e fragmentado requer uma liderança espiritual capaz de promover pontes – eis o significado da palavra “pontífice”. O pontificado de Francisco destacou-se pelo diálogo com o Islã, o Judaísmo e outras tradições religiosas, além de seus apelos pela paz em conflitos como os da Síria, Ucrânia e Israel. Prevost terá de cultivar esse papel diplomático e moral num cenário global marcado por xenofobia, racismo, guerras e mudanças climáticas.

Talvez o maior desafio do novo pontífice será manter a vitalidade da missão evangelizadora em um mundo cada vez mais secularizado. A Igreja precisa encontrar linguagem, atitudes e estruturas que falem ao coração das pessoas de hoje, especialmente dos jovens. Isso exige criatividade pastoral, abertura à sinodalidade – processo já iniciado por Francisco – e coragem para repensar formas de presença e atuação no mundo digital, nas periferias urbanas e nos contextos multiculturais.

Penso que o legado mais significativo de Francisco é a tentativa de devolver à Igreja um rosto de ternura, simplicidade e diálogo. Em tempos de crise de autoridade e de perda de confiança nas instituições, ele insistiu na misericórdia como o nome de Deus. Leão XIV não começará do zero – terá diante dos olhos o testemunho de um pastor que, com suas limitações, tentou ser fiel ao Evangelho no coração das contradições do século XXI.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Jesus militante – Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros. Freibetto.org

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

Continue lendo

Em diferentes contextos, líderes de extrema direita promovem um modelo de governança que algema o Estado de suas funções redistributivas, enquanto abre caminho para que o cripto-corporativismo baseado em IA opere livremente – às vezes até promovendo seu uso como política oficial do Estado. (Foto: Santiago Sito ON/OFF / Flickr)
Por que a extrema direita precisa da violência
Entre 1954 e 1975, as forças armadas dos Estados Unidos lançaram 7,5 milhões de toneladas de bombas sobre o Vietnã, o Laos e o Camboja, mais do que as 2 milhões de toneladas de bombas lançadas durante a Segunda Guerra Mundial em todos os campos de batalha. No Vietnã, os EUA lançaram 4,6 milhões de toneladas de bombas, inclusive durante campanhas de bombardeios indiscriminados e violentos, como a Operação Rolling Thunder (1965-1968) e a Operação Linebacker (1972). (Foto: Thuan Pham / Pexels)
O Vietnã comemora 50 anos do fim do período colonial
"Pepe" Mujica, ex-guerrilheiro Tupamaro e ex-presidente do Uruguai, falecido em 13 de maio de 2025. (Foto: Protoplasma K / Flickr)
Morre José Mujica: o descanso do guerreiro

Leia também

São Paulo (SP), 11/09/2024 - 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato
Brasília (DF), 12/02/2025 - O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, durante cerimônia que celebra um ano do programa Nova Indústria Brasil e do lançamento da Missão 6: Tecnologias de Interesse para a Soberania e Defesa Nacionais, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
O bestiário de José Múcio
O CEO da SpaceX, Elon Musk, durante reunião sobre exploração especial com oficiais da Força Aérea do Canadá, em 2019. (Foto: Defense Visual Information Distribution Service)
Fascista, futurista ou vigarista? As origens de Elon Musk
Três crianças empregadas como coolies em regime de escravidão moderna em Hong Kong, no final dos anos 1880. (Foto: Lai Afong / Wikimedia Commons)
Ratzel e o embrião da geopolítica: a “verdadeira China” e o futuro do mundo
Robert F. Williams recebe uma cópia do Livro Vermelho autografada por Mao Zedong, em 1 de outubro de 1966. (Foto: Meng Zhaorui / People's Literature Publishing House)
Ao centenário de Robert F. Williams, o negro armado
trump
O Brasil no labirinto de Trump
O presidente dos EUA, Donald Trump, com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional e Secretário de Estado Henry Kissinger, em maio de 2017. (Foto: White House / Shealah Craighead)
Donald Trump e a inversão da estratégia de Kissinger
pera-5
O fantástico mundo de Jessé Souza: notas sobre uma caricatura do marxismo
Uma mulher rema no lago Erhai, na cidade de Dali, província de Yunnan, China, em novembro de 2004. (Foto: Greg / Flickr)
O lago Erhai: uma história da transformação ecológica da China
palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina