Em um depoimento no começo de março, o almirante Craig S. Faller falou para o Congresso dos EUA: “Esse hemisfério em que vivemos está sob ataque… Nós estamos perdendo nossa vantagem de posição neste hemisfério e é necessária ação imediata para reverter essa tendência”. Em 2018, Faller foi indicado como comandante do Comando do Sul dos Estados Unidos (SOUTHCOM, responsável por supervisionar as atividades militares norte-americanas na América Latina) pela administração de Trump, apesar de seus laços com um empreiteiro da área da defesa notoriamente corrupto. No dia 16 de março deste ano, ele falou em uma audiência do Comitê das Forças Armadas do Senado sobre o orçamento militar do ano fiscal de 2022. Depoimentos desse tipos geralmente servem como uma plataforma para oficiais do governo defenderem maiores orçamentos ao enfatizarem tanto os sucessos de suas agências como os desafios remanescentes.
Neste contexto, o impulso geral do relato do almirante Faller não é surpreendente: os EUA estão sob ataque, e o SOUTHCOM está defendendo-o bravamente, mas precisará de ainda mais dinheiro para continuar a fazer isso. “Os próprios princípios democráticos e valores que nos unem”, alega ele na versão escrita de seu relato, “estão sendo ativamente minados por violentas organizações criminosas transnacionais e pela [China] e Rússia. O Irã também almeja “tirar vantagem das frágeis democracias nascentes na região para explorar seus recursos e a sua proximidade com os Estados Unidos”. Finalmente, “atores regionais malignos” estão “abrindo portas” para a influência estrangeira e organizações criminosas. Entretanto, Faller ofereceu pouca evidência de que essas ameaças são realmente tão severas como ele as fez parecer.
Apesar de descrever Cuba, Nicarágua e Venezuela como “atores regionais malignos”, e o Irã como uma das muitas “ameaças”, esses quatro países ocupam apenas duas das 22 páginas da versão escrita do depoimento de Faller, que está predominantemente preenchido com detalhes sobre um canal de notícias iraniano em língua espanhola na região (os EUA também possuem um). Das sete sentenças na seção sobre a Venezuela, seis descrevem a crise humanitária no país e nem tentam retratá-la como uma ameaça. Apesar da política de sanções dos EUA à Venezuela depender da Casa Branca oficialmente descrever a Venezuela como “uma incomum e extraordinária ameaça à segurança nacional e política externa dos Estados Unidos”, o SOUTHCOM aparentemente tem pouco a falar sobre o quanto isso seria verdadeiro.
De acordo com Faller, “organizações criminosas transnacionais” são uma séria ameaça à segurança na região, mas até nisso sua análise está mal focada. O papel dos cartéis da América Central na violência generalizada e o deslocamento forçado de quase meio milhão de pessoas mal são mencionados. Mas ele menciona a minúscula pegada regional do Hezbollah, embora o grupo esteja supostamente implantado na região da Tríplice Fronteira na América do Sul, a mais de 5,6 mil quilômetros do território norte-americano. Apenas dois grupos criminosos com base no hemisfério ocidental são mencionados por seus nomes: um par de grupos guerrilheiros colombianos de esquerda que, segundo Faller, possuem laços estreitos com o governo Maduro na Venezuela (apesar de não existir nenhuma evidência forte sobre isso até o momento).
Os verdadeiros tópicos do depoimento de Faller foram a China e a Rússia, que são vistos por um prisma da Guerra Fria como grandes potências competidoras para justificar os altos níveis de gastos de defesa dos EUA. Na versão escrita do seu depoimento, Faller menciona a China 26 vezes (mais do que qualquer nação na América Latina) e o governo russo 14 vezes.
O depoimento oral de Faller foi menos contido que o escrito, alegando que “o Partido Comunista da China, com sua influência insidiosa e corrupta, almeja o domínio econômico regional e global, e sua própria versão de uma ordem internacional baseada em suas regras”. Como Fareed Zakaria recentemente declarou, estamos em uma “nova era de orçamentos inchados do Pentágono, tudo justificado pela grande ameaça chinesa”. Observadores notaram que esse tipo de retórica da Guerra Fria alimenta a discriminação e violência contra norte-americanos de origem asiática; e que ela também não tem vínculo com a realidade.
Faller alega primeiramente que a China e a Rússia “estão se aproveitando da pandemia” para “ganhar mais acesso, presença e influência na região”. Os impactos da Covid-19, diz ele, “criam uma região mais frágil que serve como local fértil para nossos competidores avançarem em seus interesses, tanto malignos como legítimos…”. Esse argumento retrata o fim da pandemia como uma empreitada competitiva, ao invés de uma cooperativa, e implica que a China e a Rússia estão agindo agressivamente contra os EUA quando buscam atender as necessidades da América Latina que os EUA negligenciaram. Como Faller reconhece: “Se os EUA querem ser o parceiro escolhido, isso significa que ele deve ser o primeiro a responder em uma crise”.
Apesar do SOUTHCOM ter se engajado em alguns esforços de ajuda humanitária durante a pandemia, desde hospitais de campanha até o fornecimento de EPI, a resposta geral dos EUA na América Latina tem sido pobre. Nos meses iniciais críticos, o governo dos EUA pode ter na verdade acelerado o alastramento da pandemia pela região através de deportações frequentes de indivíduos infectados. Os EUA em seguida retiraram seu financiamento tanto da OMS como também da Organização Pan-americana de Saúde, quando essas organizações mais precisavam de fundos para ajudar países em desenvolvimento no combate à pandemia. Embora legisladores norte-americanos recentemente tenham começado a pôr maior ênfase na ajuda internacional, o auxílio dos EUA para a região demorou a chegar. De fevereiro até agosto de 2020, os EUA prometeram apenas 145 milhões de dólares para toda a América Latina em ajuda relacionada à Covid (equivalente a 2.3% do total do orçamento militar dos EUA para ajuda).
Quando as vacinas se tornaram disponíveis, os EUA se apropriaram dos suprimentos globais e se aliaram com as grandes farmacêuticas para ajudar no bloqueio a outros países na manufatura das suas próprias versões genéricas das vacinas. Os EUA inicialmente se recusaram a compartilhar seus estoques até com um país vizinho, o México, e agora parecem estar utilizando-as como barganha para fazer com que o México impeça os imigrantes de cruzarem sua fronteira. Os EUA também pressionaram o Brasil a não aceitar a vacina russa, pois isso seria em “detrimento da segurança e proteção dos EUA”.
A razão para nações como o Brasil se virarem para a China por vacinas não é a agressão chinesa, mas o contraproducente “nacionalismo de vacinas” da política norte-americana. O mesmo se aplica para as finanças: quando os EUA falham em fornecer à região a ajuda necessária, a ajuda chinesa torna-se um substituto lógico. Como muitas outras ameaças à segurança nacional, o problema aqui não está em Pequim ou Moscou, mas em Washington.
Para além da Covid-19, Faller apresenta uma longa lista de ações através das quais a China e a Rússia estão aumentando sua influência na América Latina. Mas os EUA também estão fazendo a maior parte das coisas da lista de Faller. Presume-se que os EUA têm o direito à hegemonia sobre a América latina, “nossa vizinhança”, uma perspectiva que remonta à Doutrina Monroe e que sugere que as ações da China e Rússia são uma ameaça não para a América Latina, mas para a soberania dos EUA sobre ela.
Faller observa que a China e a Rússia se moveram para expandir sua limitada presença militar na América Latina. A Rússia mais que dobrou sua presença naval na região, para um total de 11 envios entre 2015 e 2020. Não há números precisos sobre as ações navais do SOUTHCOM nesse período, mas há razão para crer que foram muito maiores. Comunicados à imprensa do SOUTHCOM mencionam pelo menos cinco instâncias de navios militares dos EUA sendo enviados para região somente em 2019: em maio, duas vezes, em junho, e duas vezes em setembro, sem incluir os envios de aeronaves. O ano de 2020 também teve muitos posicionamentos navais dos EUA, incluindo aqueles para pressionar a Venezuela e dissuadir a China e a Rússia.
Dizem-nos que a China está buscando formas para “estabelecer logística global e infraestrutura em nosso hemisfério” (ênfase adicionada). A China e a Rússia, combinadas, possuem zero bases militares na América Latina (a não ser que incluamos uma estação espacial secreta construída como uma joint venture entre a China e a Argentina). Os militares dos EUA, em contrapartida, possuem de alguma forma uma presença duradoura em mais uma dúzia de países latino-americanos.
O comércio da China com a América Latina está crescendo a um ritmo impressionante, e Faller aponta que “agora é a segunda maior parceira comercial da região, atrás dos EUA”. Não se sabe por que a competição comercial é inerentemente malévola, mas mesmo colocando isso de lado, o segundo lugar da China sequer alcança metade do comércio dos EUA com a América Latina, em termos brutos. A China possui três acordos comerciais na região, e os EUA possuem 11.
Faller descreve a Rota da Seda da China como “um esforço coordenado por Pequim para endividar países frágeis na região, usurpar a soberania de nossos parceiros e aliados, e usar sua influência para extrair concessões quando necessário”. Além do fato de que tais alegações são questionáveis, deve-se notar que o FMI e o Banco Mundial, em que os EUA possuem influência desproporcional, foram criticados por impor condições danosas aos países em desenvolvimento por décadas.
A Rússia está vendendo armas para a América Latina, mas os EUA são de longe o maior vendedor no mundo; na realidade, as vendas de armas da Rússia e da China estão caindo, ao passo que as dos EUA crescem. Sob Trump, ficou ainda mais fácil para que as armas norte-americanas caíssem nas mãos de organizações criminosas e violadores de direitos humanos na América Latina.
O governo dos Estados Unidos forneceu e fornece assistência militar às forças de segurança latino-americanas há muito mais décadas do que a China, e em quantidades muito maiores. Embora Faller contraste o treinamento militar russo com os programas de treinamento (muito maiores) dos EUA que, segundo ele, incluem “valores como o respeito pelos direitos humanos e o Estado de Direito”, as forças apoiadas pelos EUA têm cometido violações aos direitos humanos na região por mais de um século. Faller até menciona uma unidade do Exército dos EUA “atualmente treinando forças colombianas e hondurenhas” em operações antinarcóticos, dois países que têm recebido assistência de segurança maciça dos EUA e onde as forças de segurança contam com registros longos e contínuos de abusos dos direitos humanos.
A credibilidade de Faller sobre os direitos humanos torna-se particularmente questionável quando ele afirma que a base dos EUA na Baía de Guantánamo “continua a conduzir operações de detenção seguras, legais e humanas”. No início deste ano, especialistas em direitos humanos da ONU a descreveram como “um lugar de arbitrariedade e abuso, um local onde a tortura e os maus-tratos eram galopantes e permanecem institucionalizados, onde o Estado de Direito é efetivamente suspenso e onde a justiça é negada”.
No final, Faller critica a Rússia e a China por suas campanhas de desinformação na região. Esses esforços de “fake news” são um problema grande e crescente na América Latina, para o qual os EUA contribuem. Nos últimos anos, empresas americanas se envolveram em campanhas de desinformação em grande escala em toda a região. Apesar dos cortes recentes, os EUA também continuam a gastar milhões anualmente no Office of Cuba Broadcasting, cuja programação de notícias foi descrita por uma avaliação do governo dos EUA como “propaganda ineficaz”.
A análise de Faller só faz sentido através das lentes do extremo excepcionalismo estadunidense, em que uma ação é boa quando os EUA a fazem, mas ruim quando outros a fazem. Quando Cuba envia médicos ao exterior para fornecer a tão necessária assistência, é porque eles estão tentando “construir boa vontade internacional e ganhar acesso à porta dos fundos para minar democracias frágeis”. Mas quando os EUA, que possuem uma história real de atuação para “minar democracias frágeis”, se envolvem em missões de diplomacia médica praticamente idênticas, é simplesmente para fornecer “apoio relevante e oportuno aos nossos parceiros e demonstrar nosso compromisso com a região”.
Faller alega que “devemos construir NOSSO time para ganhar essa competição estratégica”. Como? “Para simplificar, nós vencemos os malvados ao sermos os mocinhos. Enquanto nossos adversários procuram por oportunidades para extrair, nós procuramos por caminhos para construir”.
Se os EUA querem ser o “mocinho” na América Latina, deveriam começar colocando os interesses da região em primeiro lugar. Isto significa possuir uma estratégia de cooperação regional para fornecer aos vizinhos do hemisfério o apoio que eles realmente querem, sem condições – e não com o financiamento a operações contraproducentes dos militares e outras agências de segurança focadas em reafirmar a hegemonia norte-americana.