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A queda de Cabul e o segundo governo Talibã

A conquista de Cabul pelo Talibã é uma derrota conceitual dos que decretavam o enterro de Clausewitz, mas não uma derrota absoluta dos EUA.
A conquista de Cabul pelo Talibã é uma derrota conceitual dos que decretavam o enterro de Clausewitz, mas não uma derrota absoluta dos EUA. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Staff Sgt. Marcus J. Quarterman / U.S. Army)

Vinte anos após a queda de seu governo no Afeganistão, militantes do Talibã avançaram sobre a capital Cabul no último domingo (15), consolidando por fim um avanço contínuo sobre as principais cidades e províncias do país nas últimas semanas. O presidente Ashraf Ghani, como centenas de civis afegãos e funcionários estrangeiros, deixou o país às pressas, supostamente dirigindo-se ao Tajiquistão, na fronteira norte. No aeroporto de Cabul, sob controle militar norte-americano, ao menos cinco pessoas morreram em meio a centenas que se aglomeram esperando uma retirada. A expectativa do governo dos EUA é conseguir retirar ao menos cinco mil pessoas por dia pelo aeroporto.

A volta do Talibã ao poder era previsível desde que a saída das tropas norte-americanas foi anunciada. No entanto, a expectativa da maior parte dos analistas, e mesmo de estrategistas norte-americanos, é que a chegada do grupo a Cabul ocorresse em meses, não dias; com alguma luta, não sob pacíficas rendições. De acordo com o The Washington Post, o rápido e imprevisto “colapso” militar, província a província, pode ser explicado por uma série de concessões, capitulações e deserções firmadas entre o Talibã e forças do governo afegão desde o acordo entre o grupo islâmico e os Estados Unidos, ainda sob Trump. “Alguns [dos membros das forças de segurança afegãs] só queriam dinheiro”, disse um membro das forças especiais afegãs ao jornal. “Mas outros viram o comprometimento dos Estados Unidos para uma retirada como uma ‘garantia’ de que os militantes retornariam ao poder no Afeganistão, e queriam assegurar um lugar no lado vencedor”. Assim, quando Biden anunciou a retirada das tropas, em abril, as capitulações se avolumaram.

Mais do que qualquer coisa, as notícias que chegam do Afeganistão representam uma derrota conceitual àqueles que, declarando um enterro de Clausewitz, acreditavam que armas, dinheiro e tecnologia decidiriam as “guerras do futuro”. Ao contrário, as duas décadas de intervenção norte-americana, o uso vultoso de forças mercenárias e os quase um trilhão de dólares despejados no Afeganistão só serviram para consolidar ainda mais fortemente o sentimento antiamericano no país, em parte convertido em apoio popular ao Talibã, à medida que o respaldo à guerra dentro dos Estados Unidos também decaía. Sinais de que política e guerra, afinal, são coisas muito vinculadas.

No entanto, apesar da desordem na retirada e as previsões mal feitas quanto à velocidade do avanço do Talibã, a queda de Cabul dificilmente poderia ser considerada uma derrota absoluta para os Estados Unidos – em que pese a quantidade de analistas que declaram um Biden “humilhado”, entre eles um Donald Trump que, até o ano passado, também negociava com o Talibã a sua saída do Afeganistão.

O próprio Joe Biden declarou hoje que “nossos verdadeiros competidores estratégicos, China e Rússia, amariam que os EUA continuassem a enviar bilhões de dólares e recursos com a intenção de estabilizar o Afeganistão indefinidamente”. Uma outra forma de dizer que os EUA preferem tornar o Afeganistão um problema de seus “verdadeiros competidores estratégicos”, o que, para todos os efeitos, o renascido “Emirado Islâmico” de fato passa a ser. Com uma estreita e montanhosa fronteira ligando a zona autônoma de Xinjiang ao Afeganistão, a China tem investimentos importantes em nações fronteiriças – Tajiquistão e Uzbequistão, por exemplo, mas também Paquistão – que compõem um corredor estratégico da Iniciativa Cinturão e Rota. A perspectiva de um governo Talibã também levanta a possibilidade do Afeganistão se tornar um porto-seguro para o terrorismo islâmico, incluindo o Partido Islâmico do Turquestão (TIP), com seus militantes uigures atualmente ativos na Síria, e que clamam pelo estabelecimento de um novo estado em Xinjiang. Não impressiona, portanto, que os chineses tenham se apressado a se reunir com os líderes Talibã, na perspectiva de colher uma declaração – como fez os Estados Unidos no ano passado – de que não apoiarão atividades do TIP em seu território, e para pressionar o Talibã a manter as conversações de paz em Doha. A queda de Cabul acende ainda um alerta vermelho no Irã, tanto pela sua própria segurança quanto pela memória da repressão contra xiitas durante o primeiro governo Talibã. Mas, acima de tudo, pode tensionar ainda mais as relações da Índia frente a Pequim e o Paquistão. De uma forma ou de outra, humilhante para os EUA ou não, um governo Talibã reorganiza as tensões em uma região bem distante do espaço vital norte-americano, mas às portas de seu principal rival e ao lado das linhas logísticas de seu mais ambicioso projeto – algo que vale tanto se a situação se estabilizar quanto se a região recair no caos.

O Talibã cresceu na década de 90, em função dos dólares despejados pelos estadunidenses e canalizados pelos paquistaneses para os mujahidin mobilizados contra a República Democrática do Afeganistão e os soviéticos, entre as décadas de 70 e 80. Consolidou-se como governo em 1996, para ser derrubado pela intervenção norte-americana em 2001, depois do atentado às Torres Gêmeas. Quarenta anos depois das intervenções e guerras, toma Cabul mais uma vez, forçando o afegão médio que se desespera por um refúgio a lembrar como uma estupidez inaudita a frase de Rumi, poeta nascido oito séculos antes naquele país: “O sofrimento é um presente. É uma misericórdia escondida.”

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