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Bolívia: vozes e chaves de um processo em implosão

O enfrentamento entre Evo Morales e o seu sucessor, Luis Arce, parece ter chegado a um ponto irreversível na Bolívia. Como essa situação se desenvolveu e o que vem a seguir?
Gerardo Szalkowicz
A tensão entre o ex-presidente e o atual presidente, que foi seu ministro da Economia por onze anos, vem de longa data. Começou desde o primeiro minuto do mandato de Arce, quando em seu discurso de posse, em novembro de 2020, ele não mencionou o homem que o havia apontado como sucessor durante seu exílio, nem deu lugar em seu gabinete para os quadros evistas. (Montagem: Estúdio Gauche)

Os 18 tiros disparados contra o veículo de Evo Morales e a disputa narrativa sobre o evento parecem ter sido a gota d’água para o rompimento do ex-presidente com o governo boliviano, que chegou a um ponto de não retorno. A sensação é de que várias linhas vermelhas foram ultrapassadas. Que tudo se quebrou. O confronto entre o líder histórico e o seu sucessor, Luis Arce, passou do Twitter/X para as estradas, e a perspectiva de futuro é ainda mais turbulenta. Como essa situação chegou a esse ponto? O que vem a seguir? Conversamos com dirigentes de ambos os setores para tentar entender a autodestruição de um projeto popular que foi um exemplo para o mundo.

A tensão entre o ex-presidente e o atual presidente, que foi seu ministro da Economia por onze anos, vem de longa data. Começou desde o primeiro minuto do mandato de Arce, quando em seu discurso de posse, em novembro de 2020, ele não mencionou o homem que o havia apontado como sucessor durante seu exílio, nem deu lugar em seu gabinete para os quadros evistas.

Daquele momento até hoje, o conflito não parou de escalar. Com a disputa entre os dois pela liderança do Movimento Ao Socialismo (MAS) e a candidatura presidencial para 2025 como ponto central do conflito interno – uma discussão exageradamente antecipada – foram formados dois blocos que agora estão em uma fratura intransponível, que corre o risco de se agravar.

No dia 9 de novembro, o Tribunal Constitucional confirmou a inabilitação de Evo Morales, o que prenuncia um futuro ainda mais tumultuado.

No final de setembro, Morales entrou em ação, liderando uma marcha massiva de sete dias até a capital La Paz com uma lista de 18 exigências, que incluíam urgências econômicas, mas também contra sua proscrição. O governo respondeu com uma enxurrada de ações judiciais – incluindo uma por estupro – e o evismo aumentou a aposta, com três semanas de bloqueios de estradas que levaram o conflito a um nível máximo de tensão.

Foi nesse contexto que ocorreu o ataque ao carro de Morales. Para o líder cocaleiro, “o ataque foi perpetrado por um grupo de elite de militares e policiais”, e ele apontou diretamente para o presidente: “Lucho destruiu a Bolívia e agora quer eliminar nosso processo tirando minha vida”.

A versão do Poder Executivo foi antagônica. Primeiro, foi apresentada a tese de um “auto-ataque”, mas depois o ministro de Governo, Eduardo del Castillo – que encabeça os ataques ao ex-presidente – reconheceu que foi a polícia, mas disse que o incidente ocorreu quando Evo tentou fugir de um posto de controle antidrogas atirando contra os policiais.

Em entrevista ao El Salto, Juan Ramón Quintana, ex-ministro da presidência de Evo, disse que a tentativa de assassinato de Evo o umbral foi ultrapassado: “Achávamos que o topo da estratégia do governo era tirá-lo da competição política, mas nunca imaginamos que chegariam a esse ponto de querer eliminá-lo fisicamente. Há muitas evidências de que o governo ordenou o assassinato de Evo, o que já implica a derrubada da democracia e a entrada em uma fase de terrorismo de Estado”.

Quintana vai além (ou mais ao norte): “Não tenho dúvidas de que a mão sinistra dos Estados Unidos está envolvida nessa estratégia de exterminar Evo, como tem acontecido nos últimos 40 anos. Tenho certeza, com base nas informações que temos sobre os vínculos entre os ministros e a embaixada dos EUA, de que Arce teve de ceder à pressão dos gringos para tentar eliminar Evo. Ele está fazendo o trabalho sujo para eles.”

A pergunta de um milhão de dólares

A grande incógnita que há muito tempo tem sido objeto desse conflito interno a céu aberto é se existem profundas diferenças político-ideológicas, grandes desacordos programáticos, ou se se trata apenas de uma disputa de egos pela liderança do partido, ou talvez ambos.

Juan Villca, vice-ministro de Coordenação com Movimentos Sociais, conta ao El Salto sua visão: “Desde que Arce assumiu a presidência, Morales tem tentado sabotar, primeiro com seus legisladores bloqueando projetos na Assembleia e agora com os bloqueios de estradas. A filosofia, o paradigma com o qual o processo de mudança foi construído é claro, isso não mudou, o problema é que Morales quer ser candidato sabendo que não pode, que a Constituição o desqualifica. Esse interesse pessoal é o que o está arrastando a esse conflito e está condicionando os poucos apoiadores que ele tem em nível nacional”.

Do outro lado da disputa, Gabriela Montaño, ex-presidente dos Deputados e Senadores durante o governo Morales, diz que “o confronto dentro do MAS começou como uma luta pela liderança, mas depois se transformou em diferenças políticas, inicialmente orgânicas e depois até ideológicas”.

Montaño, também ex-ministra da Saúde, menciona além disso diferenças sobre a gestão econômica, por exemplo, “sobre a gestão da exploração do lítio e dos recursos estratégicos”, inúmeros casos de corrupção “que também aumentaram essa distância”, a tentativa constante de inabilitação de Morales e a suspensão das eleições internas, que teriam sido “a forma institucional pacífica de resolver conflitos”.

 Leia também – Bolívia e o golpismo como espetáculo 

Montaño lamenta que “as diferenças políticas foram transladadas para as organizações sociais e ocorreram confrontos muito severos. E isso é grave porque gera uma ruptura no tecido social e uma perda de solidez do bloco popular que sustentou o processo e garantiu que pudéssemos recuperar a democracia um ano após o golpe de 2019”.

É difícil avaliar o quanto da base social permaneceu vinculada a cada setor. E o quanto a militância está desvinculada de ambos. A marcha liderada por Evo no final de setembro conseguiu atrair 3,4 milhões de pessoas, de acordo com uma análise do Atlas Electoral baseada na ferramenta MapCheking. Para Villca, por outro lado, “as organizações sociais legítimas e legais, a estrutura orgânica dos trabalhadores, indígenas e camponeses foram capazes de garantir a unidade e o apoio de Morales foi reduzido às Seis Federações do Trópico de Cochabamba”.

O campo de batalha judicial

Após a ampla mobilização de setembro, o governo abriu pelo menos nove processos judiciais contra Morales. Ele também apresentou acusações contra vários líderes sociais, alguns dos quais foram presos. A acusação mais retumbante e complexa é a de estupro, baseada na tese de que Morales supostamente teve um relacionamento e um filho em 2016 com uma adolescente, então com 16 anos. Se trata de um caso descoberto durante o governo de facto de Jeanine Áñez, em 2019, e depois arquivado porque a lei boliviana exige uma queixa direta da suposta vítima.

Agora, uma promotora pública reativou o caso e rumores de um possível mandado de prisão começaram a circular. Morales falou pouco sobre o assunto, denunciou uma “campanha suja e mentirosa” e até comparou o atual presidente à líder golpista: “Não há nada e não haverá nada. Lucho [Arce] é igualzinho à Áñez. Lucho é Áñez”.

Ele também alertou sobre “um Plano Condor de lawfare” depois que o governo de ultradireita da Argentina apresentou outra denúncia contra Morales por tráfico de pessoas e abuso sexual durante seu exílio no país. “A coordenação entre o governo de Luis Arce e o governo sionista de Javier Milei é evidente”, disse Morales.

Quintana lembra que “todos os governos, desde 1985, abriram diferentes tipos de processos contra Evo, é uma perseguição sistemática promovida pelos EUA, portanto essa acusação se dá no contexto de uma guerra judicial, uma guerra política, na qual o governo busca destruir sua liderança e sua reputação”. Montaño acrescenta: “A perseguição judicial não é apenas contra Evo Morales, embora seja obviamente a mais visível, mas também contra muitos líderes de organizações sociais que têm sido críticos ao governo. A judicialização da política assumiu o papel central nesse conflito”.

Lamento boliviano

Essa luta interna ganha terreno fértil por causa da crise econômica do país. A queda na produção de gás, principal produto de exportação do país, e a necessidade de importar combustível, levaram à escassez de dólares, à falta de gasolina, à desvalorização da moeda, à baixa das reservas e ao aumento da inflação.Justamente o campo em que Arce, conhecido como “o pai do milagre boliviano” durante os anos de bonança e distribuição de riquezas no período em que esteve à frente do Ministério da Economia, melhor manobrava.

Hoje, depois de quatro anos como presidente, a gestão econômica de Arce gera um crescente descontentamento e alimenta um cenário de conflitividade social, enquanto despencam seus índices de aprovação e seu desejo de reeleição.

Há alguns meses, em um artigo para o El Salto, nos perguntávamos se ainda havia uma maneira de resolver a situação antes das eleições de agosto de 2025, nas quais um MAS dividido abriria as portas para um retorno da direita. Hoje, com um panorama marcado pela incerteza, degradação institucional e grande instabilidade política e econômica – o oposto do período 2006-2019 –, parece haver um consenso sobre a resposta.

Do lado governista, Villca afirma que “o governo sempre teve a vontade de construir pontes de diálogo, mas Morales não tem a menor intenção de querer dialogar; tudo o que ele quer é derrubar o governo”.

Já Montaño, membro do campo de Evo Morales, reflete: “A esta altura, parece muito difícil que haja uma candidatura unificada. Acho que hoje um diálogo e um acordo passariam pelas duas tendências dentro do MAS chegarem a um acordo mínimo para chegar às eleições de 2025 de forma ordenada, e que seja o povo boliviano quem defina por quem opta”.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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