A Câmara de Deputados aprovou ontem (10), em primeiro turno, o texto-base da criminosa Reforma da Previdência do governo Bolsonaro. 379 votaram a favor, 71 a mais do que o necessário para a aprovação, e 131 contra. Durante o resto da semana, os deputados discutirão os destaques (pontos específicos da reforma), para que ela seja enfim votada em segundo turno. Depois disso, segue para o Senado, que deve avaliá-la em agosto. A expectativa é que, até setembro, a reforma seja promulgada.
Ela é o anel de diamantes de Bolsonaro. É pelo reluzente presente, trabalho do ourives Paulo Guedes, que a burguesia de nosso país – um puxadinho do capital financeiro norte-americanos – apostou no tolo ex-capitão que hoje ocupa a cadeira presidencial. Hoje.
Ainda que seja o favor prometido por Bolsonaro, a aprovação desta quarta-feira não constitui para ele grande vitória política. Se é certo que a reforma poderia apaziguar os ânimos daqueles senhores que, aos poucos, iam percebendo que o presidente era um tanto inepto, mais atrapalhando do que ajudando, é também certo que a sua ineptidão para tocar a reforma, de qualquer maneira, foi a imagem que ficou marcada. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi ovacionado pelos deputados, enquanto Bolsonaro era solenemente ignorado. Líder da bancada do PSL, o deputado Delegado Waldir (GO) arrancou lágrimas de Maia ao chamá-lo de “grande condutor da reforma”, “um liberal que respeita todos os partidos, todos os parlamentares, da oposição ou não.”
O sentimentalismo do presidente da Câmara foi logo deixado de lado quando subiu à tribuna para discursar. Maia alfinetou Bolsonaro, gastou as palavras em auto-elogios ao Parlamento, falou de como “cada vez mais” tem convicção da necessidade de “reformar o Estado brasileiro” e levantou o moral do Centrão. Citou os “ataques ao Congresso Nacional e ao STF”, assegurando que “investidor de longo prazo não investe em país que ataca as instituições” e comemorou o “protagonismo do Parlamento”, que, de acordo com Maia, durante 30 anos teve suas prerrogativas retiradas. Assegurou que não quer, com isso, tirar as prerrogativas do presidente. Foi o que disse pela boca – pelos cotovelos, acenou: “sou eu o presidente em quem confiar, e a Câmara é vosso paraíso.”
Daí que, reforma entrega, Bolsonaro, muito mais do que receber entusiástico apoio, passa a ser visto como descartável. Maia já acenou. A Lava Jato vai se esvaziando. O STF ganha poder, é verdade. Mas, como André Ortega levantou em seu último artigo, efetivamente quem tem capacidade de assumir uma postura Executiva? Acima de tudo, se nenhum dos atores se comprometer com os outros, quem tem adequados meios para fazer os outros se curvarem? Chegam os militares, aos poucos, mas não de fininho.
Se esse é o cenário que vai se rabiscando pro lado de lá, o nosso campo segue uma folha em branco. Incapazes de reagir sequer a essa reforma – uma reforma grotesca, que mesmo com o caminhão de propaganda governamental divide a população, de acordo com as pesquisas – uns vários vão esperando as eleições de 2022 para reagir, confiando naquela mesma fórmula eleitoral que garantiu o impressionante poder de reação de 131 votos contra a reforma. São os que confiam na “continuidade institucional”. Perguntamos: e se reagíssemos? Respondem: aí sim, os militares fechariam tudo. Ora, não serão portanto candidatos à Presidência, nem representantes de projetos: querem se candidatar ao burro tutelado da vez, no mínimo, ou a mártir derrubado estupidamente, no máximo.
É certo, no entanto, que neste cenário é perigosíssimo reagir mecanicamente, pensando no hoje sem pensar no amanhã. Mas não é notável que, quanto à reforma, não tenha havido sequer um trabalho de propaganda comparável à tal campanha do “vira-voto”, por Haddad?* Que sequer manifestações “tradicionais”, amplas e democráticas tenham sido feitas? O máximo que conseguem fazer é falar de uma “frente única”. Assim, falam da forma – lhes pergunto da estratégia. “Frente única” para que?
Já há pelo menos três anos batemos na mesma tecla: a única tarefa hoje é a da obtenção das bases e de sua organização. Não se trata de panfletar: falamos de grupos mais ou menos concisos, efetivamente organizados, educados e preparados para reagir a qualquer aventura, se replicando e formando outros grupos. Não haverá vitória a curto-prazo; se houver, logo se converterá em derrota. Alguns dirão “mas todos falam isso”, ou “isso é óbvio”. Nem todos falam isso – mas, justamente, muitos falam. Poucos de fato têm aplicado seus esforços nesse sentido. Quanto à obviedade, talvez de fato impere – mas quantas coisas óbvias faltam às vistas dos que colocam suas esperanças e a carne de nosso povo em eleições vindouras? Anteontem diziam que um punhado de generais eram na verdade democratas, e com eles se reuniam e eram sabatinados. Ontem diziam que os generais iriam conter Temer, depois que iriam conter Bolsonaro. De um dia pro outro, decidem que haverá “fechamento de regime”, e dele falam, para não fazer nada. Ironicamente, os que mais discursos fazem sobre a democracia são os que menos levam a sério a tarefa de defende-la. Quando alguém logo propõe o que o povo proporá – uma saída radical – são eles que falam em mil perigos, como se os perigos só fossem se manifestar se puxarmos a corda no cabo de guerra. Ou, aliás, como se, ora ou outra, o povo não fosse puxar a corda de qualquer maneira. É a mesma estreiteza tática que tentou conceder tudo o que fosse possível, em 2016, em troca de piedade. Eles não têm piedade. Alguns até já preparam a saída de organizações amplas, relativamente independentes, para construir projetos próprios em partidos, destruindo organizações de frente ampla para depois fazerem apelos por uma… frente ampla.
Bem-vindos. Aproveitem o ensaio. O espetáculo do caos agora começa em breve. E nós, que faremos?
*Vejam a quantas ilusões o imobilismo não leva: de tão afastados do mundo real, bastou entregarem alguns panfletos e trocarem algumas palavras com cidadãos comuns que começaram a imaginar uma redenção extraordinária do vira-voto, que elegeria Haddad, espantaria os inimigos sombrios com sua luz formosa e tiraria Lula da prisão. Enquanto o outro candidato falava em “fuzilar a petralhada.”