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Clemente, o imorrível

Há muitos outros, mortos, torturados, presos. Clemente permaneceu. Clemente nunca foi pego.
Há muitos outros, mortos, torturados, presos. Clemente permaneceu. Clemente nunca foi pego. Por Pedro Marin | Revista Opera
Carlos Eugênio, o Clemente. (Imagem: Estúdio Gauche)

Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz nasceu em 23 de julho de 1950, em Maceió, Alagoas, há exatos 69 anos. Filho de Maria da Conceição Coelho Paz, uma admiradora de Prestes, e do ex-integralista Carlos Cardoso Coelho da Paz (ironicamente, CCCP). Foi numa casa de migrantes alagoanos no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em que os bustos de Plínio Salgado e Luís Carlos Prestes conviviam pacificamente lado a lado, onde o pequeno Carlos foi tomando gosto, a conta-gotas, pela política. O pequenino seria posteriormente rebatizado “Clemente” pelo fogo dos tanques e fuzis que, em 1964, cortaram a fita e inauguraram os anos de chumbo. 

Quando o Brasil escureceu, em 1964, ele tinha treze anos. O pai estava viajando e, aos poucos, a casa da família foi servindo de refúgio a estudantes ligados à UNE levados por uma irmã, Maria Valderez, que atuava no movimento estudantil. Um deles, no quarto, ia lustrando um revólver .38 com adoração, o enferrujado ferro que ostentava como a arma terminal da revolução. Chegou enfim o dia de transportar o estudante fugido. Carlos e uma outra irmã, essa de nove anos, foram juntos no carro, para despistar qualquer suspeita. Um camburão da Polícia Militar rondava o Largo do Machado enquanto o carro do estudante esperava o sinal abrir. Sua mão logo encontrou a maçaneta e, porta aberta, o parabelo brilhante foi dispensado num bueiro. “Se eu entrar nisso, nunca vou fazer esse papel”, pensou o pequenino Carlos. O parecer marcaria sua vida.

O ano era 1966. Um amigo de seu grupo de escoteiros, Alex de Paula Xavier Pereira, apresentou Carlos, agora um garoto de quinze anos, a seu xará baiano de sobrenome Marighella. Era o início da formação da Ação Libertadora Nacional (ALN), àquela altura ainda chamada “Ala Marighella”. Carlos Eugênio jurou lealdade. Alex de Paula brincou; “não disse que ele era firme?”. Marighella sorriu.

Marighella já havia vivido a repressão do Estado Novo e passado pela prisão quatro vezes: em 1932, em 1936, em 1939 e em 1964. Já há muito tempo elevava a voz nas discordâncias com a direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que considerou despreparado para lidar com a renúncia de Jânio e com o golpe contra Goulart, e o qual acusou de colocar o proletariado à reboque da burguesia, chegando a chamar ironicamente de “social-democrata” na sua Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista Brasileiro (1966). Não se tratava de ler livros e discutir entre amigos. Os Carlos, ambos, tinham clareza do que os esperava na construção de uma organização que, em seu jornal, estampava Maiakóvski: “O tempo dos oradores já passou. / Hoje tem a palavra / o Camarada Mauser!”

“Meu rosto é oposto do que costumo ver no retrovisor à procura do perigo”

Em 1967 iniciavam-se as preparações para os discursos do Camarada Mauser. Um grupo conciso subia e descia os morros do Rio de Janeiro, sob a liderança do antigo escoteiro, com nada senão água, para, pela fome e o cansaço, preparar os corpos e disciplinar o caráter: eram os guerrilheiros-mirim da ALN; Aldo de Sá Brito, Luiz Affonso Miranda da Costa Rodrigues, Marcos Nonato da Fonseca, aos seus 14 anos e, no comando, Carlos Eugênio. Se havia um pedaço de areia livre numa praia deserta, era logo feito de tatame para a prática de lutas, ou de estande para treinar tiro. Os meninos do colégio Pedro II iam pixando muros, fazendo planos, roubando carros. Oito enviados do PCB de São Paulo passavam ao treinamento de guerrilha, e Marighella participava da 1ª Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), em Cuba, que marcaria o pico da tensão entre o guerrilheiro e o Partido Comunista Brasileiro e terminaria numa espécie de expulsão de comum-acordo.

 

As ações logo expandiam: assaltos, com o fim de conseguir recursos para montar as bases da guerrilha urbana e rural. Era a prova, de Carlos para Carlos, que os guerrilheiros-mirim poderiam graduar-se. “Recursos nós conseguimos no Brasil”, respondia Marighella a qualquer oferta de fora. E o treinamento de Carlos Eugênio não seria em Havana, território livre, mas em Copacabana, no Forte. Marighella ponderou que a organização precisaria de quadros militares, e que o jovem Carlos, aos 17, deveria servir no Exército se pudesse, formando-se em contrainsurgência. “Para comandar, tem de aprender a obedecer”, era o mantra para se tornar um bom soldado. E, para se insurgir, contra-insurgir. Carlos se destacou no Forte, precisamente por servir não por um soldo, mas para se preparar para assaltar os céus. A vontade de voar era tanta que foi considerado o melhor soldado do batalhão, mérito pelo qual recebeu medalha em outubro de 1969. A medalha – não um .38 brilhante – foi jogada no esgoto. “Se entrar nisso, nunca vou fazer esse papel”; falara sério quando fixou. Não fez. Alex estava certo: Carlos era firme. 

Àquela altura a organização já sofria do ardil militar. Setembro e outubro chegaram a São Paulo com a morte e a prisão de muitos guerrilheiros. Treze aparelhos da ALN foram desativados, mais de 20 militantes foram presos. A Operação Bandeirantes (Oban), que reunia os serviços de repressão num só guarda-chuva e os presenteava com financiamento empresarial, havia sido lançada. Era o reflexo de assaltos assinados como ações políticas – para desgosto da ALN, que pretendia ganhar tempo por não reivindicar os roubos – e o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick no Rio de Janeiro, realizado por militantes paulistas do MR-8 e da ALN. O soldado Carlos, guerrilheiro Clemente, teve de ficar em alerta no Forte. Numa visita de sua mãe à caserna, conseguiu informações sobre o sequestro e a situação de companheiros. No fim, um pedido incomum: Maria, a comandante-em-chefe da casa dos alagoanos no Flamengo, pede ao filho para se juntar à organização. Invertem-se os papéis. A comandante-mãe agora é comandada do filho.

Boa parte da estrutura com a qual Marighella se preparava para lançar a guerrilha rural caíra, e o baiano não desanimou: no dia 15 de novembro daquele ano, nos 80 anos da República, uma bomba com cerca de cinco quilos de dinamite seria colocada no Forte de Copacabana por Carlos Eugênio, que dali fugiria pelo sul. Sua mãe e irmã deveriam ser tiradas do país, para evitar a represália, e por isso viajaram a São Paulo, no dia 2 de novembro, onde foram recepcionadas por Marighella e escondidas por Clara Charf na casa de Suzanna Sampaio. Não deu tempo. Um duro golpe para a firmeza de Carlos Eugênio e da organização, que provaria a lucidez da preocupação do comando da organização com a formação de quadros militares, veio no dia 4 de novembro, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, onde tombou numa emboscada Carlos Marighella.

“Imune à morte e às dores, a não ser àquelas da alma”

Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, estava em Paris, rumo a Pyongyang, quando soube pelos jornais da morte de seu camarada. Havia saído do PCB junto de Marighella, e com ele fundado a Ação Libertadora Nacional. Toledo tinha participado da ação que sequestrou o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Sabendo da morte, decidiu prontamente retornar ao Brasil, e em um encontro com um companheiro em Roma, no meio do caminho, declarou: “O Marighella tinha razão! Precipitamos o massacre”. Se referia ao sequestro.

Câmara Ferreira assumiu o comando da ALN decidido a dar cabo aos planos de lançar a guerrilha no campo. Mudou a estrutura da organização, centralizando-a numa Coordenação Nacional e extinguindo toda aquela flexibilidade defendida por Marighella nos primeiros anos da ALN, em que “ninguém deve pedir permissão para fazer atos revolucionários.”

Mas, para abrir uma coluna no meio do Brasil, era necessário dinheiro, bastante dinheiro. Aos grupos-de-fogo, responsáveis pelos assaltos, pesou enormemente. Segurando o peso, Clemente se destacava pela disciplina, mobilidade tática e firmeza na segurança. Houve ocasião em que chegou em casa atrasado, e ao beijo desesperado e com gosto de lágrimas de Ana Maria Nanicovic, que imaginava seu companheiro morto ou preso, respondeu esquivando, para antes travar a arma. Sempre em combate, sempre em guerra – as balas matam.

A coluna no campo, já alvo de obsessão de Marighella, significaria um passo estratégico fundamental para a ALN. O guerrilheiro na cidade vive clandestino, sempre cercado. Sua defesa é fingir não ser quem é, seu ataque é sê-lo. Para não ser alvo, esconde as armas, se for reconhecido, há de usá-las. A linha é tênue: a sombra é pouco segura, mas aprisiona no imobilismo; só na luz é possível agir, mas ela mata. O guerrilheiro citadino não tem sua mobilidade, característica da guerra irregular, no terreno: é sua persona e seu espírito quem se move. Luz, sombra, luz, sombra, luz… 

No campo seria diferente. O cerco estratégico estaria rompido. Se conquistam territórios, deles se abre mão, há avanços e recuos contínuos, mas estar à vista e escondido ao mesmo tempo não é condição do combate. Lá é onde se pode prolongar a guerra para combater um exército mais forte – na cidade, prolongá-la é sobreviver mais do que os 11 meses médios de guerrilheiros com veias correndo sangue. Com o apoio das estruturas da cidade, já com alguma quantidade de combatentes recrutados e provados nela, a situação é outra. Há para onde recuar. Na cidade, se recua para suas próprias entranhas: ela é cerco e abrigo. Luz, sombra, luz, sombra…

“Bala não falta, audácia sobra”

Na rodoviária de Belém, em 8 de setembro de 1970, o militante da ALN Silvério, codinome de José da Silva Tavares, foi preso pelo Exército. Silvério se dedicava à implantação da guerrilha no Pará. Do hospital militar onde havia sido internado, sumiu. Um jornal regional noticiou a corajosa fuga de Silvério, o guerrilheiro que teria tentado se matar e que logo reapareceu em São Paulo, restabelecendo contato com a organização.

A história não caiu bem aos ouvidos de Clemente. Avaliava que, com uma fuga tão mirabolante, Silvério deveria antes de tudo ser assiduamente investigado pela organização. Mas Joaquim Câmara confiava no militante vindo do Norte. Custou muito. Na noite do 23 de outubro daquele ano, na avenida Lavandisca, em São Paulo, os policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), capturariam Toledo e mais três militantes em um ponto com Silvério. O último seria o único a escapar, convenientemente. Frustrou-se, na cara do gol e pela segunda vez, o lançamento da ALN ao campo. Morreu Toledo.

O cerco se fechava, cada vez mais. A marcha militar se continha com saraivadas de matraca; um passo, um tiro; uma prisão, um sequestro; um torturado, um morto. Era um combate contra o tempo. No comando militar, Clemente decidiu pelo sequestro de um industrial de feição estrangeira que, já há anos ouvira, tinha passe-livre e autoridade em sessões de tortura. Era Henning Albert Boilesen, presidente da Ultragaz e fundador do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE). Boilesen, além de dar apoio logístico à repressão, fazia vaquinhas empresariais para financiá-la, pagava para assistir sessões de tortura e até importava, por conta própria, instrumentos para aplicá-la. Em 16 de abril de 1971, foi justiçado pela ALN.

Mas os justiçamentos também vinham à casa. Um mês antes, em 23 de março de 1971, o militante Márcio Leite de Toledo era justiçado pelos seus companheiros, após decisão do comando – coletivo – da ALN. Márcio teria abandonado outros militantes em situações limite, e, frente propostas da organização, se recusava a se retirar do país. Clemente, como bom comandante, sempre chamou à responsabilidade do justiçamento a si. Mas ela não era individualmente dele.

Clemente foi um dos cinco brasileiros condenados à morte in absentia pela ditadura militar. Teve o prêmio de 1 milhão de dólares pela sua cabeça. Depois de anos de combate, saiu a contragosto do país em 1973. Passou por Cuba, União Soviética, Tchecoeslováquia e, por fim, França. Formou-se em música. Quando voltou ao Brasil, em 1981 – dois anos após a anistia – ainda era objeto de pena de 124 anos de prisão à revelia. Foi anistiado somente no ano seguinte, por meio da embaixada francesa.

Aldo de Sá Brito foi morto em 7 de janeiro de 1971. Alex de Paula Xavier em 20 de janeiro de 1972. Luiz Affonso Miranda, em 25 de janeiro de 1970. Marcos Nonato da Fonseca, em 14 de junho de 1972, no mesmo dia em que foi-se Ana Maria Nanicovic. Há muitos outros, mortos, torturados, presos. Clemente permaneceu. Clemente nunca foi pego. De forma que é difícil compreender os gritos das manchetes do mês passado: “morreu Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz”. Carlos Eugênio morreu… Clemente vive.

 

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