Depois da visita ao Peru, do sapateado no Equador, do passeio pelo Chile e da marcha na Bolívia, os coturnos chegaram a El Salvador. Já pela manhã desse domingo (9), milhares de tropas da Polícia Nacional Civil (PNC), bem como do Exército, ocupavam os arredores da Assembleia Nacional, após o presidente Nayib Bukele convocar seus apoiadores a um ato para pressionar o Congresso a aprovar um empréstimo do Banco Centro-Americano de Integração Econômica (BCIE) de 109 milhões de dólares para as medidas de segurança pública de seu “Plano de Controle Territorial”. Na prática, o plano pretende investir na Polícia Nacional Civil e nas Forças Armadas, sob o pretexto de combater os grupos criminosos que atuam no país considerado um dos mais violentos do mundo.
Bukele, que ameaçou os deputados na sexta-feira (7) dizendo que eles “têm sete dias” para aprovar a medida, convocou o povo à insurreição e chamou uma sessão extraordinária no Parlamento, com a presença do Conselho de Ministros, para aprovar seu plano de segurança no sábado, dia que também conseguiu o apoio formal das Forças Armadas, com o ministro da Defesa declarando que elas honrariam “o juramento de obedecer ao presidente da República e comandante geral das Forças Armadas em todas as ocasiões e riscos”. A falta de quórum, no entanto, impossibilitou uma decisão no Congresso.
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Após um discurso neste domingo, no qual chamou os deputados de “delinquentes” e “sem-vergonhas que não querem trabalhar”, o presidente entrou no Salão Azul do Congresso e sentou-se na cadeira do presidente da casa, enquanto tropas do Exército e da Polícia ocupavam o recinto. De lá, cercado de militares, proclamou que “está muito claro quem tem o controle da situação”.
Alguns deputados que haviam acatado o chamado do presidente à sessão extraordinária se retiraram. A parlamentar Felissa Cristales, do partido de direita ARENA, que apoia o plano presidencial, disse que a Corte Suprema de Justiça têm de se pronunciar, porque a ação do presidente “está afetando a democracia em El Salvador”. O deputado Leonardo Bonilla (sem partido) afirmou que “é uma ação totalmente descarada. O que falta é que tomem também a Corte Suprema de Justiça e haja um novo governo no qual o Executivo controla todos os três órgãos. Isso rompe com a ordem constitucional. Não sei o que vai acontecer, fomos surpreendidos”.
A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), por sua vez, não compareceu à sessão. Mais cedo, parlamentares do partido haviam denunciado assédios militares em suas casas para que fossem levados à força até a Assembleia Nacional. O partido se reuniu e aprovou neste domingo a resolução “construindo um futuro a partir das bases da FMLN”, no qual denuncia a “violação da Constituição da República” por parte do presidente e chama à atenção os órgãos internacionais. Os parlamentares da FMLN também apresentaram denúncia contra o presidente por sedição e rebelião, e contra o militante do Movimiento Nuevas Ideas Walter Araujo por apologia à sedição.
O Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU emitiu uma declaração na qual pede “o diálogo e o pleno respeito às instituições democráticas para garantir o Estado de Direito, incluindo a independência dos diferentes setores do poder público”.
Nayib Bukele: um marketeiro na presidência
O empresário do marketing Nayib Bukele, de 38 anos, foi eleito presidente no início de 2019 pela Grande Aliança pela União Nacional (GANA), após não conseguir inscrever seu nanico Movimiento Nuevas Ideas para disputar as eleições. Quebrando com uma tradição de 30 anos em que se revezavam governos da Aliança Republicana Nacionalista (ARENA) e da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN; partido pelo qual foi prefeito, até 2017, quando foi expulso da sigla), Bukele se apresentou como uma opção de mudança para o país, “para além da esquerda e da direita”.
Durante a corrida eleitoral, centrou-se na retórica anticorrupção, com o slogan “o dinheiro chega quando ninguém o rouba”, e no uso massivo das redes sociais, que o acompanha no governo. Se aproximou muito também de setores evangélicos conservadores do país.
Após tomar posse, centrou a mira na FMLN, perseguindo funcionários governamentais ligados ao partido de esquerda e promovendo um discurso centrado na segurança pública. No campo econômico, adotou medidas neoliberais, com cortes em programas sociais de educação e saúde, ao passo que aumentou em 18,4% o orçamento do Ministério da Defesa Nacional.
Na esfera internacional foi responsável por uma virada, prometida durante a campanha, alinhando o país aos Estados Unidos e Israel. Atacou o governo de Nicolás Maduro e reconheceu o autoproclamado Juan Guaidó como legítimo presidente venezuelano, além de propor a criação de uma Comissão Internacional contra a Impunidade em El Salvador (CICIES). Durante a campanha, prometeu revisar as relações com a China, em vistas com uma aliança com os EUA, mas até o momento a única medida neste sentido foi a assinatura de um memorando de entendimento para a iniciativa América Cresce, no último dia 30.
A embaixada e os coturnos
Está claro que, ao menos por ora, em meio a uma situação de exceção, é o presidente Bukele quem tem a cartada fundamental: a da força concreta, militar.
Enquanto isso o ARENA toma uma posição clara contra o presidente, pedindo às instituições democráticas que “cerrem fileiras” para defender a democracia salvadorenha. Figuras como o José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch para as Américas, também se pronunciaram, exigindo uma reunião urgente da Organização dos Estados Americanos para tratar do tema.
Mas até o fechamento desse artigo a OEA e seu secretário-geral, Luis Almagro, se mantiveram em silêncio. Igual postura teve a Embaixada dos EUA em El Salvador e o embaixador Ronald Johnson, que via Twitter, no sábado (7), fez declarações em apoio ao Plano de Controle Territorial do presidente salvadorenho. No dia seguinte, declarou que “crê no espírito democrático que vive em todos os salvadorenhos” e que está “convencido de que a melhor resolução dos conflitos é o diálogo razoável e o respeito mútuo”.
A anuência ou a resposta de Washington às ações de Bukele terão um peso extraordinário para um continente que em um ano experimentou ensaios militares em ao menos quatro países. Igualmente será a prova do Parlamento, constituído majoritariamente por deputados do ARENA e da FMLN. É improvável que, no momento, o presidente salvadorenho suspenda o Parlamento; mas tendo mostrado sua mão, pouco importa se põe as cartas na mesa: guardadas nos coturnos elas já valem muito.
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