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“É isso que somos?”: Guantánamo é a vergonha permanente dos EUA

Mesmo que Biden seja capaz de superar a pressão dos militares, da CIA e do Congresso para fechar Guantánamo, a justiça ainda estará ausente.
Mesmo que Biden seja capaz de superar a pressão dos militares, da CIA e do Congresso para fechar Guantánamo, a justiça ainda estará ausente. Por Ramzy Baroud | Mintpress News – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: Justin Norman)

“Esse é certamente nosso objetivo e nossa intenção.” Esta foi a resposta evasiva dada pela secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, quando, em 12 de fevereiro, um repórter perguntou a ela se o novo governo de Joe Biden pretende fechar a notória prisão da Baía de Guantánamo até o fim do primeiro mandato do presidente.

A resposta de Psaki pode ter parecido tranquilizadora no sentido de que o sofrimento indescritível experimentado por centenas de homens neste gulag americano – muitos dos quais eram certamente inocentes – estaria finalmente chegando ao fim. No entanto, considerando a história de Guantánamo e a trilha de promessas quebradas pelo governo Barack Obama, a promessa do novo governo não é nada encorajadora.

Compare a nova linguagem com as diatribes apaixonadas de Obama sobre humanidade, justiça e valores americanos, que ele utilizou sempre que falava de Guantánamo. “Gitmo se tornou um símbolo em todo o mundo para uma América que desrespeita o estado de direito”, disse Obama em um discurso na National Defense University em maio de 2013.

Apaixonado por cada palavra sua, o público aplaudiu Obama com entusiasmo. Quando fez esse discurso em particular, Obama estava cumprindo seu segundo mandato. Ele já havia tido ampla oportunidade de fechar a prisão que funcionava sem monitoramento internacional e totalmente fora dos domínios das leis internacionais e dos Estados Unidos.

Obama provavelmente será lembrado por suas palavras, não por suas ações. Ele não apenas falhou em fechar a prisão erguida por seu antecessor, George W. Bush, em 2002, como a indústria de Guantánamo também continuou a prosperar durante seus mandatos. Por exemplo, em seu discurso, Obama fez referência ao alto custo de “cento e cinquenta milhões de dólares por ano para prender 166 pessoas”. De acordo com a New Yorker, em reportagem de 2016, o orçamento de Guantánamo havia se transformado em “445 milhões [de dólares] no ano passado”, quando Obama ainda estava no cargo.

No entanto, à medida que o orçamento crescia aos trancos e barrancos, o número de prisioneiros de Guantánamo diminuía. Atualmente, existem apenas 40 prisioneiros ainda residindo naquele enorme edifício de metal, concreto e arame farpado localizado na ponta leste de Cuba, construído sobre um pedaço de terreno “arrendado” pelos EUA em 1903.

É fácil concluir que o governo dos Estados Unidos mantém a prisão aberta apenas para evitar a responsabilização internacional e, possivelmente, para extrair informações por meio de tortura, um ato que é inconsistente com as leis americanas. Mas não pode ser só isso. Por um lado, todas as guerras contra o Afeganistão e o Iraque eram ilegais segundo o direito internacional. Tal fato dificilmente impediu os Estados Unidos e seus aliados de invadir, humilhar e torturar de forma selvagem populações inteiras, sem levar em conta os argumentos legais ou morais.

Por outro lado, Guantánamo é apenas uma das muitas prisões e centros de detenção administrados por americanos em todo o mundo que funcionam sem um manual de regras e de acordo com as táticas mais implacáveis. A tragédia de Abu Ghraib, um centro de detenção militar dos EUA em Bagdá, só se tornou famosa quando a evidência direta da degradante e incrivelmente violenta conduta que estava ocorrendo dentro de suas paredes foi produzida e divulgada.

Na verdade, muitos funcionários americanos e membros do Congresso na época usaram o escândalo de Abu Ghraib em 2004 como uma oportunidade para dissimular e reformular crimes americanos em outros lugares e apresentar a má conduta nesta prisão iraquiana como se fosse um incidente isolado envolvendo “algumas maçãs podres”.

O argumento das “poucas maçãs podres”, apresentado por G. W. Bush foi, mais ou menos, a mesma lógica utilizada por Obama quando defendeu o fechamento de Guantánamo. De fato, os dois presidentes insistiram que nem Abu Ghraib nem Guantánamo deveriam representar o que realmente é os EUA.

“É isso que somos?” Obama perguntou animada e apaixonadamente, enquanto defendia o fechamento de Guantánamo, falando como se fosse um defensor dos direitos humanos, não um comandante-chefe que tivesse autoridade direta para fechar todas as instalações. A verdade é que as torturas de Abu Ghraib não foram “algumas maçãs podres” e Guantánamo é, de fato, um microcosmo de exatamente o que os Estados Unidos são, ou se tornaram.

De Bagram, no Afeganistão, a Abu Ghraib, no Iraque, à Baía de Guantánamo, em Cuba, às muitas “prisões flutuantes” – das quais tivemos notícia pelos vazamentos da mídia norte-americana em 2014 – o governo dos EUA continua a zombar das leis internacionais e humanitárias. Muitas autoridades americanas, que defendem genuinamente o fechamento de Guantánamo, se recusam a reconhecer que a prisão é um símbolo da intransigência de seu país e se recusam a aceitar que, como qualquer outro país do mundo, os Estados Unidos deveriam responder frente ao direito internacional.

Essa falta de responsabilização excedeu a insistência do governo dos EUA em “agir sozinho”, como faz ao lançar guerras sem mandatos internacionais. Um governo dos Estados Unidos após o outro também deixou claro que, sob nenhuma circunstância, eles permitiriam que os acusados de crimes de guerra fossem investigados, e muito menos que fossem julgados, perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). A mensagem aqui é que até mesmo as maçãs podres da América podem se livrar da prisão, independentemente do quão hediondos são seus crimes.

Poucos meses depois do governo Trump impor sanções aos juízes do TPI para puni-los por possíveis investigações de crimes dos EUA no Afeganistão, ele libertou criminosos condenados que cometeram crimes horríveis no Iraque. Em 22 de dezembro, Trump perdoou quatro mercenários americanos que pertenciam à empresa militar privada Blackwater. Esses assassinos condenados estiveram envolvidos na morte de 14 civis em Bagdá, incluindo duas crianças, em 2007.

O que ficou conhecido como “massacre da Praça Nisour” foi outro exemplo de dissimulação, já que funcionários do governo e a grande mídia, embora expressando indignação com o assassinato ilegal, insistiram que o massacre foi um episódio isolado. O fato de que centenas de milhares de iraquianos, a maioria civis, tenham sido mortos como resultado da invasão americana parece irrelevante na lógica distorcida do país em sua interminável “guerra ao terror”.

Quer Biden cumpra sua promessa de fechar Guantánamo ou não, pouco mudará se os EUA permanecerem comprometidos com sua atitude condescendente em relação ao direito internacional e com sua visão imerecida de si mesmos como um país que existe acima dos direitos universais de todos os outros.

Dito isso, Guantánamo, por si só, é um crime contra a humanidade e não pode haver qualquer justificativa para racionalizar porque centenas de pessoas foram detidas indefinidamente, sem julgamento, sem devido processo, sem observadores internacionais e sem nunca ver suas famílias e entes queridos. A explicação frequentemente oferecida pelos especialistas pró-Guantánamo é a de que os presidiários são homens perigosos. Se esse fosse realmente o caso, por que esses supostos criminosos não foram autorizados a ter seu dia no tribunal?

De acordo com um relatório da Anistia Internacional publicado em maio de 2020, dos 779 homens que foram levados para aquela instalação, “apenas sete foram condenados”. Pior ainda, cinco deles foram condenados “como resultado de acordos pré-julgamento sob os quais se declararam culpados em troca da possibilidade de libertação da base”. De acordo com o grupo de direitos humanos, tal julgamento por ‘comissões militares’ “não atendeu aos padrões de julgamento justo”.

Em outras palavras, Guantánamo é – e sempre foi – uma operação fraudulenta sem nenhuma inclinação real no sentido de responsabilizar criminosos e terroristas ou prevenir novos crimes. Em vez disso, Guantánamo é uma indústria lucrativa. Em muitos aspectos, é semelhante ao complexo militar prisional americano, ironicamente apelidado de ‘sistema de justiça criminal’. Referindo-se ao injusto ‘sistema de justiça’, a Human Rights Watch zombou dos EUA por terem “a maior população carcerária do mundo”.

“O sistema de justiça criminal (dos EUA) – desde o policiamento e a acusação até a punição – está infestado de injustiças como disparidades raciais, condenações excessivamente severas e políticas de drogas e imigração que enfatizam indevidamente a criminalização”, afirmou o HRW em seu site.

O que foi dito acima também pode ser considerado uma resposta à pergunta retórica de Obama: “É isso que somos?”. Sim, Sr. Obama, na verdade, é exatamente isso que vocês são.

Ao mesmo tempo que oferece as condições de detenção mais miseráveis do mundo para centenas de homens potencialmente inocentes, Guantánamo também oferece oportunidades de carreira, grandes regalias, honras militares e um orçamento aparentemente infinito para um pequeno exército proteger apenas alguns homens acorrentados e de aparência esquelética em um local distante.

Portanto, mesmo que Biden seja capaz de superar a pressão dos militares, da CIA e do Congresso para fechar Guantánamo, a justiça ainda estará ausente, não apenas por causa das inúmeras vidas que estão para sempre destruídas, mas porque os EUA ainda se recusa a aprender com seus erros.

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