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Bolsonaro e Temer: quem fiou o contrato?

Apesar da demonstração de fraqueza no 7 de setembro, a carta de Temer e Bolsonaro estranhamente aquietou a situação política.
Apesar da demonstração de fraqueza no 7 de setembro, a carta de Temer e Bolsonaro estranhamente aquietou a situação política. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Alan Santos/PR)

Como figura politicamente fraca no arranjo que ele mesmo criou, a estabilidade de Bolsonaro sempre dependeu de sua capacidade em manter suas estranhas bases radicalizadas e ordenadas. Sua lógica sempre foi a de confrontar a dependência – em Paulo Guedes, em Moro, no Centrão, no STF e especialmente nos militares – com a radicalidade de seus apoiadores, que garantiam aos outros, no arranjo inusitado que é seu governo, a lembrança de que Bolsonaro pode até ser descartável, mas continua sendo figura carismática capaz de mobilizar suas bases ávidas por sangue – elemento que elevava o perigo do descarte ao passo que tornava o presidente mais valoroso. Assim, quanto mais fraco, quanto mais colocado contra a parede, mais Bolsonaro subia o tom de suas ameaças, mais patifarias inacreditáveis fazia, mais discursos enraivecidos pronunciava.

O dia 7 de setembro parece ter sido um divisor de águas por essa razão. As manifestações convocadas pelo presidente foram relativamente grandes, mas ficaram muito aquém do esperado para uma preparação de mais de 40 dias, com recursos disponíveis, concentração das bases em poucas cidades e a própria estrutura do governo. Para todos os efeitos, o Dia da Independência mostrou que Bolsonaro tem coragem para um golpe, mas não parece ter o comprometimento necessário de outros atores para tanto, nem apoio social suficiente para, em meio às brumas do golpismo, estimulá-los a tomar seu lado.

Ao fim, o que restou da setembrada foi um agrupamento de caminhoneiros, paralisando estradas e apedrejando companheiros de trabalho, em uma espiral de instabilidade capaz de desgastar mais ainda o presidente, mas insuficiente para dar sustentação a seus sonhos. A fraqueza do líder bronco chegou a tal ponto que sequer manteve controle sobre suas bases – os relatos sobre como os caminhoneiros responderam a uma mensagem via áudio do presidente pedindo que se desmobilizassem incluíam suspeitas de que o gravação continha uma “mensagem cifrada” ou que era uma imitação de um humorista –, gerando, ao fim, um cenário volúvel para os próprios donos do dinheiro, que viram se formar a perspectiva de uma crise de abastecimento em uma economia já bastante abatida. Para todos os efeitos, o resumo é que Bolsonaro, tentando demonstrar força, demonstrou fraqueza e incapacidade de comando; com seu movimento, tornou mais custosa sua defesa, e portanto qualquer ator que possa fazê-lo, como o Centrão, passará a cobrar mais pelos serviços prestados.

Sem dúvidas, a “Declaração à Nação” de Bolsonaro do último dia 9 foi uma humilhante concessão, engolida com desgosto pelos mais fanatizados apoiadores do presidente. Mas ela não foi unilateral, e sugere também muitas outras coisas.

Em 2015, o então vice-presidente Michel Temer deixou clara sua valorização pela palavra escrita, ao enviar uma carta à então presidenta Dilma Rousseff aberta pelo dito “Verba volant, script manent” (as palavras voam, os escritos permanecem). A carta, por óbvio, não era endereçada à Dilma, mas sim um aceno positivo ao seu impeachment. Seja como for, trazido das profundezas para auxiliar Bolsonaro em sua carta (alguns diriam da península balcânica, outros das águas do porto de Santos), o ex-presidente reafirmou essa crença falando sobre esse novo escrito em entrevista à CNN

“Percebi que o presidente Jair Bolsonaro está muito disposto a, digamos assim, contar as coisas a partir desse momento, este é o primeiro ponto. O segundo ponto é que trata-se de um documento escrito, não é? Quando nós redigimos o documento, com a participação dele…. Ele divulgou um documento escrito, com a assinatura dele, é diferente, com a devida licença, de alguém que simplesmente verbaliza […] aquelas frases do tipo ‘não vou cumprir decisão judicial’, eu acho que a partir de hoje – pelo menos tive muito fortemente essa sensação na conversa muito objetiva que o presidente Bolsonaro teve comigo – eu sinto que isso é coisa do passado, quando se diz ‘vamos contar o tempo a partir daqui’, é porque ele vai pautar-se por esse documento, essa declaração.”

Temer indica claramente que o documento redigido constitui um contrato. Em sã consciência, ninguém poderia crer na intenção sincera de Bolsonaro em seguir as palavras escritas. O “calor do momento” que, segundo o presidente, foi responsável pelas suas declarações golpistas, todos sabem, é uma longa febre que acomete Jair há anos. Também não faria sentido que o STF e a direita neoliberal de sempre baixassem a guarda no momento em que Bolsonaro se mostra frágil – a lógica da concessão, do passo atrás, costuma mais atiçar os adversários do que os desmotivar. 

E, no entanto, apesar da fraqueza mostrada pelo presidente, da impossibilidade de crer sinceramente em suas palavras, da aparente falta de razões para não avançar sobre ele, até o momento o que vemos é que o contrato teve seu efeito: o mesmo Kassab que balançou o impeachment no dia 7 disse logo depois que o debate foi adiado em função da carta; o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto, declarou que a carta trouxe “sensação de conforto e segurança” e que o impeachment não está sendo discutido pelo DEM; e as declarações grandiloquentes sobre o golpismo presidencial cessaram. Isto é: Bolsonaro foi forçado a uma concessão por sua setembrada, mas sua carta, aparentemente, forçou os atores que se colocavam contra ele a também conceder, a dar um passo atrás.

Se este é o efeito do contrato, talvez coubesse perguntar quem é seu fiador; que força é capaz de garantir o cumprimento do acordo se uma de suas partes não cumpri-lo, ao passo que impõe a assinatura àqueles que não o desejassem. Temer e o MDB não parecem ser capazes de fazê-lo. O Centrão, por sua vez, com sua natureza de biruta, dificilmente arrastaria o presidente e os ministros do STF para qualquer direção. Os interesses da burguesia certamente jogaram peso no documento, como sempre jogam – apesar de extremamente tíbia sobre o 7 de setembro, a perspectiva de instabilidade (a Bolsa e o dólar reagiram imediatamente às manifestações) e de crise de abastecimento forçaram a classe dominante a se posicionar e pressionar nos bastidores. Mas falta achar o operador político imediato desses interesses. Seria leviano apontar diretamente aos militares como garantidores deste novo “acordo nacional, com Supremo, com tudo”, mas, igualmente, seria pueril não considerar que o documento tenha sido timbrado por eles. É o Partido Fardado que poderia decidir em caso de golpe, a favor ou contra; os militares, portanto, são os que poderiam assegurar ao STF o recuo de Bolsonaro e ao presidente (e seus filhos) a proteção do STF. Talvez daí venha a estranha e perigosa confiança nas palavras do presidente – uma hipótese.

As eleições e as ruas

Seja como for, tanto os arregos do presidente quanto os da direita e do STF certamente não foram impostos pela força popular. Neste ano as já históricas manifestações do Grito dos Excluídos, que ocorrem em todo 7 de setembro desde 1995, foram acanhadas. Em parte pelo pânico promovido por setores e figuras diversas sobre os perigos de ir às ruas no 7 de setembro, em parte pela aposta no imobilismo promovida pelo Partido dos Trabalhadores na expectativa de que seja mais fácil e seguro derrotar Bolsonaro em 2022 do que fazer avançar um movimento nas ruas e sindicatos pelo impeachment do presidente. O fato é que no dia em que se anunciava do alto dos telhados o temível golpe de Bolsonaro, a posição de uma parte considerável do chamado “campo popular” foi não demonstrar força nas ruas – um sinal importante do que seria feito caso houvesse um golpe de fato.

Uma fração das organizações de centro-esquerda optaram por acompanhar o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua em suas manifestações no dia 12, sob o signo da tão promulgada “frente ampla”. O resultado, como previsto, foram manifestações esvaziadas, o que demonstra só o oco no qual os gritos  frenteamplistas se propagam: a direita “não-bolsonarista”, que nunca teve base popular, sequer conta com sua própria base mais – talvez porque uma parte considerável dela hoje componha as fileiras do bolsonarismo. Neste caso, é a coerência das bases que se descolou do senso de oportunidade das antigas lideranças.

Enquanto isso, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/21, que reforma o Código Eleitoral, era aprovado na Câmara. Entre as mudanças, um parecer da deputada Margarete Coelho (PP-PI) que isenta os partidos de punição caso não cumpram uma cota mínima de candidaturas de mulheres e pessoas negras – o que significa na prática o fim da cota mínima. Também foi alterada a distribuição das chamadas “sobras”, isto é, as vagas para deputados e vereadores que não são preenchidas pelo sistema proporcional. que leva em conta o total de votos obtidos pelos partidos. Se o PLP avançar no Senado com essa proposta, somente os partidos que tenham pelo menos 80% do quociente eleitoral podem concorrer às sobras das vagas – ou seja, mais um aperto aos partidos menores. O mais importante, no entanto, foi a retirada da proposta que previa obrigatoriedade de quarentena de cinco anos para militares, policiais, magistrados e membros do Ministério Público que desejarem disputar eleições. Um sinal curioso da força de militares e juízes, especialmente para aqueles que confiavam que o futuro da direita brasileira seriam promotores, não coturnos, é que apesar de derrubada, uma manobra de Lira e do Centrão tenta recuperar a quarentena – mas apenas para magistrados e membros do MP, deixando os militares livres para disputar as próximas eleições. Se aprovado pelo Senado e sancionado por Bolsonaro até outubro, o novo Código Eleitoral valerá já para as eleições de 2022.

Essas eleições futuras, esperadas com tanto esmero, orientam de antemão todos os atores políticos, com exceção, talvez, de Bolsonaro. O presidente tem consciência de que não logrará uma vitória nas urnas, sejam de que tipo for, mas tem a proteger a si e seus filhos, e quanto a isso fará tudo que estiver a seu alcance. Além da perspectiva de eleições muito tensionadas, que devem gerar alguns cadáveres, é de se observar que o ciclo eleitoral se encerra em outubro – até a posse, Bolsonaro terá ainda dois meses no cargo para fazer tudo o que quiser.

Por seu lado a burguesia, os jornalões, a direita neoliberal e o Partido Fardado batalham pela sonhada terceira via. O espaço para seu surgimento é limitado por duas razões: primeiro, porque as pesquisas de opinião mostram cerca de 80% dos votos já comprometidos entre Lula (46% na última Datafolha) e Bolsonaro (25%). A terceira via, portanto, só é viável se um dos dois futuros candidatos for retirado da disputa, ou se sua popularidade for absolutamente aviltada. Segundo, dificilmente se conseguiria impor uma candidatura unitária de terceira via, ou seja, os votos dos que buscam um “nem Lula, nem Bolsonaro” se dividiriam. Em um cenário em que o primeiro ponto não se confirme, a divisão dos votos tenderia a fortalecer um segundo turno Lula-Bolsonaro.

Lula, por sua vez, tem apostado sem hesitação na perspectiva de enfrentar Bolsonaro somente em 2022, seguindo a orientação estratégica de 2016, durante o impeachment de Dilma, e de 2017, durante o governo Temer: isto é, não fazer nada. Em 2018, os resultados do imobilismo e da confiança ingênua de que as instituições e as eleições levariam o PT de volta ao governo se materializaram na prisão e inelegibilidade do ex-presidente. Não há razões para crer que o quietismo produza agora resultados muito diferentes do que promoveu no passado imediato, com a diferença, desta vez, que o inimigo é ou quem chama tanques ao Planalto, no melhor dos casos, ou quem os dirige, no pior. 

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