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A liberdade de expressão e as redes

Tarados na “liberdade de expressão” decoraram trechos da Constituição gringa assistindo filmes; são incapazes de ver os problemas reais da comunicação no Brasil
Pedro Marin
Elon Musk, o bilionário dono da Tesla, SpaceX e Twitter. (Foto: Daniel Oberhaus (2018) / Flickr)

Quando estive em Roraima há alguns anos, na fronteira do Brasil com a Venezuela, tive uma conversa interessante com um indígena. Pelas tantas, o homem de meia idade contou que há algum tempo tinha encontrado uma pepita de ouro “enorme”, não me lembro em quais condições. Um interlocutor perguntou o que ele fez com a pedra, ao que respondeu, seríssimo: “botei na bolsa. Andar com pepita à vista é crime”. Seria só um bom causo, não fosse o fato de tanta gente bem alimentada ter uma compreensão idêntica da lei. 

Os recentes ataques contra o Brasil do falastrão bilionário Elon Musk, dono da empresa de carros elétricos Tesla, da fabricante aeroespacial SpaceX e, mais notoriamente, da rede social X – o antigo Twitter, por ele renomeado –, trouxeram mais uma vez à tona a porfia da “liberdade de expressão”. Porfia porque, como pretendo demonstrar, os ditos paladinos da liberdade de expressão não são mais do que tolos, no melhor dos casos, ou, no pior deles, falastrões inconsequentes e histriônicos – como Musk –, ineptos, portanto, a fazer debates.

Alimentados a filmes norte-americanos, aprenderam a citar um ou dois artigos da Constituição gringa, e chegaram à conclusão de que mais ao norte há uma profunda tradição de liberdade de expressão, que deveria ser, concluem, também a tradição brasileira. Antes de tudo, é importante notar que esse suposto clima de liberdade absoluta nos EUA não é real. É verdade que, por aquelas bandas, é possível organizar livremente um partido nazista e marchar com suásticas e gorros brancos pelas cidades – embora só haja dois partidos competitivos do ponto de vista eleitoral, certamente uma demonstração da plena liberdade política no país. Ocorre que também é verdade que este foi o país que, durante os anos 50, perseguiu implacavelmente todos aqueles que, por qualquer razão, pudessem ser acusados de ter simpatias pelo comunismo, como foi o caso inclusive do físico Robert Oppenheimer, pai do projeto nuclear norte-americano, como mostra brilhantemente sua cinebiografia. A perseguição ao Movimento dos Direitos Civis, nos anos 60; ao Partido dos Panteras Negras e ao movimento anti-guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70, são outras demonstrações de que a “liberdade de expressão” nunca foi absoluta para os Estados Unidos, nem a nível interno. E há demonstrações mais recentes disso: a campanha contra a “propaganda russa” no país, que levou ao fechamento da RT America; as recentíssimas discussões acerca do banimento do TikTok; a onda de proibição de livros nas escolas públicas norte-americanas. Em resumo, é torta a forma como nossos tolos libertários veem o estado da liberdade de expressão nos Estados Unidos.

Mas essa inspiração nos gringos revela ainda outro desvio mental: é que, embora se digam muito preocupados com a liberdade de expressão no Brasil, não partem da constatação dos problemas e tradições históricas nacionais quanto ao tema, mas sim do que creem ser a tradição norte-americana. A contradição é clara: o período histórico em que as liberdades modernas mais foram restringidas no Brasil, inclusive a de expressão e imprensa, foi o da ditadura militar, diretamente patrocinada pelos “irmãos do norte”, e curiosamente defendida por muitos de nossos “libertários”. A tolice do abobado colonizado não é só de ordem moral, é também prática: ele é incapaz de perceber que, enquanto aponta ao norte em busca da solução dos problemas nacionais, ignora que muitos desses problemas nacionais foram erguidos a partir do norte.

Assim, é bastante insano que num país onde o analfabetismo funcional ainda reina (11,4%, ou 24,4 milhões de pessoas) sem que o analfabetismo absoluto tenha sido extinto (5,6%, ou 9,6 milhões de pessoas, das quais 5,3 milhões vivem no Nordeste), os debates em torno da “liberdade de expressão” se dêem exclusivamente em torno da liberdade de dizer bobagens nas redes sociais. Qual é o preço médio do livro no país? O Novo Ensino Médio é bom ou não? Quantos jornais nacionais há, e quem os controla? As redes de televisão são propriedade de quem? E as rádios? As gravadoras estão mortas? Há quantos estúdios de cinema nacionais? Assim como o analfabetismo, todas essas questões são ignoradas por nossos paladinos da liberdade de expressão, embora tenham efeitos trágicos e óbvios sobre o nível de participação no debate público.

A demanda por “liberdade de expressão” se traduz numa expressão livre. Por definição, não pode haver expressão livre onde as formas da expressão – muito além do conteúdo – estejam determinadas, seja, por um lado, pelas condições históricas que herdamos como país, seja, por outro, pelas condições impostas por algoritmos, somados à lógica da busca dos lucros. O tolo se acha “muito mais louco que todos vocês” por importar uma suposta concepção norte-americana de livre discurso e defender que nazistas possam se manifestar livremente; “louco” mesmo seria se defendesse que nem as máquinas, nem o dinheiro, nem a propriedade podem determinar o discurso na arena pública, enquanto faz campanha aberta pela erradicação do analfabetismo. Ao contrário, não poucas vezes os defensores da liberdade de expressão são também defensores da concentração midiática, os bajuladores de empresários, os mais inertes frente à algoritmização das redes, os entusiastas de reformas escolares que aprofundam a destruição do Ensino Público (como é o Novo Ensino Médio), os idólatras da privatização do Ensino Superior e, para completar o caldo, os combatentes da memória e método de Paulo Freire. É a liberdade de robôs e moedas, esta que defendem.

Mas há algo ainda mais grave: crendo que a grande questão é a “liberdade de dizer”, o tolo que se dispõe a testar continuamente esses limites não percebe que o que importa, inclusive para seus eventuais censores, é a capacidade que tem de ser ouvido, não a liberdade de dizer. Assim, nossos radicais, hipocritamente, não agem para denunciar as restrições ao acesso do público ao discurso dos emissores, mas somente as restrições às mensagens do emissor. Ele chega à conclusão de que não é livre, pois não pode dizer tudo o que quer; mas não chega à conclusão de que não é livre pois não pode ser ouvido. O tolo quer ver assegurado seu direito absoluto à fala, caso contrário, vive numa ditadura. Mas não se importa que o direito à escuta, à leitura, à capacidade de refletir sobre a mensagem, no Brasil, seja de todo relativo. É um falastrão inconsequente, sem nenhum comprometimento verdadeiro com a “liberdade de expressão”.

Enquanto isso, nos jornalões, há colunistas fazendo coro com os estúpidos libertários, “equilibrando” as posições do bilionário Musk com supostos exageros de Alexandre de Moraes; é que esses escrevedores fazem carreira, por um lado, do local privilegiado que por uma ou outra razão adquiriram – imagine se tivessem de competir intelectualmente para conseguir uma coluna! – e, por outro, da inércia ou da estupidez do público, que simplesmente exploram; essa burrice que lhes sustenta na mesma medida que eles a aprofundam. Num país em que fosse “fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes ideias, fundar um [jornal]”[1], quantos de nossos grandes jornais já não teriam ido à bancarrota? Num país onde essa frase de Lima Barreto fosse imediatamente reconhecida, quantos de nossos articulistas não seriam meros apertadores de botões? Se é que já não o são…

Mas há mais, porque o debate sobre a “liberdade de expressão” neste caso não se restringe às redes em geral, mas a uma, em particular: o X. Vejamos: a cruzada de nossos Quixotes é a defesa da “liberdade de expressão” numa rede cuja característica fundamental é a limitação de caracteres e o caos mais absoluto na estruturação dos tópicos. Sim, sei que, com Musk, aqueles que fizerem uma assinatura do X têm mais caracteres à sua disposição  – o que só reforça que a “liberdade” de sua rede está inscrita na lógica do lucro. Sei também que há muito os usuários do X, ou Twitter, estabeleceram o “fio” como forma de contornar as restrições de caracteres. Mas não é disso que trato.

Os meios delimitam as formas de comunicação, o que, por sua vez, tem implicações no conteúdo. Como Marshall McLuhan observou há décadas, em comunicação há uma tendência de observarmos demasiadamente o conteúdo, ignorando o meio, como se ambos não estivessem interligados, influenciando e tensionando-se mutuamente.

Por que razão será que justamente a rede cuja característica básica era a limitação de caracteres se notabilizou tanto por ser local de debates demasiadamente acalorados, por vezes em torno de temas de pouca relevância? Não é evidente que onde a extensão de caracteres é limitada, a tendência do emissor é a de tentar compensar a limitação da extensão da mensagem com a contundência de cada palavra? O Twitter, ou o X de Musk, não é esse espaço mágico em que a mais banal questão é discutida com o furor mais incandescente porque assim querem os usuários; ele o é precisamente porque a estrutura básica da rede determina que, para ter a atenção desejada, o usuário – que sente nunca estar falando com ninguém em específico ao mesmo tempo que quer falar com todos ao mesmo tempo – deve diferenciar o tema de seus tuítes dos de outros, que pipocam insanamente na tela do leitor; assim, a atenção é perseguida tanto na contundência da palavra quanto na estranheza do tópico, que há de captar a atenção do emissor em meio a tantos outros. O que importa é ser incendiário, polêmico e diferente. O Twitter não é uma arena de debate público; é uma arena de combate, onde batem-se idiotas de cá e de lá, bem distantes dos interesses e atenções mais fundamentais do País.

A lógica vale também para outras redes: é evidente porquê o Instagram, rede social de fotos e pequenos vídeos, em que o sentido básico da comunicação é o visual, se notabilizou tanto como “reino da falsidade” quanto como lugar de paquera. Ou porquê o Facebook, uma rede formada antes de tudo pelas relações estabelecidas com pessoas próximas, tenha caído em desuso entre os mais jovens – afinal, lá estão seus parentes. Ou ainda o porquê, em todas essas redes, e na internet como um todo, a participação de conteúdos de entretenimento venha aumentando exponencialmente em relação a conteúdos de outro tipo – mais comuns na primeira década da Web 2.0 –, à medida que a presença de anúncios e outras formas de monetização foram crescendo no espaço virtual: quando a publicidade passa a ditar a rentabilidade do conteúdo, o conteúdo toma, em si, ares publicitários, dado que a medida de “sucesso” passa a ser quantos cliques ou views gera, e não sua complexidade própria, seu caráter inovador, sua capacidade de fidelizar um determinado público ou o que quer que seja. Em todos esses casos, não é o usuário que determina a forma e o conteúdo de sua comunicação; ao contrário, ele só as adapta ao meio quando torna-se emissor.

Assim, cá está o procedimento de nossos “libertários”; se perguntam: até onde posso ir? Qual é a linha imaginária que divide minha livre expressão do crime? E então eles passam a tensionar essa linha continuamente, como cruzados que são. Fossem realmente preocupados com a liberdade de expressão e de informação, partiriam antes do diagnóstico: quais são as deficiências, forças e estruturas que limitam as liberdades dos brasileiros na arena da comunicação? Qual é a verdadeira relevância do X nessa seara?

Ao fim, o abobado libertário não tem uma compreensão muito diferente da do indígena com quem conversei em Roraima. Este imaginava que o crime era carregar a pepita de ouro à vista, não a mineração ilegal. Aquele imagina que seus problemas são os do Brasil, e que os espaços que ocupa – o X, por exemplo – por alguma razão são apartados das leis que valem em qualquer outro. Se eventuais restrições a tuítes são demonstração de que o Brasil vive uma ditadura (embora aquela de 1964, que empastelou jornais e matou jornalistas, seja considerada pelo libertário como uma “revolução”), qual é o regime político em que vivem os 29 milhões de brasileiros que sequer acessam a internet?


Notas:
[1] O trecho completo de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto: “São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses… Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes idéias, fundar um que os combata… Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal… Vocês vejam: antigamente, entre nos, o jornal era de Ferreira de Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano… Hoje de quem são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por diante. E por detrás dela estão os estrangeiros, senão inimigos nossos, mas quase sempre indiferentes às nossas aspirações…”
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