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Freire Gomes: no depoimento de um “legalista”, o caminho para a impunidade militar

Coesão acima de tudo: tibieza do depoimento de ex-comandante do Exército Freire Gomes no STF contribui para impunidade para Almir Garnier, da Marinha

Pedro Marin
O então comandante do Exército, Freire Gomes, ao lado do então presidente, Jair Bolsonaro, durante desfile de 7 de setembro em Brasília, em 2022. (Foto: Alan Santos/PR)
O então comandante do Exército, Freire Gomes, ao lado do então presidente, Jair Bolsonaro, durante desfile de 7 de setembro em Brasília, em 2022. (Foto: Alan Santos/PR)

Ex-comandante do Exército, o general Freire Gomes foi ao STF na última segunda-feira (19) para um depoimento como testemunha de acusação no processo referente ao “núcleo 1” ou “núcleo crucial” da trama golpista, que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro, o ex-GSI e general Augusto Heleno, o ex-ministro da Defesa e general Paulo Sérgio Nogueira e o ex-ministro e também general Walter Braga Netto, além do ex-comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, todos denunciados por anuir, apoiar, estimular e/ou dirigir uma tentativa de golpe de Estado ao longo de 2022, com o objetivo de impedir a vitória e, posteriormente, a posse de Lula.

A audiência do general era especialmente aguardada, dado que sua suposta recusa de embarcar no golpe foi apontada, por meses a fio, como a razão fundamental para a derrota dos planos golpistas. Freire Gomes, no entanto, decidiu surpreender os articulistas e o próprio Procurador Geral da República, Paulo Gonet, que o laurearam como um herói legalista, e, como testemunha, apresentou uma versão mais abrandada dos fatos do que a relatada pela imprensa e, em grande medida, interpretada pelo procurador em sua denúncia.

O general confirmou ter sido convocado por Bolsonaro para uma reunião em 7 de dezembro de 2022, na qual apresentou a minuta golpista pela primeira vez. Confirmou, também, que a minuta previa a instauração de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), estado de defesa e estado de sítio. Mas atenuou o fato: “Ele apresentou esses considerandos, todos eles embasados em aspectos jurídicos, dentro da Constituição. Não nos causou espécie. Como ainda ia ser estudado e aprofundado, nós aguardamos uma outra manifestação do senhor presidente”. É dizer, primeiro, que para o general havia embasamento jurídico-constitucional para o documento; que ele não se surpreendeu – embora se tratasse de botar a tropa na rua –, e que, no seu ímpeto de herói legalista, decidiu pela espera como melhor remédio. Em outra ocasião, com o assunto da minuta retomado, Freire Gomes teria se posicionado: “pelo que me lembro, ele [Bolsonaro] apenas comentou o estudo. O brigadeiro Baptista Júnior [ex-chefe da Aeronáutica] falou que não faria qualquer coisa e eu informei ao presidente, de forma bastante cordial, que as medidas que ele quisesse tomar deveriam considerar vários aspectos: o apoio internacional e nacional, o Congresso, a parte jurídica.” Há uma contradição evidente: se o documento estava “embasado em aspectos jurídicos, dentro da Constituição”, por que o comandante do Exército disse ao presidente que haveria de se considerar “a parte jurídica”? Se não havia nada de errado com a minuta – “não causou espécie” ao general, afinal, a sua primeira versão – por que Bolsonaro deveria considerar “o apoio internacional e nacional, o Congresso”?

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Mais: Freire Gomes negou, na sua oitiva, que tenha dado ou ameaçado dar voz de prisão a Bolsonaro, como os obcecados por fardados legalistas gostavam de repetir. “A mídia até reportou aí que eu teria dado voz de prisão ao presidente, não aconteceu isso de forma alguma. Acho que houve aí uma má-interpretação, até quando nós conversamos em paralelo aí os comandantes […] O que eu alertei ao presidente, sim, foi que, se ele saísse dos aspectos jurídicos, né, além de ele não poder contar com nosso apoio, ele poderia ser enquadrado juridicamente”, disse o general, de acordo com o Metrópoles. Se o presidente “saísse dos aspectos jurídicos”, quem o “enquadraria”? Este general de aço?

O momento de maior tensão, no entanto, foi quando o ex-comandante do Exército falou do ex-almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha. “O almirante Garnier tomou a postura dele, acho que também foi surpreendido [com a minuta], e se manifestou. Não interpretei como qualquer tipo de conluio”, disse o general, que foi interrompido pelo ministro Alexandre de Moraes: “A testemunha não pode omitir o que sabe. Vou dar uma chance para a testemunha falar a verdade. Se mentiu para a Polícia Federal, tem que dizer que mentiu para a polícia”, disse. Ao que Freire Gomes respondeu: “após 50 anos de Exército, jamais mentiria [..] O almirante Garnier tomou a postura de ficar com o presidente. Não posso inferir o que ele quis dizer ‘estar com o presidente’. Eu sei exatamente o que falei e afirmo: ele disse que estava com o presidente, e a intenção do que ele quis dizer com isso não me cabe [interpretar].”

O “general legalista” que teria nos salvado de um golpe de Estado não crê que, com seus 50 anos de atividade militar, seja capaz de avaliar o que “estar com o presidente” significa quando este apresenta um documento, 38 dias após as eleições e a 25 dias da posse do novo governo, prevendo instauração de estado de sítio, de Defesa e Garantia da Lei e da Ordem? Será que é lícito supor que Garnier talvez estivesse sendo absolutamente literal ao dizer que “estava com o presidente” – isto é, que o almirante buscava simplesmente informar a Bolsonaro que, de fato, se encontrava na mesma sala que este? Que não era um sósia seu que atendera à convocação para parlar com o mandatário? Que não havia tido seu corpo e farda tomado por forças extraterrestres? A Freire Gomes, ex-comandante do Exército, não cabe supor…

A leitura colorida dos fatos por parte do general cumpre algumas funções. Primeiro, por óbvio, auxilia na defesa do almirante Almir Garnier. É relevante lembrar que o então comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Júnior, deveria ter dado seu depoimento hoje, mas pediu para alterar a data de sua oitiva, remarcada para o dia 21 de maio. Será muito surpreendente se, na quarta-feira, sabendo agora do que disse Freire Gomes, Baptista Júnior apresentar uma versão também mais abrandada dos fatos? Será surpreendente se, com as versões mais tíbias de seus companheiros, Garnier acabar livre das acusações? Afinal, quantas divisões tem o STF para sustentar as consequências de pressionar um ex-comandante do Exército e um ex-comandante da Aeronáutica a delatar seu companheiro da Marinha?

Dado que estas conversas deram-se entre o presidente, o ministro da Defesa e os comandantes, é evidente que as declarações de Freire Gomes e Baptista Júnior são fundamentais tanto para a punição quanto para a impunidade do ex-comandante da Marinha. Até na paz dos tribunais a força das armas parece pender a balança. 

Segundo, a declaração de Freire Gomes – a ver até que ponto secundada por Baptista Júnior – auxilia no descrédito da denúncia da PGR como um todo, tendo em vista que ela atribuiu grande peso às palavras dos comandantes: a denúncia afirma que “os operadores do plano, com todos os preparativos completos, somente não ultimaram o combinado, por não haverem conseguido, na última hora, cooptar o Comandante do Exército”, que “é de ser observado que o próprio Exército foi vítima da conspirata”, e que “a decisão dos generais, especialmente dos que comandava Regiões, e do Comandante do Exército de se manterem no seu papel constitucional foi determinante para que o golpe, mesmo tentado, mesmo posto em curso, não prosperasse”. Não é surpreendente, portanto, que Bolsonaro tenha aproveitado o depoimento do ex-comandante do Exército: “mais um que manda mais mentiras pra latrina”, disse o ex-presidente.

muito venho insistindo que o papel dos comandantes das Forças nas tramas golpistas, e a interpretação apressada de que estes “nos salvaram” com seu “legalismo”, além de contribuir para manter intocadas Forças Armadas que emprestaram quadros à causa golpista – o que é o elemento mais grave –, colabora com a impunidade – o que tampouco é desprezível. Como escrevi em novembro do ano passado, “nas explicações sobre porque o golpe não triunfou, têm-se apontado à recusa, por uma parte do Alto-Comando, e especialmente do então comandante do Exército, Freire Gomes, a embarcar na conspiração. Assim, um golpe gestado nas entranhas das Forças Armadas – mas por militares individuais – teria sido impedido pelas Forças Armadas como organização. Há algumas lacunas na tese por explicar: primeiro, porque o relatório da PF demonstra – como já era óbvio – que havia contato operacional entre os fardados e os acampamentos golpistas nos quartéis de todo o Brasil. E, como temos insistido aqui, as Forças Armadas em conjunto – Exército, Marinha e Aeronáutica – trabalharam ativamente para manter de pé os acampamentos, um dos elementos da trama golpista, inclusive emitindo nota conjunta em sua defesa; nota essa assinada pelos comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, ambos hoje apontados como fator de dissuasão da trama golpista. Quanto a estas figuras, cabe perguntar ainda porque mantiveram-se em silêncio não só durante os planejamentos golpistas, mas também após eles, quando um novo governo já havia sido empossado: não consta até o momento que tenha sido dos comandantes ‘legalistas’ que nasceu a investigação da PF, afinal, mas sim de um tenente-coronel golpista, Mauro Cid – filho, por sua vez, do general Mauro Lorena, que também auxiliou os acampamentos golpistas, embora não conste na lista de indiciados da PF.”

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Ao optar por ignorar questões tão simples, a justiça colocou como testemunhas de acusação figuras que efetivamente contribuíram, senão no todo, ao menos em parte, para a trama golpista. Na sua abrupta moderação, a testemunha de acusação Freire Gomes agora parece tomar o papel de testemunha de defesa; o reconhecido legalista revela-se outra coisa – o que afinal não é novo, como a atuação de Amaury Kruel em 1964 prova. Ainda cabe a pergunta: se, mesmo sem a anuência do então comandante do Exército, o golpe tivesse sido movido, este estrelado militar se disporia à resistência armada? Ou, também neste caso, procuraria o caminho da coesão com seus irmãos de farda, como parece procurar agora, como depoente?

​​(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

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