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O trumpismo e a paz por meio da força

Donald Trump tenta deixar como legado uma doutrina de desprezo pelo multilateralismo que busca reposicionar os EUA como o detentor do poder militar absoluto

Carmen Navas Reyes
O presidente dos EUA, Donald Trump, em discurso pelo 250º aniversário da Marinha dos EUA. (Foto: Daniel Torok / White House)
O presidente dos EUA, Donald Trump, em discurso pelo 250º aniversário da Marinha dos EUA. (Foto: Daniel Torok / White House)

De Monroe a Trump, o unilateralismo

A famosa Doutrina Monroe (DM) de 1823, que os povos do Sul conhecem muito bem, é a primeira grande declaração unilateral dos Estados Unidos: “América para os americanos”. Sob sua hegemonia, estabeleceu-se a esfera de influência e o direito de intervir nesta vasta região que vai do México à Argentina. A Doutrina é a antecessora da doutrina Trump em sua pretensão de sobrepor a soberania deste país à soberania regional.

O Corolário Roosevelt, de 1904: o presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) amplia a Doutrina Monroe, justificando as intervenções militares preventivas na região com a finalidade de evitar a instabilidade. É a expressão mais clara do intervencionismo americano. Por meio dessa tese, os EUA invadiram o Panamá e o Haiti em nossa região, e as Filipinas, na Ásia. Pode-se dizer que é a linhagem mais direta da “paz pela força” antes de Trump.

Doutrina Truman, de 1947, e a contenção: aqui, pela primeira vez, o unilateralismo dá lugar a um multilateralismo liderado pelos Estados Unidos. Constrói-se um sistema de alianças (OTAN) e age-se sob a égide de instituições internacionais (ONU) para conter um rival. É o oposto da abordagem de Trump.

Doutrina Bush (pós-11 de setembro): a guerra preventiva e a promoção da democracia pela força, especialmente após a queda das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Semelhante a Trump no uso da força, mas diferente em seu objetivo; Bush buscava transformar regiões, com nações mais ao seu gosto (nation-building); Trump não tem interesse em fingir que se importa com outros países.

A “Paz pela Força” vs. os Mecanismos Multilaterais de Construção da Paz

De acordo com o que era idealmente o Modelo Multilateral da ONU, que este ano completa 80 anos, a paz é construída por meio da diplomacia, do direito internacional, da cooperação e da ajuda ao desenvolvimento; o uso da força é sempre o último recurso e é exercido sob mandato do Conselho de Segurança. A Carta da ONU se baseia na soberania igualitária dos Estados e na proibição do uso da força, exceto em legítima defesa ou sob autorização expressa.

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O Modelo Trump (“Paz pela Força”) surgiu para tentar pôr um fim definitivo à ONU. Em 29 de janeiro de 2014, em Havana, Cuba, a II Cúpula da (CELAC) reafirma o seu compromisso com a paz e a estabilidade ao declarar a América Latina e o Caribe como uma Zona de Paz, para consolidar uma área livre de conflitos e tensões, promovendo o diálogo e a cooperação como ferramentas fundamentais para resolver qualquer disputa. A última viagem de Marco Rubio pelo Caribe e outras nações da América Latina teve como objetivo romper esse consenso. Em 15 de setembro de 2025, o presidente Nicolás Maduro solicitou a convocação extraordinária da CELAC, em uma tentativa de recuperar esse espírito.

Nos primeiros meses de seu segundo mandato, Trump nos deu indícios de que, para ele, a paz é um subproduto do poder militar avassalador (“Peace through Strength”), fazendo assim uma referência ao governo de Ronald Reagan. A dissuasão pela ameaça do uso da força militar substitui a diplomacia e é uma ferramenta de primeira opção — não o último recurso —, e exercida de forma unilateral frente a qualquer ameaça percebida aos interesses nacionais dos EUA.

A Guerra contra as Drogas no Caribe como Expressão da Doutrina Trump

O Caribe como “terceira fronteira” e zona de trânsito de narcóticos. Tradicionalmente, a abordagem dos EUA para esta região tem sido mista (cooperação em segurança + ajuda ao desenvolvimento). Sob a nova doutrina Trump, as operações militares são intensificadas a uma dimensão nunca antes vista; a interdição é priorizada em detrimento dos programas de cooperação para o combate ou tratamento de dependências químicas e os países são pressionados com a ameaça de sanções caso não cooperem plenamente com as agendas de segurança dos Estados Unidos (uma reminiscência da política do big stick).

É nesse âmbito que se inscrevem as atuais operações na Bacia do Caribe sob um comando puramente militar e securitário, com menos ênfase na coordenação com agências civis ou governos locais com fins de cooperação e com o interesse de avançar em sua estratégia de mudança de regime, uma vez tendo identificado a Venezuela como seu principal inimigo nessa zona. A região é tratada como um cenário onde se deve aplicar a força para proteger a fronteira sul, quintal ou zona vital dos EUA, e não como uma comunidade de nações parceiras com as quais se constrói paz e estabilidade a longo prazo. É a “paz” imposta pela força.

O simbolismo do poder: Departamento de “Guerra” e a fusão entre segurança e diplomacia

A ideia de renomear o Departamento de Defesa (DD) para o histórico Departamento de Guerra (DG) não é apenas anedótica; o governo Trump tenta configurar um símbolo de seu poder: o DG implica uma postura abertamente ofensiva, agressiva e ativa, que expressa sem dúvida o desejo de retomar o espírito dos Estados Unidos, a maior potência militar do mundo, e novamente pôr um fim definitivo ao modelo pós-Segunda Guerra Mundial, incluindo a ONU e o direito internacional.

Marco Rubio simboliza, sem dúvida, o enfraquecimento deliberado da diplomacia dos Estados Unidos; seu duplo papel como Secretário de Estado e principal assessor de Segurança Nacional o coloca na mesmo posição sombria de Henry Kissinger na década de 1970, e isso não significa nada de bom, como mostra o passado, para países como Cuba, Venezuela e Nicarágua, mas também para os movimentos populares do Sul Global, que já vislumbraram o que essas decisões acarretarão.

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A ação externa dos Estados Unidos baseia-se cada vez mais em critérios de segurança (migração, narcotráfico, terrorismo, comunicação), e a diplomacia limita-se a pressionar em favor de interesses e a agrega países aliados.

Por fim, essas mudanças sugerem uma transformação profunda e duradoura na mentalidade da política externa dos Estados Unidos, que provavelmente continuará influindo no futuro, independentemente do governo, pelo que estaríamos diante de uma nova doutrina: o trumpismo. Donald Trump está se empenhando em deixar esse legado como um princípio orientador para o mundo, caracterizado pela tentativa de reposicionar os EUA como detentores do poder militar absoluto, da soberania nacional e do desprezo pelo multilateralismo. Essa mudança obedece ao fato de que já não estamos diante da primeira potência econômica do mundo, e isso afeta proporcionalmente sua capacidade militar e outras capacidades, pelo que Trump também se encontra em uma corrida que só ele parece querer protagonizar, em várias frentes ao mesmo tempo.

A incipiente doutrina Trump, exposta em seu discurso perante a 80ª Assembleia Geral da ONU, seria então um híbrido que, por um lado, recupera o unilateralismo isolacionista de Monroe e o big stick de Roosevelt, rejeita a responsabilidade da nation-building de Bush, enquanto enterra o arcabouço multilateral de Truman como forma de contenção de rivais ou adversários.

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