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A aposta que o Brasil perdeu

O Brasil lucra pouco com a febre das apostas: empresas estrangeiras ganham bilhões enquanto famílias se endividam e o Congresso evita taxá-las

Frei Betto
Senador Cleitinho tira foto com Virginia Fonseca durante sessão da CPI das Bets em que a influencer estava na condição de testemunha (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)
Senador Cleitinho tira foto com Virginia Fonseca durante sessão da CPI das Bets em que a influencer estava na condição de testemunha (Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

Apostar nunca foi tão fácil. Antigamente, para perder dinheiro, o cidadão precisava de esforço: procurar uma banca do jogo do bicho ou se arriscar em um cassino clandestino. Hoje, basta abrir um aplicativo coloridinho, escolher se o Palmeiras vai ganhar escanteio aos 12 minutos e, pronto, lá se foram os 100 reais reservados para comprar o botijão de gás.

As “bets” são a Disney dos adultos desavisados, com notificações piscando, bônus mágicos que desaparecem rapidinho e a ilusão de que a vida pode ser resolvida num “bilhete certeiro”. O problema é que, diferente da Disney, aqui não tem castelo da Cinderela, só boleto acumulado.

Tudo começa na boa fé. O cidadão baixa o app porque o amigo “acertou 400 reais apostando 5”. Logo pensa “Ora, se ele conseguiu, eu também consigo”. E lá se vão 10 reais no primeiro bilhete.

No início, vem até aquele micro “green”. Um acerto, dois… pronto, o ego já está cheio de autoconfiança. Esquece o orçamento familiar, esquece guardar dinheiro, esquece o Plano de Saúde. O dinheiro da aposentadoria está nas mãos do novo atacante do Flamengo.

Mas logo vem o “red”. E com ele, a promessa: “Agora recupero no próximo”. Recupera? Claro que não. Vai acumulando prejuízo e, no meio do mês, já está em busca de um parente que aceita Pix parcelado para pagar o empréstimo “temporário”.

A principal dica para ganhar dinheiro com apostas é ser dono da casa de apostas. A lógica é simples, a “bet” não é uma instituição de caridade. Se dá 50 reais de bônus, é porque sabe que vai arrancar 500.

Os algoritmos são montados para dar a sensação de “quase ganhou”. Quase. Sempre quase. A “bet” mantém o apostador preso ao vício. Ele acha que está “a um bilhete” de mudar de vida, mas na verdade está a um clique de estourar o limite do cartão de crédito.

Ninguém fica rico apostando em cassinos digitais. Fica rico quem cria o aplicativo. Se já percebeu que seu dinheiro está sumindo, peça ajuda. Existe tratamento para ludopatia, e quanto antes você parar, menos boletos vão ser sacrificados no altar do “green”. E procure outros divertimentos menos custosos. Assistir ao jogo sem apostar é de graça (ou quase, considerando o preço do streaming). Fazer vaquinha para um churrasco com os amigos também dá emoção, e se alguém queimar a carne, pelo menos não vai ser um prejuízo de 300 reais.

A recente votação na Câmara dos Deputados, em 8 de outubro, provocou forte reação no mundo político e econômico brasileiro no setor de apostas esportivas. O episódio revelou não apenas o poder do lobby dessas empresas, mas também como o país ainda hesita em enfrentar, com seriedade, os riscos sociais e fiscais do jogo digital.

Desde 2023, com a Lei 14.790, o Brasil instituiu o marco regulatório das apostas de quota fixa, legalizando e organizando o setor sob regras de licenciamento e tributação. Muitas empresas, porém, já operavam antes disso, sem recolher tributos ou manter controle contábil adequado. Para corrigir essas irregularidades, o governo incluiu na Medida Provisória 1.303/2025 a proposta de aumento de alíquotas de 12% para 18%, e de tributação retroativa das operações anteriores à regulamentação.

O objetivo era compensar perdas de arrecadação decorrentes da revogação do aumento do IOF, estimadas em até R$ 17 bilhões. A MP também previa recuperar valores não pagos ao fisco.

Na prática, tratava-se de colocar as casas de apostas em situação fiscal mais rigorosa e transparente. Mas o que parecia um ajuste necessário terminou em derrota para o governo e vitória para o setor.

Ao chegar ao plenário da Câmara, a MP foi retirada de pauta e caducou. Dos deputados, 251 votaram para que o texto nem fosse apreciado, e 193 favoráveis à discussão. Com isso, todas as medidas tributárias caíram por terra, e as apostas mantiveram o regime anterior menos oneroso e mais flexível.

O resultado foi comemorado pelas operadoras, que escaparam de um aumento expressivo de carga fiscal e da tributação retroativa que poderia reduzir seus lucros. Para o Estado, significou perda bilionária de arrecadação e mais um impasse político em torno da justiça tributária.

A curto prazo, as “bets” respiram aliviadas. Permanecem com a tributação original e ganham tempo para reorganizar seus negócios. Mas o país perde fôlego fiscal, pois sem os recursos previstos, o governo pode enfrentar dificuldades para manter programas sociais e investimentos.

O episódio também reforça a percepção de que pressões econômicas e políticas têm peso desproporcional nas decisões legislativas. Ao mesmo tempo, a incerteza regulatória aumenta o risco para investidores e fragiliza a credibilidade do Brasil no cenário internacional.

Há ainda o efeito social, já que o alívio tributário às casas de apostas contrasta com a carga que recai sobre trabalhadores e consumidores. Em um país de desigualdades históricas, a sensação é de que o jogo continua sendo vantajoso apenas para quem já detém as fichas. Estimativas sugerem que deixarão de ser captados até R$ 17 bilhões em 2026.

O Brasil vive uma contradição perigosa. De um lado, lucros astronômicos de empresas estrangeiras que exploram a emoção nacional pelo futebol. De outro, famílias endividadas, cofres públicos esvaziados e um Legislativo que hesita em cobrar o justo de quem mais ganha.

A votação de 8 de outubro não foi apenas um ato político; foi um espelho. Mostrou que boa parte da população ainda aposta que a sorte ou o empreendedorismo individual vale mais que o equilíbrio fiscal e as políticas sociais do governo. Apostar pode até ser divertido, mas quando o jogo passa a ditar a política e a economia, o prejuízo é coletivo. 

Se setores mais sofisticados, como as “bets”, escaparem de tributação mais pesada, a carga tributária recairá mais fortemente sobre a renda e o consumo do trabalhador. Perdura o efeito regressivo: quem tem mais capital se beneficia, quem depende de salários ou consumo sofre mais. Isso agrava desigualdades e mina a legitimidade social das políticas tributárias. Os mais ricos agradecem.

(*) Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

Revista Opera A Revista Opera é um veículo popular, contra-hegemônico e independente fundado em abril de 2012.

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