No segundo dia deste mês um míssil balístico intercontinental foi lançado da base aérea de Vanderberg, no condado de Santa Bárbara, na Califórnia, com o propósito de “validar e verificar a efetividade, preparação e precisão do sistema”, de acordo com a Força Aérea dos Estados Unidos. Trata-se do quarto teste do míssil “Minuteman” realizado neste ano na base californiana.
A informação provavelmente é uma novidade para o leitor. Foi divulgada em pequenas notas das agências internacionais, não publicada sob manchetes escandalosas dos grandes jornais.
O principal âncora da MSNBC, Brian Williams, não poderia ter sido mais claro quanto à balança moral bamba da mídia global quando declarou ao vivo, na semana passada, que “nosso trabalho é apavorar as pessoas” sobre a Coreia do Norte. A estratégia tem tido resultados: em uma pesquisa realizada pela CNN no começo do mês, 62% dos entrevistados disseram considerar que a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) representa uma “ameaça muito séria” aos Estados Unidos – em março, eram 48%. O país asiático só ficou atrás do Estado Islâmico (64%).
Da mesma forma, 50% disseram apoiar o uso de ações militares por parte dos EUA em resposta ao desenvolvimento e teste de armas que possam atingir seu país. É importante ressaltar: 50% dos entrevistados disseram que são a favor de que seu país tome ações militares em resposta à possibilidade de serem atacados, não no caso de serem de fato.
Como disse Ésquilo, o pai da tragédia, a primeira vítima da guerra é a verdade – contra a Coreia do Norte, a imprensa já prepara o campo de batalha há anos.
De que outra forma seria possível, afinal, que nos espantássemos com o “perigo” representado por um país a mais de 17 mil quilômetros de distância, que nunca esteve envolvido em nenhuma guerra além de suas fronteiras, que historicamente tem de barganhar sua sobrevivência, mas considerássemos menos perigoso um vizinho que ocupa o primeiro lugar no mundo em investimento militar, que teve participação em incontáveis golpes e guerras nas últimas décadas – inclusive em nosso país -, que lidera a maior aliança militar da história?
Trata-se da percepção de que os Estados Unidos de fato são um país eleito, levando a cabo a missão divina de promover a justiça no mundo – ainda que o caráter de tal justiça se traduza concretamente na perda de milhões de vidas -, enquanto a Coreia do Norte é a representante máxima do mal na terra – talvez atrás do EI, somente?
É esta a percepção que nos é incutida cada vez que um teste de míssil intercontinental norte-americano é tratado como algo trivial pelos jornais, ao passo que um norte-coreano fomenta tanta preocupação e debate. É natural, afinal, que metade da população norte-americana considere justo que se tome ações militares contra a Coreia, mas é uma abominação, fruto da “lavagem cerebral do regime”, o rancor dos norte-coreanos contra o império que os obliterou há 60 anos. É como disse Leonel Brizola, em sua histórica resposta à TV Globo: não são capazes de ver nos outros senão os vícios que carregam em si mesmos.