Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, sofreu um golpe de estado que se valeu de motins policiais, violência paramilitar, movimentações institucionais, sequestros. Foi um processo feito por camadas, com o apoio de organismos internacionais – que prepararam o terreno -, e figuras políticas tradicionais.
Iniciado a partir de uma denúncia de fraude eleitoral – absolutamente farsesca, como demonstrou o CELAG e o CEPR -, o golpe avançou na retórica de Carlos Mesa, na organização de grupos de choque a partir do Comitê Cívico de Santa Cruz, no discurso midiático e da OEA, nos motins policiais. E se consolidou por completo quando, em meio ao caos, ficou evidente que as Forças Armadas do país já haviam apostado em um lado.
Ao golpe seguiram a repressão e a perseguição. Ao menos 35 foram mortos, mais de 800 feridos e ao menos 50 detidos. Políticos ligados ao MAS foram perseguidos por grupos de choque, alguns tiveram suas casas invadidas e outros foram obrigados a buscar asilo em embaixadas. Os levantes contra o governo autoproclamado de Jeanine Áñez foram pronta e violentamente reprimidos, milhares de militares foram jogados nas ruas e Morales chegou a ter emitido contra si um mandato por “terrorismo e sedição”.
A despeito disso, nesta terça-feira (21), dois meses depois de Evo Morales deixar a Bolívia, o parlamento boliviano aceitou as cartas de renúncia do presidente golpeado e de seu vice-presidente, Álvaro García Linera.
À frente do processo que oficializou a renúncia de Morales, ironicamente, estiveram a senadora Eva Copa, que preside a Assembleia Legislativa da Bolívia, e o vice-presidente da Câmara dos Deputados, Henry Cabrera, ambos do Movimento Al Socialismo (MAS), partido de Evo. O MAS atualmente conta com 88 das 130 cadeiras da Câmara de Deputados, e com 25 das 39 do Senado e, a apesar de alguma discussão interna entre uma ala que se recusava a aceitar a renúncia e outra, que a defendia, o MAS terminou por oficializar o processo. “O que deve prevalecer no momento é a paz em nosso país, mantendo a linha de pacificação e estabilidade social”, disse Eva Copa. Alguns parlamentares argumentaram também que, com a aceitação da renúncia, seria possível barrar no campo jurídico alguns dos ataques do governo contra o ex-presidente.
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Um partido à deriva…
Apesar de um contrassenso para um partido que teve seu presidente golpeado, a ação dos parlamentares do MAS obedece a uma lógica. Hoje (22) é o dia em que, se ainda estivesse no poder, Evo terminaria seu mandato. A data coincide com o fim dos mandatos parlamentares, o que poderia significar a concessão de plenos poderes à presidente golpista Jeanine Áñez. No entanto, na segunda-feira (20) Áñez assinou uma lei estendendo o mandato de seu próprio governo, bem como do Legislativo, até a realização das novas eleições em maio. Como quem, assinando uma lei, assina na verdade uma manchete: “o governo não teme o poder parlamentar da oposição.”
Além disso, no dia 19 de janeiro, em um uma reunião na Argentina, o partido escolheu o nome de Luis Arce como seu candidato à novas eleições. Proveniente da classe média, formado em economia pela Universidad Mayor de San Andrés e com pós-graduação na Universidade de Warwick, na Inglaterra, Arce iniciou sua carreira no final dos anos 80, trabalhando para o Banco Central da Bolívia. Depois, foi ministro da Economia de Evo durante três mandatos, e é elogiado internacionalmente como o homem por trás do crescimento da economia boliviana.
…Em meio ao mar revolto
O anúncio de seu nome foi um balde de água fria para os que esperavam que o partido escolhesse uma candidatura mais à esquerda e próxima das bases, como a do jovem líder sindicalista Andrónico Rodríguez, cotado como um favorito. A escolha do MAS, somada à sua atuação parlamentar, manda uma mensagem clara: buscam “pacificar” o país, tutelado sob a força das armas, por meio da fraqueza das concessões e em busca de consensos.
Huge mobilization of the Bolivian military in the center of La Paz, outside San Francisco cathedral.
In six days, social movements will be protesting here against the coup. pic.twitter.com/CxUqdV44rv
— Ollie Vargas (@OllieVargas79) January 16, 2020
Não bastando a confiança nas instituições judiciais e no processo eleitoral em si, o MAS parece decidido pela ingênua direção do não-enfrentamento, na busca pelo “centro” e pela classe média.
Este filme já vimos antes, em nosso país. Frente ao avanço contra seu governo a partir de 2014, a presidenta Dilma Rousseff tentou desesperadamente conceder para ser poupada, apontando inclusive Joaquim Levy para a Fazenda. Igualmente, o Partido dos Trabalhadores confiou na sua força parlamentar, nas instituições e na batalha jurídica, dando às mobilizações – pequeníssimas, a propósito – um caráter secundário e, acima de tudo, nenhuma guarida governamental na retaguarda. Os resultados conhecemos; Dilma foi golpeada sem muita turbulência, Lula posteriormente foi preso e Haddad foi derrotado. A maior mobilização contra o governo de Temer não foi feita pela oposição, mas pelos caminhoneiros – e muito mal aproveitada pelo Partido dos Trabalhadores, que decidiu lavar as mãos.
Na Bolívia, a candura é ainda mais grave. Primeiro porque no país, ao contrário do Brasil, o “uso máximo da força” do qual falara Clausewitz, se não realizado, ao menos já está hasteado em praça pública, na forma de fardas que marcham para cá e para lá, manchadas do sangue das recentes batalhas. Segundo porque também os “meios institucionais” podem ser utilizados, a despeito de qualquer apego que por eles o MAS venha a demonstrar. É o que sugere o anúncio de que o Ministério Público da Bolívia ampliará as investigações contra Luis Carce. Por fim, porque mesmo o processo eleitoral pode acabar por punir o partido: a última pesquisa de opinião no país dá conta de 47,1% dos votos a candidatos opositores de Evo, e 23,7% pelo MAS. Ainda que seja cedo para dizer, e que historicamente as pesquisas de opinião na Bolívia subrepresentem os votos do campo, é certo que também nessa frente a direita usará de todas as armas. Sendo vitoriosa, galgará a legitimidade, apagando as manchas do golpe de estado e jogando o MAS na desonra.
Como um jornalista perguntou em uma rede social, comentando o vídeo acima: “Que farão esses homens se o MAS ganhar?” A Clausewitz recorremos mais uma vez pela resposta: “A guerra é uma atividade tão perigosa que os erros advindos da bondade são os piores. O uso máximo da força não é de maneira alguma compatível com o emprego simultâneo da inteligência. Se um dos lados utiliza a força sem remorso, sem deter-se devido ao derramamento de sangue que ela acarreta, enquanto que o outro abstém-se de utilizá-la, o primeiro estará em vantagem.”
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