Em 7 de abril de 2018, em Ancona, na sala da ANPI (Associazione Nazionale Partigiani d’Italia), foi realizada a uma conferência do professor Domenico Losurdo intitulada “Marxismo e comunismo nos 200 do nascimento de Marx”. A iniciativa foi promovida pela seção do Partido Comunista Italiano de Ancona e foi apresentada pelo secretário da seção, Ruggero Giacomini.
Com um tom mais baixo e mais lento do que o usual em razão dos primeiros sintomas da doença, seguido pelo grande público com atenção e silêncio religioso, Losurdo aprofundou o conceito da moralidade superior do movimento comunista criado por Marx, comparando-o ao capitalismo colonialista e imperialista. Após a apresentação, respondeu algumas perguntas. Esta foi sua última intervenção pública de Domenico Losurdo. Atingido por um mal inexorável finalmente revelado e rapidamente precipitado, ele morreu em sua casa em Colbordolo (Pesaro-Urbino) na manhã de 28 de junho de 2018.
O texto da intervenção que relatamos e que o autor não pôde revisar foi retirado da gravação com subtítulos introduzidos pela edição. Nós o publicamos por seu valor cultural e político de particular relevância, e pela memória e como tributo ao grande intelectual e militante revolucionário internacionalmente renomado, membro oficial do CC do PCI, presidente da Associação Político-Cultural Marx21 e presidente honorário do Centro Cultural de Marche “La Città Futura”, para cujo nascimento e atividade sempre contribuiu ativamente.
– Seção regional do PCI de Ancona
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Não há dúvida que, desde Marx, a história mundial mudou completamente. E talvez a transformação decisiva, a transformação mais significativa é aquela que Ruggero [Giacomini] mencionou, quando disse que o mundo já foi considerado limitado ao Ocidente.
Mesmo em Gramsci podemos ler essa observação crítica, sobre a qual ele cita Bergson, este ilustre filósofo francês do século XX. Gramsci diz sobre Bergson que, para ele, a humanidade significa o Ocidente. Em outras palavras, por muito tempo, o Ocidente não apenas se considerou o centro do mundo, mas de alguma maneira tendeu a excluir os povos não-ocidentais da dignidade humana.
Hoje está claro que tudo mudou. Tudo mudou. O processo ainda está em andamento, não podemos prever como ele irá se desenvolver. Mas uma coisa é clara: hoje, falar de história, de história do mundo, ignorando a história do comunismo, é simplesmente um sinal de ignorância. Partindo de Marx, a história mundial foi também a história da luta a favor e contra o comunismo. Não é por acaso que Marx, juntamente com Engels, foi o autor do Manifesto do Partido Comunista, publicado pela primeira vez em 1848.
Mundialização da História
Vamos considerar essa abordagem de modo diferente: devemos considerar a humanidade como um todo ou apenas o Ocidente? Como se os extra-ocidentais não tivessem a dignidade dos homens? É um problema que ainda hoje nos investe, naturalmente em novas formas, mas ainda hoje nos investe.
O século XX, que acabou de terminar, foi o século que viu o advento da história mundial – quero enfatizar esse conceito –, antes de Marx e antes do movimento comunista não havia história do mundo. Sim, se falava da história do mundo, mas a história do mundo era em última análise identificada com a história do Ocidente. E essa perspectiva falsificou a leitura da história. Pensemos, por exemplo, na eclosão da Primeira Guerra Mundial, 1914-1918. Por que a Primeira Guerra Mundial estourou, o que é e onde ela se verifica? Naturalmente eclodiu na Europa e investiu o mundo inteiro; ela investiu o mundo inteiro porque ela também envolveu o mundo colonial. Pode ser interessante reler a caracterização que Lenin faz da Primeira Guerra Mundial. Quando irrompeu, estamos no ano de 1914, e estão todos um pouco atordoados com essa revolta.
Por muito tempo a ideologia dominante, a ideologia oficial havia dito que a era das sublevações havia terminado. E por que então explode? Lenin dá uma definição sobre a qual ainda vale a pena refletir. A Primeira Guerra Mundial, diz Lenin, é, de um lado, a luta entre os grandes proprietários de escravos pela expansão e defesa de próprio império colonial e escravista; por outro lado, é a luta desses proprietários de escravos para fortalecer sua dominação sobre os escravos coloniais. Ou seja, é Lenin o único que, ao analisar a Primeira Guerra Mundial, põe ênfase na escravidão colonial.
A Primeira Guerra Mundial não é apenas um assunto europeu e ocidental. Não podemos entender a Primeira Guerra Mundial sem entender o papel da escravidão colonial.
Isso é um exagero polêmico de Lenin? À primeira vista, parece que sim. Certamente, definir a Grã-Bretanha, que afirmava ser a personificação da liberdade, um império colonial escravista, parece uma ‘loucura’. Mas na realidade não é.
Pensem no que acontece com as colônias imediatamente após a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Basta ler o que afirmam historiadores burgueses. Todos os grandes protagonistas desta guerra precisam de soldados, eles precisam de “bucha de canhão”; e como é obtida essa bucha de canhão? É obtida com assaltos realizados nas colônias para capturar precisamente soldados, buchas de canhão, milhões e milhões de pessoas que são enviadas para matar e morrer a milhares de quilômetros de distância por uma guerra da qual ignoram tudo ou quase tudo.
Não é que os povos coloniais gostem de ser usados como bucha de canhão. Por exemplo, em 1916, há uma revolução na Irlanda. Irlanda, que fazia parte do Império Britânico, o império que deveria ter sido a personificação da liberdade. O Império Britânico é, na verdade, o Estado que vê a primeira revolta ‒ antes da Revolução de Outubro ‒ contra a guerra. Há outros, é claro. E entre estes um papel decisivo é desempenhado pelo [Estado saído da] Revolução de Outubro.
Mesmo na Itália, chegou-se ao limiar da revolução armada contra a guerra imperialista, contra a guerra colonial. Chegamos ao limiar desta revolta, não ocorre uma verdadeira revolução, mas chegamos ao limiar desta revolução.
Originalidade da abordagem de Lenin
Vejam a originalidade da abordagem de Lenin: quando a Primeira Guerra Mundial irrompe, ele diz, estamos na presença de dois gigantescos conflitos que pelo menos por algum tempo se fundem em um. Quais são esses dois conflitos gigantescos?
Um, novamente, é a competição, a luta até a morte, entre as potências colonialistas e imperialistas, colonialistas e escravistas: este é o primeiro conflito gigantesco. O outro grande conflito que explodiu em 1914 é a luta das colônias, dos escravos nas colônias para romper as correntes da escravidão.
Vale a pena dizer algumas palavras sobre a originalidade da abordagem leninista. Por que? Porque a leitura que foi feita de 1914 e que ainda faz parte dos manuais de história é uma leitura que tenta esconder a tragédia das colônias. Parece que a sofrer, morrer, serem forçadas a matar e serem mortas são apenas as grandes potências colonialistas e imperialistas. Por outro lado, é claro que a partir de 1914 começa também a era das grandes revoluções coloniais.
E a primeira grande revolução anticolonial é precisamente a Revolução de Outubro. A Revolução de Outubro, naturalmente, tem um significado muito mais amplo, não apenas em relação à questão das colônias. A Revolução de Outubro quer pôr fim a um sistema, o sistema capitalista, que, junto com a exploração, também envolve a guerra.
Mas até aquele momento ninguém havia destacado a questão colonial. Lenin é o primeiro. Portanto, do ponto de vista de Lenin, não se pode estabelecer uma paz estável sem questionar esses dois grandes conflitos que se juntam na tragédia consumada entre 1914 e 1918.
A corrida entre as grandes potências capitalistas e colonialistas para apoderar-se do maior império colonial possível, o maior número possível de escravos coloniais – a competição interimperialista e intercapitalista, por um lado – e a revolta dos povos coloniais, por outro, que já antes de 1917 começou a se tornar uma característica da história, é a linguagem utilizada por Lenin.
Em relação à Itália de antes da Primeira Guerra Mundial, temos a guerra da Itália liberal, do assim chamado liberal Giolitti contra a Turquia para submeter a Líbia, para estender o domínio colonial da Itália também à Líbia.
A definição que Lenin dá da Primeira Guerra Mundial, como a guerra da escravidão e como a revolta dos escravos das colônias contra a dominação imperialista colonialista do Ocidente, é uma definição perfeitamente correta e perfeitamente científica. Se a escravidão é o poder de vida e morte que o patrão exercer sobre seus escravos, não há dúvida de que a Primeira Guerra Mundial também foi uma guerra de escravos. Temos diante de nós a descrição de uma fonte insuspeita, uma fonte não comunista. Temos a descrição da perseguição nas colônias para obter o maior número possível de soldados, o maior número possível de escravos coloniais, que são forçados a matar e serem mortos.
Não há dúvida de que o Ocidente liberal, o assim chamado Ocidente liberal, tem um poder de vida e morte sobre as suas colônias e sobre os povos coloniais. Mesmo quando o Ocidente se dá formas liberais, como por exemplo na Grã-Bretanha, na Itália e nos Estados Unidos. Na realidade são sempre os soldados que são forçados a matar e morrer mediante a caça ao homem que não deixa espaço para a vontade dos povos.
O século XX, que começa com a Revolução de Outubro, é o século, por um lado, de uma gigantesca luta planetária contra a guerra e contra o sistema que gera a guerra: o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo; por outro, por volta de 1900, é também a era das revoluções anticoloniais. Esse fenômeno, que até então nunca ocorrera ou ocorrera apenas raramente, excepcionalmente, torna-se a regra. Revoluções anticoloniais caracterizam toda a história do século XX. E hoje esse capítulo da história ainda não terminou. Pensamos nas guerras que ainda sangram, que destroem países como a Líbia, o Iraque, que ameaçam o Irã, as guerras que destruíram a Iugoslávia. É claro que são guerras neocoloniais, não há dúvida.
E são também guerras neocoloniais porque se manifestam com toda a bárbara brutalidade típica das guerras coloniais. A dignidade humana é explicitamente negada aos escravos das colônias. E assim podemos entender a contiguidade entre o capitalismo, por um lado, e o fascismo e o nazismo, por outro. O fascismo e o nazismo se afirmam negando precisamente a dignidade humana aos povos coloniais.
Untermensch, untermenschen
Os povos coloniais são untermenschen, sub-homens. Eles têm a aparência humana, mas eles não são totalmente humanos, eles não são totalmente capazes de entender e querer. Untermensch, sub-humano – untermensch singular, untermenschen plural –, torna-se então a categoria chave do nazismo. Nós devemos refletir sobre isso. O nazismo usa essa categoria, mas não é verdade que essa categoria tenha sido usada pela primeira vez pelo nazismo. Esta categoria atravessa toda a tradição colonial e desempenha um papel central e infame no fascismo e no nazismo. Se nos perguntamos qual é a categoria principal no discurso nazista, é a categoria de untermensch.
Assim, podemos entender que o fascismo e o nazismo estão ligados a um processo gigantesco de desumanização. Povos mesmo numerosos, dezenas e centenas de milhões de homens, de repente vêem negada a dignidade humana. Seres que, sim, têm a aparência da humanidade, mas apenas a aparência. O resto pertence mais ao mundo animal do que ao mundo humano.
Vale a pena refletir sobre essa história da categoria de untermensch, untermenschen. No final do século XIX, nas concessões a oeste da China, em Xangai – esses enclaves que os ocidentais reservaram a si na China –, na entrada de uma concessão francesa estava escrito em forma grande e vistosa, de modo que a ninguém pudesse escapar: “proibido o ingresso de cães e chineses”. Os chineses são incluídos na categoria de cães e não na categoria de homens.
Se nos fixamos ainda nesse período do final do século XIX e início do XX, notamos que havia na entrada de parques públicos no sul dos EUA, letreiros onde se poderia ler: “proibido o ingresso de negros e cães.”
Mesmo os negros (niggers = negracci) são excluídos da dignidade dos homens. E não é apenas uma questão de teoria. Mesmo antes do nazismo prosseguir com sua terrível barbárie, vemos tentativas de implementar essa teoria. Em um caso, posso fazer uma breve menção, a história é esta. O povo indiano participou ativamente da Primeira Guerra Mundial. Sim, tivemos Gandhi, que falou de não-violência, mas na verdade Gandhi participou ativamente da Primeira Guerra Mundial lutando pela Inglaterra. Mas depois houve revoltas.
A Inglaterra, uma grande potência colonial, vinga-se daquilo que considera uma afronta; e imediatamente após a Segunda Guerra Mundial conduz uma vingança refinada ou talvez bárbara: nas cidades indianas, onde havia ocorrido uma rebelião contra o domínio colonial britânico, eis que é inventada uma forma de punição que é imediatamente implementada. Os habitantes dessas cidades se mostraram intolerantes com o domínio britânico, e por isto estas cidades ficam sujeitas à seguinte punição: seus habitantes, quando saem de casa, só podem sair de casa movendo-se a quatro patas, como cachorros; e devem sempre voltar para casa do mesmo jeito. É uma gigantesca humilhação nacional e racial que, naquele momento, imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, atinge um país como a Índia, o segundo país mais populoso do mundo depois da China; e um país que, como a China, tem uma grande tradição cultural. Portanto, é verdade que tanto o colonialismo como o nazismo procedem à desumanização. Povos inteiros são excluídos da dignidade humana. Eles são considerados indignos de participar da comunidade humana.
E aqui é que podemos entender melhor o nazismo. Vejamos que precisamente os russos, os soviéticos, são considerados untermeschen, sub-homens.
O problema moral
Para entender a cultura daqueles anos, incluindo a cultura liberal, quero citar um autor que é bem conhecido, Oswald Spengler, um autor alemão que publica A decadência do Ocidente (1918-1922). A tese central deste livro é esta: a URSS, participando, mesmo promovendo as revoluções anticoloniais, agora não faz mais parte das pessoas brancas, mas na verdade é parte dos negros (niggers), das populações de cor. Veja você, este debate sobre o conceito de homem está no centro de toda a história do século XX. E assim podemos entender melhor a história do comunismo.
Que o comunismo significou grandes momentos de emancipação, não creio que seja necessário explicá-lo aqui.
Mas talvez uma coisa ainda pode ser acrescentada. Quantos livros foram escritos para mostrar que, sim, o comunismo representou um grande progresso, mas foi uma afronta à moralidade, às regras da moralidade. É um grande absurdo. A verdade é exatamente o oposto. A moral, explicaram filósofos como Kant, como Hegel, grandes filósofos burgueses, é a construção de um conceito universal de homem e essa construção se afirmou no século XX graças às lutas dos comunistas.
Sobre isto se poderia fazer um longo discurso e quero dizer alguma outra pequena coisa. Vamos tentar entender melhor a ideologia do Terceiro Reich, a ideologia nazista. Um dos mais famosos e notórios hierarcas do nazismo alemão é Himmler. Ele também está convencido do caráter essencialmente não humano dos povos coloniais. E Himmler diz: “Nós absolutamente precisamos de escravos. Somente com uma forte presença de população reduzida às condições da escravidão nós podemos construir este império colonial do Terceiro Reich, do qual absolutamente precisamos, e que a Alemanha de Hitler começou a edificar.”
Nós absolutamente precisamos de escravos. Himmler diz claramente: “Neste momento em que estamos entre nós – ele estava em uma reunião de hierarcas – posso falar francamente, sem recorrer a expressões equivocadas. Nós absolutamente precisamos de escravos”. Quem podem ser estes escravos? Himmler o diz claramente: os eslavos, os povos da Europa Oriental e principalmente os habitantes da União Soviética têm que ser escravizados. Há uma tentativa em grande escala para reintroduzir a escravidão, a escravidão no sentido clássico do termo. Esta tentativa falha por causa da resistência épica dos povos da União Soviética, que fazem fracassar esta tentativa nazista de escravização.
Do ponto de vista de Himmler, a escravidão é parte integrante da história. Povos de grande civilização, como os gregos e romanos, estavam cheios de escravos; por que os alemães e os nazistas também não fizeram isso? Estou, obviamente, citando o ponto de vista de Himmler e dos hierarcas do Terceiro Reich.
O julgamento de Nuremberg, que condena um certo número de líderes do nazismo à morte, imputa, entre outras coisas, a responsabilidade de querer reintroduzir a instituição da escravidão. E os juízes de Nuremberg estavam certos em acusar Hitler e os hierarcas do Terceiro Reich de quererem trazer de volta a escravidão. Assim, a tese difundida na ideologia burguesa não deve apenas ser rejeitada, mas deve mesmo ser invertida: o comunismo tem sido um capítulo gigantesco também da história da moralidade, da história da afirmação de uma moralidade universal.
A luta não acabou
Esta luta, claro, não acabou. Vocês sabem que também na Europa os movimentos neofascistas e neonazistas estão tentando levantar a cabeça; é difícil para eles fazer isso, mas temos que estar muito atentos. O retorno de teorias francamente racistas que dividem a humanidade: por um lado, homens ou super-homens, por outro os untermenschen, os sub-homens. Esse reaparecimento de teorias abertamente racistas é um fato perturbador. A reação manifesta-se em suas formas mais bárbaras, tão bárbaras que negam o conceito de moralidade, porque negam o conceito de humanidade. Desde Kant pelo menos, moral é o que é universalmente válido para todos os homens. Mas, se alguém começa a quebrar a humanidade, se alguém a divide em homens e sub-homens, é claro que a moralidade é destruída. Neste ponto, devemos insistir com particular força.
Também os escritores católicos mais sensíveis do século XX destacaram essa característica profundamente humanista do marxismo e do comunismo. De outro lado, os piores crimes de toda a história do mundo estão comprometidos com as teorias colonialistas e racistas.
Os crimes do nazismo não podem ser compreendidos a menos que não se considere que foram precedidos por uma teoria que dilacerou irremediavelmente a humanidade: havia homens, mas também sub-homens.
E então devemos admitir que há uma grave lacuna da cultura de esquerda e até mesmo marxista e comunista, uma vez que falta a consciência do caráter neocolonial das guerras que destruíram o Oriente Médio, destruíram a Iugoslávia, destruíram a Líbia e poderão destruir países como a China ou outros países.
A consciência do caráter neocolonial dessas guerras é pouco difundida, devemos nos comprometer a esclarecer isso. Ainda é um debate muito superficial o que se desenvolve sobre isso. Naturalmente, a ideologia dominante diz que são guerras humanitárias, guerras promovidas pelo Ocidente para evitar grandes massacres. O que, na verdade, produz realmente massacres que eles dizem que querem evitar. Um grande filósofo ocidental, genuinamente anticomunista, mas, por outro lado um filósofo digno de estima e respeito, Todorov, sobre a guerra contra a Líbia escreveu: “a guerra contra a Líbia ‒ que eclodiu em 2011 ‒ desencadeada sob o disfarce de salvar trezentos líbios, que segundo a acusação do Ocidente estavam prestes a ser assassinados por Gaddafi, causou 70 mil mortes.”
É por isso que eu aplaudo esta iniciativa em Ancona e convido todos a aprofundála, para difundir a exigência de pôr no centro das atenções o tema do colonialismo e do neocolonialismo nos dias atuais.
Naturalmente, a ideologia neocolonialista e racista não se apresenta sempre em forma aberta, isso mostra que elas sofreram uma derrota. Mas mesmo quando elas não se apresentam de uma forma aberta, estas ideologias são fatais, eles preparam tragédias em uma escala total. Por isto é necessário fazer não só conferências, mas também eventos públicos para lutar contra o colonialismo e o neocolonialismo, contra o racismo e o neoracismo, contra o imperialismo. E devemos dizer claramente que, enquanto a Itália continua fazendo parte da OTAN, ela pode sempre ser usada para guerras imperialistas e neocoloniais. A luta contra a OTAN continuará a ser parte integrante da luta anticolonialista e antiimperialista.
Não esqueçamos o monstro. Tenham em mente que por muito tempo o termo racismo não tinha conotações negativas. De fato, entre o final do século XIX e o começo do século XX, havia quem se gabasse de ser racista. E eu não falo apenas dos nazistas. O marxismo foi ridicularizado precisamente porque falava da humanidade. “Mas a humanidade não existe!”, disseram estes teóricos, “porque existem raças diferentes, que estão em um grau diferente de desenvolvimento da humanidade!”.
E devemos estar atentos para que essa barbárie não se manifeste novamente. É por isso que se trata de fazer uma campanha sistemática, que esclareça a barbárie de qualquer ideologia racista e também clarifique o vínculo que existe entre esta ideologia racista e o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo.
Tenham em mente que os campos de concentração, mesmo em países de tradição liberal, se estabeleceram precisamente a partir dos empreendimentos do colonialismo. Como podemos justificar o fato de que alguns povos devem ser condenados à escravidão? Não é fácil. Mas se é dito que esses povos não são povos, mas são cães, untermenschen, então se torna bastante fácil. Foi assim que ocorreu historicamente.
Acredito que devemos desenvolver uma luta, não de curta duração, através da qual se explique, se demonstre o caráter bárbaro de todas as ideologias e manifestações racistas. Devemos também formular programas, que exijam que a condenação do racismo seja inserida de maneira oficial e solene nos textos escolares italianos.
Um grande capítulo da história universal
A história do movimento comunista foi ao mesmo tempo um grande capítulo da história para abolir a escravidão colonial, para condenar a escravidão colonial em todas as suas formas, e foi também um grande capítulo da história para a afirmação de uma autêntica moral capaz de respeitar cada homem. Acredito que neste ponto devemos nos comprometer, retomar a luta, levando-a também no plano teórico. No início do século XX havia na Alemanha um autor super-reacionário, que então se torna um autor de referência do nazismo, Houston Chamberlain, nome Inglês, mas um alemão naturalizado, que zombava do movimento comunista, dizendo: “Só os marxistas continuam acreditando na humanidade, na unidade do gênero humano”. Ele não sabia que, expressando-se dessa maneira, fazia o maior elogio ao movimento que Marx iniciara.
E não podemos deixar de olhar com respeito e admiração para um autor como Marx, que empreendeu a luta contra a ideologia racista numa época em que parecia que o racismo era a única doutrina científica. Marx não tinha dúvidas quanto a empreender esta luta. E sem o ensinamento de Marx e da primeira Internacional dos Trabalhadores, fundada por Marx, não poderíamos entender os acontecimentos do século XX, não poderíamos entender a crise do capitalismo, a luta anticolonialista e anti-imperialista que caracterizou a história do século XX.
Se fosse possível, teríamos que obrigar as autoridades escolares e não só escolares a lembrar os ensinamentos de Marx, e isso para fazer entender que o ensino de Marx é parte integrante da educação cívica. Não pode haver educação cívica se não se denuncia até o fundo o colonialismo, o neocolonialismo, o racismo, o neoracismo.
A respeito disso, devemos desenvolver iniciativas em grande escala, procurando um encontro também com os católicos, é claro. E explicando a teoria de Marx e Engels como uma teoria que é profundamente humanista, como uma teoria que rejeita a exploração, a discriminação social, mas também a humilhação e o enxovalhar da dignidade de todo homem e toda mulher em todas as suas formas.
Podemos também olhar com admiração para a transformação do mundo que ocorreu desde Marx e Engels, Lenin, Gramsci… É claro, não é? Uma transformação que tem um grande significado moral, não apenas político. Se estabeleceu o conceito de unidade do gênero humano (Aplausos).
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No debate que se abre, duas questões são levantadas para o palestrante: 1. Sobre a relação entre o conceito de classe e aquele universal de humanidade 2. Sobre o marxismo ocidental.
Losurdo. Vamos partir da segunda questão, o tema do meu livro de críticas ao marxismo ocidental. Muitas vezes, após a Segunda Guerra Mundial, a categoria de “marxismo ocidental” foi usada, mesmo por autores de orientação marxista, de maneira narcísica: como se o marxismo tivesse seu verdadeiro significado apenas no Ocidente, enquanto no Oriente … Do meu ponto de vista é uma idiotice. Entretanto, o marxismo teve um desenvolvimento particular no Oriente. Se pensarmos na revolução anticolonial, é claro que as grandes revoluções anticoloniais tiveram como alvo o Ocidente, que explorou o Oriente.
Lição de Gramsci
Vamos tomar um autor como Gramsci, que foi um dos grandes teóricos do marxismo, não apenas na Itália, não apenas no Ocidente, mas em escala global. Uma característica essencial do pensamento de Gramsci é a crítica que ele faz ao antiuniversalismo do Ocidente, que tende a identificar a universalidade consigo mesmo. Então, se quisermos seguir Gramsci, [se pode dizer que] o marxismo ocidental, ou o chamado marxismo ocidental, tem sido incapaz de pensar a universalidade da humanidade. Tanto é assim que Gramsci chega a dizer que o marxismo é sinônimo de universalismo e esse universalismo é ao mesmo tempo humanismo integral.
E esse pensamento caracteriza Gramsci ao longo de sua evolução. Mesmo durante a Primeira Guerra Mundial, diz Gramsci, depois de Caporetto (batalha de Caporetto, ocorrida em 1017 envolvendo o exército italiano e o austro-húngaro), quando o desastre também investe o Ocidente propriamente dito: está aí, agora se dá atenção ao sofrimento do povo italiano ou de outros países, mas na realidade os mesmos sofrimentos já começaram antes. Desafortunado o marxismo que se torna provinciano, chauvinista, como se o povo italiano tivesse sido o único a sofrer em grande escala.
O grande mérito do marxismo foi também o de ter descoberto e afirmado a perspectiva da história universal; e esta inspiração universalista em Gramsci está sempre presente. Gramsci começou a afirmar a centralidade da questão colonial antes mesmo da Revolução de Outubro, antes mesmo de se identificar com o movimento resultante da Revolução de Outubro. Ou seja, muito rapidamente. O que seria de nós se perdêssemos de vista a grandeza moral de Gramsci que, a partir da guerra, sublinhou a mutilação da universalidade humana que ocorre com o capitalismo, com o colonialismo, com o imperialismo; universalidade que é retomada e atualizada pelo marxismo, pelo comunismo, pela Revolução de Outubro.
Classe e universalismo
Em relação à classe. Não devemos nos deixar enganar por certos trocadilhos. Se nós hoje, por exemplo, insistimos no fato de que a condição feminina tem sua própria peculiaridade, no sentido de que as mulheres, além da exploração que caracteriza a sociedade capitalista burguesa como um todo, também são forçadas a sofrer opressão de gênero, não é por isso que nós devemos renegar o universalismo. Não. Digamos que é preciso entender as diferentes configurações da opressão, de classe, de gênero, dos povos. Compreender também as diferentes configurações de opressão feminina. Nosso universalismo não pode ser aquele que, exaltando a universalidade, depois esquece as formas concretas que a opressão e a humilhação da universalidade podem assumir. O movimento feminista, cuja importância e relevância devemos sublinhar, não pode ser entendido sem a contribuição do marxismo e do comunismo.
E Marx insistiu muito na essencialidade da questão feminina. A encontramos também em Gramsci, em Lenin e assim por diante. Portanto, a objeção burguesa é um tanto ridícula, já que insistimos na centralidade da questão colonial. Em Marx, há um texto curto e belo que diz que a barbárie intrínseca que no Ocidente se manifesta em formas mais ou menos atenuadas, nas colônias se manifesta com toda a sua barbárie e brutalidade. Esta não é uma contestação do universalismo, pelo contrário. Esta é a necessidade, muito profunda em Marx, de ter em mente que o universalismo não é uma frase retórica, não pode ser reduzido a uma frase retórica. Não podemos tolerar que o universalismo seja reduzido a uma frase retórica.
Apesar da homenagem formal ao universalismo, há setores importantes do mundo humano que são oprimidos e humilhados, e isso é absolutamente intolerável. Não só não há contradição, mas há profunda unidade. Universalismo e sublinhar a barbárie da questão colonial: não há contradição, mas há unidade. Por isso, o conceito de classe é tão importante.
O que eles dizem? “Mas por que falar de classe? Os homens são iguais”. Certamente, no que diz respeito à dignidade, os homens são iguais, mas se trata de ver se esta universalidade e igualdade está aplicada na sociedade burguesa. E devemos dizer que não, porque basta uma análise concreta da situação concreta. Mas quando dizemos que a universalidade na sociedade burguesa é espezinhada, não pretendemos celebrar a particularidade, mas a universalidade em sua concretude.
É um dado conhecido que [foram] os grandes movimentos que promoveram o respeito à universalidade: o movimento anticolonialista, o movimento feminista, as lutas dos trabalhadores. Todos esses grandes movimentos, que colocaram o problema da universalidade em sua concretude, tiveram um ponto de apoio no marxismo e no comunismo. Eles foram muitas vezes inspirados pela lição de Marx. E este não é um capítulo da história concluído, é um capítulo que ainda nos diz respeito diretamente. É belo que Marx fale, naturalmente em sentido crítico, da escravidão doméstica das mulheres, [já que] essa é uma das vergonhas da sociedade burguesa, e devemos continuamente lembrar essa vergonha, não tolerá-la, mas ser capaz de derrubá-la completamente. (Vivos aplausos).
¹ – Federico Losurdo, professor da Universidade de Urbino, na Itália.
² – Marcos Aurélio da Silva, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina.
³ – Ruggero Giacomini, presidente do centro cultural “La Città Futura”.