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A morte e a morte de Bernie Sanders

Sanders, apesar de todas as apunhaladas, parece ter uma pulsão pelo fracasso e cumpre a função de arregimentar suas forças para apoiar o Partido Democrata.
por Érico Bomfim | Revista Opera
(Foto: Shelly Prevost)

A morte é uma das mais ricas metáforas literárias, que enseja os mais variados sentidos e nuances. Na História e na luta política não é muito diferente. Alguns personagens históricos provam-se capazes de vencer a morte. Talvez o maior exemplo seja Fidel Castro, que teve sua primeira morte publicada em 1956. Naquela ocasião, Fidel lutava contra a ditadura de Fulgêncio Batista, e sua morte foi comemorada pelas forças reacionárias como uma derrota crucial da guerrilha. Como se sabe, a comemoração foi precipitada, e o Movimento 26 de Julho tomou o poder nos primeiros dias de 1959, fazendo o ano novo mais feliz da história cubana.

Fidel também teve outras mortes planejadas. Charutos explosivos, roupas de mergulho com toxinas absorvíveis pela pele, amantes treinadas por agentes secretos: nada era fantasioso demais para a CIA. Em alguns desses casos, Fidel escapou por um triz, em verdadeiros caprichos do destino. Esse é o caso de um milk-shake envenenado, ao qual Fidel escapou graças ao fato de que a pílula de veneno havia congelado dentro do freezer do barman recrutado pela inteligência americana. É difícil não ver uma esfera mística à volta de Fidel. Seu colete era moral, como disse certa vez a um jornalista que ficou surpreso ao vê-lo chegar aos Estados Unidos sem usar um colete à prova de balas.

Mas, se alguns personagens vencem a morte, outros morrem mais de uma vez, à semelhança de Quincas Berro d’Água, célebre personagem de Jorge Amado. Esse é o caso de Bernie Sanders. Ao contrário de Fidel Castro, Sanders encarna uma esquerda que aceita e abraça a morte, que cultua o próprio sacrifício. Embora não se diga cristã, essa esquerda tem na própria crucificação a satisfação última de seu destino; ela goza na autoimolação, realiza-se na própria impotência e persegue a própria derrota como a sua realização máxima. Ela idolatra Che Guevara, mas envergonha-se de Fidel Castro. Ama Salvador Allende, mas constrange-se com Nicolás Maduro. O problema não é apenas a violência: Che também fez uso dela. O que é inaceitável mesmo é vencer, é ser capaz de impor-se sobre o adversário, é conquistar a vitória e transformar a história da humanidade. No fundo, é uma esquerda essencialmente conservadora, porque guarda em si essa pulsão insuperável do fracasso.

Essa esquerda tem em Sanders um grande expoente. Tome-se como exemplo um quadro da importância de Marcelo Freixo, que, diante da saída de Sanders das primárias, declarou: “O Bernie Sanders fez uma campanha inspiradora, mostrando que enfrentar privilégios é defender a vida. Essa é a essência da sua luta por um sistema de saúde gratuito que não distingua cidadãos de primeira e segunda categoria. Obrigado, Bernie! Novas batalhas virão”. Mesmo que a notícia daquele dia (8 de abril) tenha sido a derrota de Sanders (que decidiu abandonar a campanha), a nota de Freixo não aponta para qualquer possibilidade de crítica sobre essa mesma derrota. Exemplo máximo para a esquerda ilustrada e derrotada de nossa América Latina, Sanders satisfaz ao ego militante sem oferecer às classes dominantes qualquer ameaça verdadeira. Depois de arrebanhar e acumular o desejo social por mudança, termina sempre por afundar-se impotente no seu mar de sonhos. Se Fidel venceu a morte, Sanders a abraçou das mais variadas formas: foi morto, depois suicidou-se; ainda por cima, apoiou seus assassinos e, por fim, conduziu todo o movimento que liderava ao precipício. Essas são a morte e a morte de Bernie Sanders.

Em sua primeira morte na campanha de 2020 (numa trágica repetição, aliás, de 2016), Sanders foi assassinado a múltiplas punhaladas pelas costas, desferidas pelo establishment do Partido Democrata. A primeira dessas punhaladas lhe foi dada pelo identitarismo sequestrado pelo establishment. Aqui, Elizabeth Warren – figura que atraiu uma fração significativa do feminismo americano – foi personagem central. Ainda nos idos de janeiro, Elizabeth Warren alegou (sem quaisquer provas) que Sanders lhe teria dito privadamente que uma mulher jamais poderia vencer Donald Trump, o que provocou fuzuê na mídia democrata e em certos círculos feministas. Detalhe: há ao menos um vídeo público de Sanders ainda na década de 1980 exprimindo ideia bem oposta: que uma mulher poderia, sim, ser presidente dos EUA. A ironia é que, quando Sanders deu essa declaração, Elizabeth Warren era ainda membro do Partido Republicano (esse conhecido partido progressista e aliado histórico da causa das mulheres!)

Já ferido e com o primeiro punhal cravado nas costas, Sanders recebe uma segunda punhalada, essa na convenção de Iowa. O cáucus (convenção) é uma espécie de gincana eleitoral folclórica das primárias americanas. Grosso modo, os eleitores de uma determinada vizinhança se reúnem num local fechado (como um ginásio) e se aglomeram de acordo com sua preferência de voto. Então o presidente da sessão conta as cabeças em cada grupo. Acredite ou não, o Partido Democrata foi capaz de inventar um aplicativo para ajudar na apuração da convenção. Uma pergunta pertinente é: por que seria necessário um aplicativo para contar as cabeças ajuntadas em pontos de um salão? Numa inspiração verdadeiramente orwelliana, o aplicativo foi batizado de Shadow (“Sombra”!) – nome para lá de sugestivo, há de se convir.

A convenção foi um verdadeiro vexame. A apuração estendeu-se sem fim, enquanto o partido parecia bater cabeça para compreender o que houvera de errado. Para a grande imprensa ocidental, o vexame da convenção de Iowa consistia apenas numa desorganização e caos generalizado, consequência dos “problemas técnicos” do tal aplicativo. É como se o cáucus fosse um grande filme de Sessão da Tarde, no qual um “partido do barulho apronta muitas confusões”.

Há que se conceder: o aplicativo em questão apresentava de fato diversos “problemas técnicos”, é verdade. O primeiro “problema técnico” é o fato de o aplicativo ter sido fundado por ex-agentes da campanha da Hillary Clinton de 2016, principal campanha do establishment democrata na ocasião. O segundo “problema técnico” foi que a Shadow já havia sido contratada para prestar serviço à campanha de Pete Buttigieg, um quase desconhecido que acabou por ficar em primeiro lugar na convenção, praticamente empatado com Sanders. O terceiro “problema técnico” foi que a fundadora e CEO da empresa Acronym – que originou a Shadow – era casada com um dos líderes de campanha de Buttigieg. E a Acronym, por sua vez, recebe cifras milionárias de grandes doadores do Partido Democrata.

Como se vê, o aplicativo Shadow parece ter mesmo sérios “problemas técnicos”. Para o jornalista Max Blumenthal, o desastre de Iowa foi causado por bilionários anti-Bernie e a elite do Partido Democrata. Convém lembrar ainda que Buttigieg foi publicamente apoiado por agentes de alto escalão da CIA e parece ter relações estreitas com essa agência governamental, o que poderia facilmente levantar algumas suspeitas sobre sua repentina ascensão. Mas, na grande imprensa, tudo que se falava era o fato de ele ser gay, ilustrado, formado em Harvard, pianista e poliglota. Destacando Warren como a mulher e Buttigieg como o homossexual nas primárias, o identitarismo cumpria seu papel de sabotar o programa progressista, representado por Sanders.

Às vésperas da Super Terça (evento mais importante das primárias, quando diversos estados votam no mesmo dia), Pete Buttigieg e Amy Klobuchar (outra candidata, porém menos expressiva) retiram suas campanhas e apoiam Joe Biden, que passa a unificar o establishment democrata. Se no início das primárias Biden era uma múmia adormecida, na Super Terça ele é atingido por um raio – e acorda como Frankenstein. A partir daí, Biden tem a liderança consolidada da corrida. Em seguida, é Warren quem desiste. Embora fosse vista como uma progressista – e por isso mais próxima de Sanders –, Warren omite-se aqui, optando por não apoiar ninguém.

Houve ainda outra forte punhalada, essa não apenas sobre Sanders, mas sobre a própria “democracia” americana: a supressão de eleitores. Aqui, alguns estados inviabilizam o processo eleitoral através do fechamento de locais de votação. A consequência são horas intermináveis de espera em filas de eleitores sem fim. Esse tipo de mecanismo interfere especialmente no direito ao voto da classe trabalhadora, que tem seus horários especialmente restritos e limitados. Esse foi o caso do Texas, um estado então dividido entre Sanders e Biden e responsável por uma grande quantidade de delegados, mas que acabou por dar a vitória a Biden. Latinos, entre os quais Sanders gozava de amplo apoio, foram especialmente prejudicados por um prolongado processo de fechamento dos locais de votação, que começou ainda em 2012.

Mais incômodas são as discrepâncias entre as pesquisas de boca-de-urna (exit polls) e os resultados finais. Isso se deu em vários estados. Começando por New Hampshire onde, antes da ascensão de Biden, Buttigieg ganhou 2,6% entre boca-de-urna e apuração oficial, enquanto Sanders perdeu 0,3%. Por consequência disso, Buttigieg e Sanders ficaram tão próximos que receberam o mesmo número de delegados. No Texas, um estado de máxima importância, Biden e Sanders estavam empatados na boca-de-urna, mas, na apuração, Sanders perde 4 pontos percentuais, enquanto Biden ganha 0,4%. Em Vermont a divergência é notável: Sanders, que ainda garante com facilidade a vitória, cai 6,3% (de 57% para 50,7%); já Biden sobe 4,5% (de 17% para 22%). Em Massachusetts, uma eventual fraude dos resultados pode sido determinante. Aqui, Sanders cai de 30,4% para 26,6%, enquanto Biden sobe de 28,9% para 33,5%. Há ainda muitos outros casos, inclusive nas primárias de 2016.

Um detalhe adicional é especialmente insólito. Como explica o pesquisador Theodore de Macedo Soares em cada uma dessas análises, os dados das pesquisas boca-de-urna CNN usados costumam não ser os dados finais da pesquisa. Isso porque, depois de feita a apuração oficial, a CNN ajusta a pesquisa boca-de-urna para remover discrepâncias com a apuração. Sem dúvida, um elemento da mais autêntica ficção orwelliana. Mas não se deve falar jamais em fraude: é consenso absoluto que isso é coisa da Bolívia e da Venezuela. Aliás, se houver fraude nas eleições americanas, quem poderá invadir os Estados Unidos, bombardeá-los, remover seu presidente, derrubar seu regime ou aplicar-lhe sanções econômicas que condenem o povo americano à fome e à miséria?

A essa altura, já se pode cogitar uma questão: onde ficam as instituições nisso tudo? Poderia o Partido Democrata fraudar suas primárias livremente, se for esse o caso, sem qualquer interferência ou qualquer problema jurídico? Na realidade, sim, porque o Judiciário americano lhe garantiu esse direito. Em 2016, apoiadores de Sanders processaram o DNC (Comitê Nacional Democrata) pela fraude das primárias daquele ano. Em 2017, a corte decidiu que o Partido Democrata tem, sim, o direito de fraudar suas eleições internas. Em outras palavras, aquela corte não teria o poder de interferir no processo. A ideia é que, sendo o partido uma associação privada, o seu funcionamento interno não se sujeita à legislação e à interferência jurídica. Ou seja, a lisura do processo das primárias não é sequer um requisito necessário do ponto de vista jurídico e legal.

Depois de tantas e tão profundas apunhaladas, com certeza iria Sanders se defender, reagir, denunciar, gritar? Jamais! Apunhalar Sanders foi como ferir a um defunto, cujo corpo jamais demonstra ferimentos de autodefesa. Só não se pode dizer que fosse um defunto de fato porque defunto não se mata, e Sanders ainda por cima matou-se. Como se não bastassem as punhaladas, como se não bastasse a união do establishment em torno de Biden, Sanders ainda fez uma verdadeira campanha para o oponente, como parte de sua própria campanha. Dizia seguidas vezes que Biden era “um cara decente”, “seu amigo” e “capaz de vencer Trump” – precisa mais alguma coisa? E Sanders ainda dizia isso tudo com quatro punhais cravados na espinha. Haja fôlego!

Mas Biden é o exato oposto da descrição de Sanders. Longe de ser decente, é um mentiroso compulsivo. Há inúmeras mentiras, discursos políticos simplesmente plagiados de outros líderes, aventuras que não aconteceram e todo tipo de invencionice, que poderiam tomar um livro inteiro. Muitas dessas travessuras estão documentadas em vídeo de maneira tão pública quanto constrangedora. Particularmente digna de nota foi a aventura de Biden contra o Apartheid na África do Sul, uma história digna de Forrest Gump. Aqui, Biden afirmou que foi preso pelo regime do Apartheid ao tentar visitar Nelson Mandela. Mandela, ainda por cima, lhe teria visitado nos Estados Unidos, em gratidão. Salvo pela ida à África do Sul, trata-se de uma completa invenção, que o próprio autor foi forçado a desmentir publicamente. Talvez mais importante que tudo isso é mentira da Guerra do Iraque. Tendo sido um dos maiores protagonistas do congresso americano em favor Guerra do Iraque, Biden hoje diz que deixou de defender a guerra logo depois de seu início. Outra mentira, desmentida por discursos públicos do próprio Biden apoiando a guerra bem depois de sua deflagração.

Fora a mentira, há ainda a dúvida quanto à acuidade mental de Biden, que é alvo do deboche constante do comediante Jimmy Dore.

Além de mentiroso compulsivo e possivelmente senil, Joe Biden apresenta uma série de comportamentos inapropriados (para usar um eufemismo), que lhe renderam o apelido de “Creepy Joe”. Denúncias de assédio e mesmo estupro se empilham em torno dele. Numa das mais recentes, uma ex-assessora acusou Biden de tê-la penetrado forçadamente com um dedo.  É possível também ver vídeos  de eventos públicos em que Biden se aproxima de mulheres pelas costas e, sem qualquer consentimento, massageia seus ombros, cheira seu cabelo, tece “elogios” à sua aparência, faz piadas de gosto duvidoso e causa absoluto desconforto. Mais alarmante é quando se trata de crianças, em relação às quais o comportamento de Biden é absolutamente idêntico. Surpreende que Elizabeth Warren, tão ligada ao feminismo, se omita em relação a Biden e tenha direcionado sua artilharia a Sanders.

Sanders, a seu turno, defende que Biden seja o antídoto a Trump, esse conhecido misógino, racista e mentiroso compulsivo. Logo Biden, ele mesmo um mentiroso compulsivo, de comportamento moral duvidoso, representante do establishment e lobista da guerra. Esse é o “cara decente” para quem Sanders pede voto; e é com ele que quer enfrentar Trump.

É assim que Sanders, depois de ser assassinado por sucessivas punhaladas, comete ainda seu suicídio. No lugar de reagir e se defender – um instinto natural de quem está a ser atacado –, pede voto para os seus próprios assassinos e assassinos de seu movimento. Cumpre, desse modo, seu papel maior dentro do Partido Democrata: reunir todas as forças e energias de mudança dentro do país, arregimentá-las como um rebanho e conduzir o gado ao abatedouro. Encontra seu destino inexorável e satisfaz à sua pulsão eterna do fracasso. É lamentável que seja tão festejado em nossa América Latina, que conta com personagens verdadeiramente transformadores e tão mais dignos de admiração.

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