No muito comentado documento “Cenários de Defesa 2040”, preparado pela Escola Superior de Guerra e divulgado e divulgado há alguns meses, são delineados quatro cenários estratégicos hipotéticos para o Brasil. Em três deles, na aba “ambiente nacional”, há especulações que, nos dias de hoje, ressoarão bastante interessantes. A primeira, no cenário “Alinhamento com os EUA, com restrição orçamentária”, diz o seguinte: “Em 2037, um evento que despertou grande apreensão no âmbito das autoridades militares brasileiras foi o que ficou conhecido como ‘A carta anônima’. Essa situação teve início com o recebimento, no Gabinete do Ministro da Defesa, de uma correspondência que continha uma substância não identificada. Com o passar do tempo, verificou-se o acometimento, em diversos membros do Gabinete, de sintomas sugestivos de contaminação por Antrax. Tais sintomas foram confirmados como sendo causados pelo agente suspeito. Essa situação adquiriu dimensão alarmante no âmbito da Defesa, após divulgação de vídeo clandestino, ameaçando enviar uma quantidade maciça desse bacilo a diversos órgãos do governo. Em face desse acontecimento, o governo federal estruturou um gabinete de crise sob a coordenação do Ministério da Defesa […] após o controle imediato dos danos do problema, foi criado, pelo Poder Executivo, Grupo de Trabalho Interministerial com o fim de propor medidas de prevenção e proteção contra eventos dessa natureza.”
A segunda, no cenário “Relacionamento global, com recursos orçamentários”, ocorre em 2039: “O posicionamento do governo brasileiro em relação a disputas comerciais com países do Sudeste Asiático despertou fortes reações em grupos ultranacionalistas em países daquela região. Em setembro desse ano, o braço terrorista de um desses grupos planejou e executou a liberação de agentes seletos durante o Rock in Rio. Esse fato foi o estopim de uma epidemia provocada pelo coronavírus causador da SARS-CoV. Tal situação demandou a ativação de diversas medidas e providências em biodefesa por parte do Ministério da Defesa para mitigar os efeitos danosos na tropa do Rio de Janeiro. Após o evento, o MD criou o Plano de Contingência para Agentes Seletos, que serviu de modelo para a criação de um programa nacional voltado para esse tipo de crise.”
Por fim, a terceira, no cenário “Relacionamento global, com restrição orçamentária”, nos diz que “as preocupações atuais relacionadas à saúde estão diretamente vinculadas à pandemia causada pelo vírus da influenza que atingiu o Brasil em 2038 e causou dezenas de milhares de morte (sic). A falta de recursos financeiros para a implantação de um laboratório de biossegurança nível 4 atrasou a resposta do país no enfrentamento à crise. Por outro lado, a rápida reação do agronegócio brasileiro, quando da identificação do vírus da aftosa que atacou os rebanhos bovinos na fronteira do Mato Grosso do Sul com a Bolívia, em 2032, foi creditada ao imediato diagnóstico do laboratório de máxima contenção biológica, nível NbAg+, de Pedro Leopoldo-MG.”
Nenhum desses cenários, um tanto acessórios, imprevisíveis e dignos das ficções mais descabidas, ocorreu nos anos 2030. Mas, alguns meses após a divulgação deste relatório, o Brasil vive, de fato, uma pandemia. Não de SARS-CoV ou Influenza, mas de Covid-19. Não pela ação de um grupo terrorista, mas, em grande parte, pelo desprezo presidencial. Não houve “Carta anônima” alguma nem Antrax, mas diversos membros do gabinete vão adoecendo, e um gabinete de crise realmente foi criado; não sob coordenação do Ministério da Defesa, mas, ainda assim, sob mando militar. Já chegamos às “dezenas de milhares de mortes”, mas o atraso na resposta não é decorrente de falta de recursos para a implantação de um laboratório, e sim pela deliberada confusão e sabotagem que o atual Presidente da República espalha. Para as projeções, os militares tiveram de recorrer a fantasiosas cartas e grupos terroristas, para se confrontar com uma realidade em que a maior ameaça ao povo brasileiro parte do mais alto cargo da Nação. As mais quiméricas projeções militares, hoje, parecem corriqueiras. É sintomático.
Um outro documento, que talvez devamos rememorar por muitas vezes no futuro, foi publicado na última quarta-feira pelo vice-presidente Hamilton Mourão. No artigo “Limites e responsabilidades”, que assina para o Estadão, o vice-presidente adorna sua aura intelectual com citações de “O Federalista”, coletânea de artigos doutrinários que tinham como intuito ratificar a Constituição dos Estados Unidos no sentido de um Estado central mais poderoso, enquanto faz críticas a instituições que, na sua concepção, estariam agindo para além dos “limites e responsabilidades” – não se sabe se da Constituição dos EUA; citada, da brasileira; ignorada, ou da do general; imaginada. Muitos analistas viram ali, nas palavras do general-vice-presidente, sintomas de autoritarismo e defesas ao atual presidente. Estão corretos. Mas a maior parte deles perdeu, talvez, o que seja o fundamental: suas projeções.
Elas estão logo na primeira estrofe de seu manifesto. Diz ele: “A esta altura está claro que a pandemia de covid-19 não é só uma questão de saúde: por seu alcance, sempre foi social; pelos seus efeitos, já se tornou econômica; e por suas consequências pode vir a ser de segurança. A crise que ela causou nunca foi, nem poderia ser, questão afeta exclusivamente a um ministério, a um Poder, a um nível de administração ou a uma classe profissional. É política na medida em que afeta toda a sociedade e esta, enquanto politicamente organizada, só pode enfrentá-la pela ação do Estado.”
Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, duas tendências de reação se esboçaram imediatamente. Por um lado, Bolsonaro tratou a doença como uma “gripezinha”, primeiro desprezando totalmente a existência de uma pandemia e depois insistindo em um imaginado “isolamento vertical” (que na prática nada isolaria, de ninguém) enquanto se apresentava como um “defensor da economia”. Por outro, governadores, prefeitos e parlamentares alertavam para os perigos da doença, e se apresentavam como defensores de vidas, a favor do isolamento. É claro: nenhum dos dois é o que diz ser. Não há “defesa da economia” quando, para defendê-la, se projetam centenas de milhares de mortos. Há, no máximo, defesa de lucros pessoais, que todavia não passarão incólumes em meio a uma crise dessa envergadura. Também não há, naturalmente, “defesa da vida” quando call centers são considerados serviços essenciais, a fila emergencial para os hospitais é dividida entre “público” e “privado”, nem quando a alternativa a se arriscar lá fora, para o trabalhador, são escassos 600 reais cá dentro, quando muito.
A diferença dessas posturas, ainda que na essência tímidas, são grandes nas aparências. E essa diferença subjetiva, a depender do cenário, toma contornos objetivos. Bolsonaro fazia seu movimento tentando trazer para si pobres informais, pequeno-burguesia e setores da burguesia. Nisso teve algum sucesso, e mobilizou alguma base de desesperados – uns por pagar contas, outros por cobrá-las -, cujo mote comum era ignorar a pandemia. O segundo grupo, de governadores, parlamentares e prefeitos, ainda que no geral pouco tenha feito para garantir que seus cidadãos de fato permanecessem seguros – e é certo que o Governo Federal nisso também nada ajudou – se rodearam no entanto de um discurso que, em pouco tempo, lhes daria razão.
A primeira postura contava com um apoio imediato, de curto prazo. A segunda, com um apoio futuro, de médio e longo prazo. A primeira jogava preferencialmente com os setores médios e pobres. Desde o começo era óbvio, para os donos do dinheiro, que a pandemia teria efeitos destrutivos nas economias de todos os cantos do mundo. Aliás, já vivíamos em um cenário de recessão.
E chegamos à questão essencial: a segurança. Não a nossa, a de quem anda nas ruas, a segurança física de humanos, mas a segurança dos negócios. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), da ONU, já projeta que, na América Latina, a pandemia deixará 215 milhões de novos pobres, além de 83 milhões em situação de extrema-pobreza. Soma-se a essas projeções o fato de que já vivemos empilhando, oficialmente, 800 cadáveres por dia – números que tendem a crescer. A quem os bolsos ambulantes recorrerão quando, ao final da crise, desejarem manter suas taxas de lucro, aprovando por meio de seu Congresso as mais brutas medidas contra o povo brasileiro, que, pela doença, já estará absolutamente descalabrado? Como esse povo poderá responder, tendo perdido, mais do que direitos, a vida de familiares?
Para os militares, que já ganham poder a cada desatino do presidente, que já ocupam a Casa Civil, a Secretaria de Governo, o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Saúde, a Vice-Presidência, a Secretaria-Geral da Presidência da República, o Ministério da Defesa e mais três mil cargos em esfera federal, custa muito pouco consentir agora às loucuras de Bolsonaro. Afinal, se suas projeções estiverem corretas, Bolsonaro em pouco tempo nada mais será do que um detalhe, uma mancha, uma vírgula de anormalidade em um oceano de anormalidade, enquanto eles serão a exclamação de ordem em um cenário excepcional e caótico. Se tiverem de abrir mão de sua marionete, que à medida que se arruina prende a si novos fios, eventualmente o farão. Se tiverem de defendê-la, assim também será feito. Quem poderá impor limites e responsabilidades ao Partido Fardado? Ninguém. A quem poderá ele? A todos. Se há desequilíbrios na federação, e, aliás, na República, eles começam pelo pelotão de coturnos que se aquartelou no governo.