O fascismo ucraniano, cuja existência hoje é difícil de negar até para os apoiadores de Kiev mais ardentes, não emergiu em 2014. O fascismo ucraniano não apareceu subitamente. O seu desenvolvimento, primeiramente lerdo e depois de forma mais rápida, pode ser traçado nos anos 80 e 90, chegando ao seu ápice durante a chamada “revolução da dignidade” no último inverno.
Essa fascistização gradual da sociedade ucraniana, que teve seu auge, naturalmente, numa época de crise econômica, tem sido há muito tempo matéria de análise da esquerda ucraniana. Em 2012, dois anos antes do Maidan, nossa organização, o Borotba, publicou um documento entitulado “A oligarquia ucraniana prepara um golpe fascista”. A análise previa os eventos do último inverno com uma precisão excepcional.
Aqui estão algumas citações do documento:
“Com a cobertura das agências de segurança, e com financiamento de grupos oligárquicos, milícias nacionalistas se formarão, o que irá constituir o poder para um golpe fascista no futuro. Essas unidades levarão a cabo ataques contra forças de esquerda e anti-nacionalistas e suas sedes, e farão ataques terroristas contra políticos e ativistas sociais.”
“Como o poder dos nacionalistas ucranianos etnocráticos irá inevitavelmente levar ao crescimento de movimentos separatistas no sudeste do país, bem como nos Cárpatos, o estabelecimento de uma ditadura de tipo fascista será apoiada por players internacionais que estão interessados na desintegração da Ucrânia e na destruição do estado ucraniano.”
” Organizações políticas de esquerda e organizações sociais que se oponham ao nacionalismo, ao chauvinismo e à xenofobia serão banidas. Processos penais serão abertos contra seus líderes. Paralelamente à perseguição legal, os nacionalistas radicais farão ataques contra movimentos de esquerda e progressistas, além de minorias étnicas e linguísticas.”
Caros leitores, vocês podem pensar que isso foi escrito depois do golpe de 2014. Mas não, isso foi escrito dois anos antes, quando o governo do Presidente Yanukovich parecia inabalável, e nossa previsão foi motivo de chacota entre figuras políticas tradicionais. No entanto, não só em 2012 mas mesmo antes, a análise marxista nos permitiu prever as tristes ameaças associadas à ascenção da extrema direita e à possibilidade de grandes negócios apostando neles em um tempo de crise.
Quais fatores colaboraram com a fascistização da sociedade ucraniana?
1. Anticomunismo de estado e nacionalismo. O Estado burguês ucraniano se levantou das ruínas da União Soviética. Sua arquiteta foi a seção da burocracia soviética ucraniana que buscou participar da privatização da propriedade pública. Essa parte da burocracia procurou colocar a propriedade pública no território da República Socialista Soviética da Ucrânia sem o controle do aparato central da URSS. Por consequência, a união dos antigos burocratas soviéticos, em união às forças nacionalistas, se transformou na base para a formação da nova classe dominante da Ucrânia “independente”.
Há de se notar também que o nacionalismo constituiu a principal política educacional pública a partir de 1991, e mudanças periódicas de presidentes e governos, alguns dos quais foram considerados “pró-Rússia”, fizeram pouca diferença. Toda a história do povo ucraniano foi ensinada nas escolas como a luta por um estado independente, e o estado que foi criado em 1991 era descrito como a implementação de um velho sonho dos ucranianos. Paralelo a isso, o mesmo sistema educacional foi crivado com anti-comunismo e tentou pintar a União Soviética como um “império” que oprimia ucranianos e que queria destruir a nação ucraniana.
Diversas gerações de jovens ucranianos cresceram nesse contexto de propaganda anticomunista e nacionalista, e muitos deles formaram a base humana para as organizações fascistas.
2. A falha da “vingança comunista” em 1999. O candidato presidencial do Partido Comunista da Ucrânia, Petro Symonenko, poderia ter ganhado as eleições de 1999 contra o Presidente Leonid Kuchma, de inclinação de direita. No entanto, o Partido Comunista falhou em unir outros esquerdistas no apoio a um candidato único, e depois não ousou se opor ao resultado eleitoral injusto e fraudado. Essa indecisão no topo do Partido Comunista levou ao desencanto com a habilidade da esquerda no que se refere a tomar o poder e retornar o país ao caminho do desenvolvimento socialista. Depois de 1999, o Partido Comunista perdeu apoio de eleição a eleição. Depois do Presidente Yanukovich chegar ao poder em 2010, o Partido Comunista se tornou parte da coalizão dirigente, abandonando a função crítica em relação às polícias socioeconômicas das autoridades em relação às forças de ultradireita.
3. O apoio a forças nacionalistas e neo-fascistas durante o regime de Yanukovich. Yanukovich e seu Partido das Regiões dependeu dos votos das regiões industriais e russófonas do leste e sul do país, falhando em conseguir um crescimento com forças políticas alternativas, especialmente com a esquerda. Em resposta, os estrategistas políticos do regime buscaram fragmentar o campo político no oeste e centro do país, apoiando as forças nacionalistas com dinheiro e mídia.
4. A união de neoliberais pró-Ocidente e nazistas contra o Presidente Yanukovich se tornou o núcleo do Euromaidan. Nossa organização escreveu no inverno de 2014: “O incontestável sucesso dos nacionalistas é que eles, por conta de seu grande nível de atividade, conseguiram impor sua liderança ideológica no Euromaidan. Isso é evidenciado pelos slogans que se tornaram uma espécie de ‘passe’ para os ativistas nas grandes manifestações na Praça da Independência. O primeiro é ‘Glória para a Ucrânia – Glória aos heróis!’, que, somado à saudação da mão direita levantada com a palma aberta, se tornou a saudação da Organização dos Ucranianos Nacionalistas em 1941. Outras saudações incluem ‘Glória à nação – Morte ao inimigo!’, ‘Ucrânia acima de todos’ (relacionando-se à famigerada saudação alemã ‘Deutchland uber alles’), e ‘Quem não pula é moscovita’. Os outros partidos de oposição não tiveram uma linha ideológica ou slogans tão claros, fazendo com que a oposição liberal adotasse os slogans e planos nacionalistas.”
Assim ocorreu a aliança de neoliberais e nazistas. Enquanto os neoliberais adotaram o programa político dos fascistas ucranianos, os nazistas concordaram em levar a cabo a linha neoliberal na economia. Essa aliança foi “santificada” pelos representantes do imperialismo ocidental, como Catherine Ashton, Victor Nuland e John McCain.
5. O apoio do grande capital ucraniano ao Euromaidan, incluindo o lado nazista. Os maios proprietários e oligarcas foram clientes, patrocinadores e os principais beneficiários do Euromaidan. O fato de que os oligarcas-capitalistas, tal como Igor Kolomoisky, Petro Poroshenko, Dmitry Firtash, Sergei Taruta e, em meno grau, Rinat Akhmetov, alocaram recursos para o Euromaidan, e varreu o movimento para a mídia que controlam. Quando o Euromaidan triunfou, aqueles que antes governaram o país indiretamente, por meio da administração de Yanukovich, receberam controle direto, incluindo como governadores de áreas importantes, e o oligarca Petro Poroshenko se tornou Presidente.
Portanto, a chegada de forças abertamente fascistas ao poder, bem como a transição de direitistas “comuns” (como Poroshenko e Yatsenyuk) a posições fascistas era previsível e em certo grau natural no desenvolvimento global da crise econômica.
Enquanto as forças fascistas estavam preparadas para o desenvolvimento da crise ucraniana, nossas forças de resistência não estavam. Depois da tomada de poder pelo golpe de direita em fevereiro de 2014, um movimento de protesto semi-casual começou a emergir, principalmente no sudeste do país. Primeiramente, os slogans eram muito modestos, exigindo somente um pequeno nível de autonomia do governo central de Kiev, que obteve mais e mais um caráter fascista. Assim que o regime consolidou seu poder, Kiev aumentou a pressão no sudeste com a ajuda de ataques paramilitares de grupos neonazistas, o que levou à radicalização da resistência. No final, isso resultou em uma revolta de sucesso em Donetsk e Lugans, e em levantes derrotados em Odessa e na Carcóvia.
Devido à fragmentação das forças de resistência, não houve uma ideologia coerente ou um objetivo comum nos levantes. No entanto, a orientação geral antifascista e antioligárquica era saudável, e claramente demonstra a composição de classe proletária e semi-proletária da resistência.
Hoje, o regime fascista em Kiev está imensamente fortalecido pelo país, com exceção nos territórios controlados pelos Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. O terror e a intimidação extinguiram a resistência de rua ao regime. Hoje existem provavelmente milhares de prisioneiros políticos na Ucrânia. Há censura na mídia. A “propaganda comunista” está oficialmente banida. Grupos militantes de ultradireita estão legalizados e integrados às fileiras da segurança.
Nestas condições, os grupos de resistência, incluindo nossa organização, são forçados a trabalhar clandestinamente, e nossos camaradas enfrentam não só acusações de “propagar o comunismo” (5 anos ou mais na prisão), mas também de “terrorismo” (prisão de 8 a 15 anos).
No entanto, a resistência está viva. E não só nas Repúblicas Populares.
Nós acreditamos que a Ucrânia será livre, e será socialista.