Dez meses após viverem um golpe de Estado, em novembro de 2019, os bolivianos seguem incertos sobre o futuro político de seu país. Pela terceira vez em quatro meses, as autoridades eleitorais da Bolívia adiaram as eleições, que deveriam ocorrer em setembro, para outubro.
Em rechaço à decisão, a Central Obrera Boliviana (COB), principal federação sindical do país, convocou uma greve geral por tempo indeterminado, bem como manifestações e bloqueios de ruas e rodovias.
O Tribunal Superior Eleitoral do país (TSE) afirmou que está disposto a seguir discussões com a COB. No entanto, no dia 29 de julho, o ministério da Presidência da Bolívia prestou queixa contra o secretário-executivo da COB, Juan Carlos Huarachi, contra o ex-presidente Evo Morales e contra a chefe da bancada do Movimento ao Socialismo (MAS), Betty Beatriz, por “delitos contra a saúde pública, instigação pública à delinquência, apologia do delito, associação delituosa e destruição ou deterioração de bens do Estado”.
Ainda assim, na segunda-feira (3) a Bolívia amanheceu com manifestações. Ao menos 75 pontos de bloqueio foram reportados no país, nas regiões de Santa Cruz, Cochabamba, La Paz, Oruro e Potosí, no que é a ação popular mais bem organizada no país desde o golpe.
Para tratar da situação do país, das eleições e das perspectivas do movimento popular boliviano, a Revista Opera conversou com o secretário-executivo da COB, Juan Carlos Huarachi.
Revista Opera: O ministro da presidência da Bolívia apresentou uma queixa contra a COB por convocar manifestações em resposta ao adiamento das eleições. Como pretendem responder? Continuarão as manifestações?
Lamentavelmente o governo está usando a perseguição política e sindical contra os dirigentes que estão atendendo a uma demanda social do povo boliviano. Estamos falando de todo o povo boliviano. E essa reivindicação, para nós, é proteger a saúde e a vida de todos os bolivianos, sem falar da democracia, que é um fator muito importante frente à falta da atenção desse governo; justamente com a saúde, a educação, o aparato produtivo e vários outros pontos que infelizmente nosso Estado está paralisando totalmente, o que faz que hoje haja mais desemprego no país. Estão demitindo nas empresas e nas indústrias, há redução de pessoal e de salário, estão despedindo funcionários públicos, cuja ausência não é compensada pelo setor privado.
Então há uma demanda nacional imensa, grande. E o problema para nós é a falta de atenção desse governo que não considera nenhuma das demandas sociais de vários setores que pediram soluções.
Revista Opera: O senhor respondeu mencionando a saúde pública. Já que um dos delitos pelos quais vocês foram acusados na queixa do ministro é “delito contra a saúde pública”, gostaria que avaliasse a resposta do atual governo à pandemia de coronavírus.
Infelizmente o governo não tem pautado nossas demandas sociais. Não entende as demandas do povo. Nos veem como responsáveis, entendemos as críticas de alguns setores. Mas o governo deve entender que a necessidade nesse momento é a saúde; é a prioridade para nós. Por que estamos nas ruas? Por que fomos marchar? Porque o governo, até o momento, não apresentou sequer um protocolo de tratamento para combater o coronavírus. Não implementou o uso de alguns medicamentos como o dióxido de cloro, ivermectina, e até a própria medicina tradicional*. Até o momento não há nenhum protocolo de tratamento. Como vamos combater a coronavírus? Simplesmente querem nos deixar ilhados, querem nos colocar em quarentenas rígidas. Se nos dessem medicamentos e um isolamento de 10, 15 dias, iríamos em frente, faríamos o isolamento e acataríamos à quarentena. Mas se não nos dão nada, como vamos cuidar da saúde? Por que depois desses 10, 15 dias, podemos ir aos centros de abastecimento e fazemos filas? Hoje, na Bolívia, desde as quatro da manhã há filas nos bancos, nas escolas, nos mercados, nas instituições que emitem documentos. Ou seja: em vários setores – e isso não é nossa responsabilidade – o povo está fazendo filas. E quanto a isso o governo não diz nada. Nossas mobilizações são também por essas necessidades, as filas são uma bagunça.
Então frente ao que nos acusam, de que estamos incitando delitos contra a saúde… Não somos loucos para atentar contra a saúde, pelo contrário; é pela falta de atenção à saúde por parte do governo hoje que nós, os trabalhadores, estamos mobilizados.
Revista Opera: Essa é a terceira vez que há um adiamento das eleições por parte do governo e do TSE. Quais são as expectativas da COB para os comícios e eleições? Não seria ingênuo crer, depois de um golpe de estado e uma forte onda repressiva contra o movimento popular, que poderia haver uma solução por via eleitoral?
Nós estamos de acordo com uma avaliação que foi feita por diferentes setores sociais do país. Há uma total desobediência ao povo boliviano, há um desgoverno que viola a constituição, que viola os direitos dos trabalhadores, até os direitos humanos. Hoje precisamos lidar até com a violação à própria democracia. Nossa democracia, lamentavelmente, está sendo violada, e é um direito constitucional que tem o povo boliviano. Se houvesse as condições, não veríamos todos pedindo respeito à democracia e pedindo o respeito ao Tribunal Superior Eleitoral de levar a frente as eleições no dia 6 de setembro. Por isso os trabalhadores exigem que de uma vez por todas haja eleições nacionais para que tenhamos um governo legitimamente eleito constitucionalmente pelo povo, pelo soberano, e assim pedir a implementação de novas políticas.
O governo de facto está fazendo caso do povo, violando as normas, improvisando. Está improvisando muitas políticas, que sequer são paliativas – são só críticas e questionamentos ao próprio povo boliviano, quando eles deveriam dar as soluções de maneira estrutural. O próprio Tribunal Supremo Eleitoral deu uma determinação [em novembro] de que a questão das eleições ficaria definida nos primeiros dias de janeiro de 2020. No dia 22 de janeiro as eleições nacionais deveriam ter sido chamadas. Posteriormente isso é adiado para o dia 3 de maio. Novamente modificam a data, com o tema da pandemia, para o dia 2 de agosto, fazem negociações com alguns candidatos, e finalmente chegam ao dia 6 de setembro. Agora mudam de novo os compromissos para o dia 18 de outubro. Ou seja, é uma violação do direito constitucional e do nosso direito de exercer nosso voto para ter definitivamente um governo eleito democraticamente. Então essas coisas fazem com que o nosso órgão eleitoral não tenha credibilidade com o povo boliviano. Hoje nossos direitos estão sendo pisoteados, inclusive pela falta de políticas de governo, e é por esse motivo que pedimos as eleições para 6 de setembro.
Revista Opera: Nesta situação como têm se comportado os elementos militares na política nacional, como a polícia e o Exército?
Há ameaças por parte de autoridades do governo. Vêm ameaçando permanentemente dirigentes, políticos e organizações sociais com processos, julgamentos e perseguições. Mas nós vamos seguir trabalhando. Apesar disso, há a necessidade do povo boliviano de levar o pão de cada dia a sua casa. A organização do povo boliviano é uma expressão das suas necessidades hoje. Por isso cremos que a despeito dessas ameaças que o governo faz, de nos perseguir com a polícia ou com o Exército, agora mais do que nunca, vamos nos organizar para fazer nossos direitos serem respeitados.
Revista Opera: Sabemos que o golpe na Bolívia teve o apoio da OEA e dos Estados Unidos. Você crê que isso é uma tendência geopolítica dos EUA para toda a região? Poderemos assistir mais golpes de estado em outros países latino-americanos?
Nós conhecemos a intervenção permanente, a ingerência política norte-americana e os interesses que têm em saquear nossos recursos naturais. Conhecemos perfeitamente os governos de direita dos partidos tradicionais da Bolívia, que permanentemente trabalharam com o interesse de vender nossa pátria e nossos recursos naturais. Hoje novamente se aplica esse tipo de política no país, com tentativas de privatização de nossas empresas públicas estratégicas. E a isso se somam esses organismos internacionais, que no lugar de fazer respeitar o direito humano estão favorecendo esses governos de direita para de alguma maneira fazer perseguições e violar os direitos. Hoje a população boliviana perdeu totalmente a crença nesses organismos internacionais, que foram parte do golpe no país em novembro de 2019. O MAS inclusive solicitou, para poder garantir as eleições, que algumas dessas organizações internacionais não possam participar como observadores das eleições que seguramente acontecerão em nosso Estado plurinacional.
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Revista Opera: Quanto à questão da exploração dos recursos naturais, o infame empresário norte-americano Elon Musk declarou recentemente, sobre seus interesses em minerais bolivianos, que podem golpear quem bem entender. Desde o golpe, o que mudou na exploração mineral no país? Como a COB pensa a respeito de possíveis mudanças promovidas por esse governo ou mesmo outro?
Esse governo não fez nada; tudo está paralisado, todas as empresas públicas estratégicas do Estado correm o risco de ser privatizadas. Não somente a mineração, também empresas de serviços e outras, estão paralisadas. Hoje entendemos perfeitamente que esse governo tem a intenção de vender nosso lítio, o mineral mais valorizado a nível mundial, o futuro do mundo e de nosso país. Há tentativas de vender, e nós não vamos permitir. Cremos que já tivemos essa experiência, há mais de uma década atrás, da venda de nosso gás e recursos naturais, e o povo boliviano se rebelou contra isso, para não permitir que esses recursos fossem vendidos a mãos privadas e estrangeiras. Hoje nossa luta não é somente por esse mineral, o lítio, mas também por vários outros recursos que temos e empresas públicas que hoje estão paralisadas e que o governo tenta privatizar por decretos. Nós vamos defender todos nossos recursos e evitar as privatizações.
Revista Opera: Antes de finalizarmos, gostaria de dizer mais alguma coisa?
Bom, essa nossa organização é a única central de trabalhadores que aglutina diferentes camadas sociais do país, afiliadas e não-afiliadas. Essa central está lutando pelo bem comum do povo boliviano, dos mais pobres, dos mais despossuídos. Não está lutando por problemas setoriais, trabalhistas, mas pelo bem comum de um país, para buscarmos melhores dias para todos nossos irmãos bolivianos, para recuperar a democracia, a dignidade e a soberania de nosso país.
Então seguiremos em pé de luta, através de nossas organizações afiliadas e não-afiliadas, que também têm suas demandas setoriais e particulares. Mas o tema central é o bem comum de todos os nossos irmãos.
*O uso de dióxido de cloro e ivermectina tem sido tema de polêmicas na Bolívia. Na região de Chuquisaca, no sudeste do país, os compostos tem sido administrados “com excelente eficácia”, de acordo com a direção regional de saúde. Um comitê científico nacional no entanto desaconselha o uso dos fármacos, citando riscos à saúde.