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Quem faz escárnio da lei é policial que massacra no Carandiru, não Vai-Vai no Anhembi

Policiais demoníacos em desfile do Vai-Vai retratavam criminosos sentenciados por mortes no Carandiru, não ‘profissionais abnegados’, como quer sindicato de delegados
Pedro Marin
Alegoria da ala “Sobrevivendo no Inferno”, do desfile do Vai-Vai, retrata policiais que massacraram 111 pessoas no Carandiru. (Foto: Woody Henrique / Reprodução Facebook: Escola de Samba Vai-Vai)
A tradicional escola de samba paulistana Vai-Vai, no seu desfile no Sambódromo do Anhembi no último domingo (11), prestou homenagem aos 50 anos do mais potente movimento político-cultural do século 20, o Hip-Hop.

Com o enredo “Capítulo 4, Versículo 3  – Da Rua e do Povo, o Hip Hop: Um Manifesto Paulistano”, a escola colocou na avenida o Break, o Graffiti, os MCs e os DJs, elementos constituintes do Hip-Hop, ao lado de manifestações culturais tipicamente brasileiras – como o pixo – e mais modernas – como o slam de poesia – para retratar a chegada e o desenvolvimento do Hip-Hop no Brasil.

Como não poderia deixar de ser, além de homenagear em seu enredo o maior grupo de rap brasileiro, o Racionais MC’s, a escola também dedicou uma ala ao disco “Sobrevivendo no Inferno”, obra-prima do grupo, de 1997. Considerado o álbum mais importante do rap brasileiro, tendo figurado na 14º posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira da revista Rolling Stone, Sobrevivendo no Inferno vendeu mais de meio milhão de cópias fora do circuito comercial convencional, tocou de norte a sul do País, e foi incluído na lista de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp em 2020.

Além de conter a faixa “Capítulo 4, Versículo 3”, que dá nome ao enredo da Vai-Vai, o disco inclui também “Diário de um Detento”, clássico que conta a história do massacre do Carandiru, em outubro de 1992. Escrita por Josemir Prado, o Jocenir, um dos detentos no Carandiru à época do massacre, e por Mano Brown, vocalista do Racionais, “Diário de um Detento” ficou em 52ª lugar na lista das 100 maiores músicas brasileiras da Rolling Stone, e teve seu clipe premiado no prêmio VMB de 1998, da MTV, em duas categorias: “Melhor Vídeo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Além disso, foi considerado o 2º “Melhor Clipe Brasileiro de Todos os Tempos” pela Folha de São Paulo em 2012.

Por isso na ala “Sobrevivendo no Inferno” do desfile do Vai-Vai havia tantos componentes vestindo uniformes policiais e chifres demoníacos: eram uma referência ficcional à canção ficcional sobre o massacre real de 111 detentos na maior metrópole da América Latina. As alusões aos temas demoníacos estão por toda a canção: “Já ouviu falar de Lúcifer? / Que veio do inferno com moral, um dia / no Carandiru, ele é só mais um / Comendo rango azedo com pneumonia”, “Cadáveres no poço, no pátio interno / Adolf Hitler sorri no inferno!” e “Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo / Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio!”.

Tal qual “Sobrevivendo no Inferno”, o disco, escandalizou certos setores da sociedade brasileira em 1997, “Sobrevivendo no Inferno”, a ala, também escandaliza em 2024. Além de revoltar políticos da extrema-direita – como Kim Kataguiri, pré-candidato à prefeitura de São Paulo – e ligados à bancada da bala, o desfile do Vai-Vai aparentemente ofendeu o Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), que em nota na última segunda-feira (12) manifestou seu “veemente repúdio” à escola de samba, por “tratar com escárnio a figura de agentes da lei.” Segundo a nota, assinada pela presidente do Sindpesp, Jacqueline Valadares, “com direito a chifres e outros itens que remetiam à figura de um demônio, as alegorias utilizadas na ala ‘Sobrevivendo no Inferno’, demonizaram a Polícia – algo que causa extrema indignação. Ao adotar tal enredo, a escola de samba, em nome do que chama de ‘arte’ e de liberdade de expressão, afronta as forças de segurança pública, desrespeita e trata, de forma vil e covarde, profissionais abnegados que se dedicam, dia e noite, à proteção da sociedade e ao combate ao crime, muitas vezes, sob condições precárias e adversas, ao custo de suas próprias vidas e família.”

Gostaria de supor que um sindicato de delegados não considere como “profissionais abnegados” os 23 policiais militares condenados em abril de 2013 a 156 anos de prisão pela morte de 12 presos durante o massacre; ou os 25 policiais condenados no mesmo ano a 624 anos de prisão pela morte de 52 detentos no pavilhão 9; ou ainda os 74 policiais condenados em cinco júris pelo envolvimento no massacre – decisão que, anulada pela Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2018, foi reestabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Há de se supor que os delegados paulistas sejam defensores da lei, afinal; não da barbárie.

A nota diz ainda que “é de se lamentar que o Carnaval seja utilizado para levar ao público mensagem carregada de total inversão de valores e que chega a humilhar os agentes da lei.” Os “agentes da lei” retratados como demônios pelo desfile do Vai-Vai foram condenados e têm penas a cumprir, confirmadas inclusive pela máxima instância judicial do País, pela total inversão de valores na qual incorreram quando, como agentes da lei, em 1992, agiram como assassinos. “Inversão de valor” é um órgão representativo de delegados se crescer frente uma escola de samba em defesa de criminosos sentenciados que, por serem “homens da lei” quando cometeram seus crimes, deveriam ter do Sindpesp e de políticos-policiais o repúdio duplicado, não a solidariedade perene. Seria um repúdio bem-vindo: afinal, apesar das pesadas sentenças, nenhum dos 74 responsáveis pelo massacre foi preso, 58 deles foram promovidos, e dez se aposentaram com salários superiores ao do governador de São Paulo. Quem mata mais ladrão ganha muito mais do que medalha de prêmio.

O Sindsesp “aguarda que a Vai-Vai, num momento de lucidez e de reflexão, reconheça que exagerou e incorreu em erro na ala em questão, e se retrate, publicamente”. Talvez caiba ao sindicato meditar um pouco quanto ao que, afinal, a ala “Sobrevivendo no Inferno” retratava, e, sob a virtude da lucidez e da reflexão, tomar, ao fim, a postura que exige da escola: o reconhecimento do exagero e do erro e a retratação pública. Mas, considerando que o sindicato julga o desfile tão ofensivo a “uma instituição de Estado que representa e está a serviço de toda a sociedade bandeirante”, este desfecho é bem improvável.

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