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A utopia golpista da nova constituição

Nova constituição já estaria sendo preparada por um “grupo de notáveis” , declara deputado eleito pelo PSL. Que utopia nos reserva o bolsonarismo?
Deputado eleito do PSL fala de nova constituição sendo preparada por um “grupo de notáveis”. A declaração nos diz muito sobre a ideologia direitista e as “utopias” desejadas pelo bolsonarismo.

candidato a príncipe, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, eleito deputado republicano pelo partido PSL (que ele despreza), fez uma declaração no programa “Os Bastidores do Poder” da Rede Bandeirantes de Rádio, no dia 19 de Outubro de 2018, segundo a qual há neste momento um grupo de “ativistas” ligados à candidatura de Jair Bolsonaro e à liderança de Mourão preparando uma nova constituição para o Brasil.

É difícil engolir o termo “ativistas” quando o contexto atual – os absurdos da chapa Bolso-Mourão – parece preferir a palavra “conspiração”. Pelo visto, um pequeno grupo de velhos entediados decidiu brincar de constituinte – que apesar de não ser, como a “familía real”, nem soberana e nem legítima, já aspira se impor nas costas de nosso povo.

Ele chama os conspiradores de “notáveis” – o que faz um grupo de “notáveis” se escondendo do olhar público e preparando uma nova constituição como ricos que se rastejam nas sombras de um cabaré?

O cidadão Luiz, além de pretenso monarca, é militar e parte do mundo de executivos do capital financeiro.

É sintomático que essa Catilinária seja anunciada por um cidadão que se reivindica “Príncipe do Brasil” – é um usurpador da soberania do povo até no título, mas que agora passou para a prática ao se achar no direito de articular uma constituinte secreta. Como se não bastasse, o aventureiro também aventa simpatia por uma guerra contra a Venezuela.

Eles não têm vergonha de anunciar algo assim mesmo que um dia depois de uma denúncia de caixa dois contra o candidato Jair Bolsonaro.

O seu discurso descreve a nossa república como uma espécie de ditadura. Defendeu a criação de mais um poder, um poder moderador. Ele quer um apelo organicista típico de um compromisso conservador. Para ele, só haverá democracia com distritos, que inclusive ele sugere ser condição para a nova constituição (se é indispensável, não fica claro).

“Nós não temos uma democracia. Democracia é governo distrital.”

“Não sou favorável a uma constituinte. Eu sou favorável sim a um conselho de notáveis fazendo uma constituição. ”

Quando questionado sobre quem elaborará, ele respondeu:

“Já estão elaborando essa constituição.”

A reflexão dele sobre a inexistência de democracia nos informa muito sobre a visão política do grupo de Bolsonaro: se não existe democracia, então não existe jogo democrático e nem respeito a essas regras democráticas. Estaríamos em um estado de guerra, de ilegalidade. Isso também está implícito na entrevista de Paulo Guedes à Globonews, em sua macarronada ideológica de sairmos de um “estado hobbesiano” para um “estado de Rousseau”. Guedes também colocou em letras claras a posição da família Bolsonaro em um artigo no O Globo publicado em junho deste ano: o estado não cumpre funções básicas de segurança, vivemos num estado de “guerra de todos contra todos”, sem autoridade e onde desaparece a “distinção de certo e errado” – acrescentando que isso foi acompanhado por um domínio hegemônico do que ele chama de social democracia brasileira (que ele diz estar dividida entre PMDB, PSDB e PT).  Nessa chave de pensamento, o bolsonarismo atua como um movimento subversivo das instituições de uma “ditadura” (que nos delírios mais profundos é um projeto comunista, bolivariano e “gayzista” do PT), jogando um jogo de guerra sem limites (vale tudo, sendo a mentira um instrumento mais do que aceitável).

Muito próximo da ideologia decisionista que se espalha por nosso judiciário: soberano é togado que toma as decisões de exceção em última instância, espada acima da guerra de todos contra todos e controlador o “caos” e dos “abusos” do mundo político, distribuindo justiça e punindo políticos conforme uma decisão “maior”, de natureza mais política do que regulamentar. Isso também se encrosta em setores militares e ganha ecos na discussão política da sociedade.

Isto é, cada vez mais a direita brasileira ignora convenções democráticas, acreditando de que precisamos de decisões externas a normalidade e transferindo a soberania do povo para grupos excepcionais.

É claro que o pretenso príncipe soube temperar a fala – como é típico da estratégia de comunicação do bolsonarismo. Isto seria apenas um “movimento de ativistas”, distante de Bolsonaro (que afinal de contas e como sempre diz, “não controla nada”), que está preparando a tal carta magna para ser apresentada a “sociedade civil” e depois colocada em referendo.

Ele chama a proposta de “altamente democrática” pelo fato de que depois de pronta ela será propagandeada pela sociedade antes do tal pleito.

O centro da sua preocupação reformista está no voto distrital. O seu conservadorismo ideológico se encontra com o conservadorismo real da tal da “velha política”, dos currais e dos oligarcas locais – os mesmos políticos que ele diz denunciar mas que ano passado tentaram impor ao nosso país o “distritão”. O sistema distrital nesse caso cumpre a função de entronizar certos interesses locais, reduzir o debate nacional e dificultar movimentos de mudança social.

Quem conhece o discurso conservador do deputado eleito sabe o que significa: é a velha preocupação da estabilidade e da contenção de “mudanças bruscas” perante qualquer manifestação de poder popular majoritário. As “elites naturais” e o “bom senso conservador” devem estar entronizados em um sistema cheio de barreiras. Essa preocupação já esteve contida na formação de nossa república e em nossas leis, no entanto o cidadão quer nos levar mais longe com sua proposta parlamentar e em última instância monárquica.

O problema é que, tanto no sistema político como no mundo real das redes de poder que se confrontam e sobrepõem, já existem equilíbrios e contenções.  O que eles querem é afirmar um projeto reacionário.

Esse debate não está longe de uma discussão antiga da filosofia política que atravessou séculos e continentes. O discurso do deputado eleito não deixa de ter ecos da ultra direita da reação monárquica francesa (e seus filhos políticos), que sempre foram contra a nation jacobina que é reunida numa totalidade através do voto nacional, através de questões nacionais, defendendo sim os poderes tradicionais e uma divisão política mais localista, com a integração ficando a cargo de valores católicos e conservadores, não da política.

Por fim, devemos ter cuidado com a desinformação que está sendo usada contra o Brasil e desconfiar da fala do pretenso monarca.

Não é coincidência que ele esteja assoprando parlamentarismo e voto distrital. Essa é uma pauta conservadora de transformação que agrada velhos patrões e coronéis da política brasileira, que já era bandeira dos tão machucados tucanos (e seus delírios de modernização dependente; a reforma foi pauta de Aécio, Serra e Alckmin), juristas também conservadores que detestam nossa constituição…. a propósito, todos os inimigos históricos da Constituição de 88 e que se revoltam especialmente com seu aspecto social, seu caráter carta garantidora de direitos. Até mesmo militares mais moderados se sentem atraídos por esse canto de sereia que promete acabar com os “males do populismo” (que o pensamento paulista nos convenceu de ser o maior mal de nossa pátria), os perigos do voto majoritário, os delírios do povo, e todos termos que os conservadores inventaram para jurar evitar. É como que um ponto de consenso.

Existe um novo militarismo crescendo em poder e potência no Brasil. Eles também acreditam em “poder moderador”, mas essa coroa se esconde nos bastidores. É mais aristocrático do que monárquico. Os militares brasileiros de distintas ideias políticas compartilham uma ideologia social que valoriza hábitos recatados ao público, condena o histrionismo e se apega a métodos cuidadosos. Muitos são mais do que conscientes dessa vocação de aristocratas (são desejosos), o que se mistura com a formação positivista unânime (e suas pretensões científicas e “neutras”).

Se coloquem nos pés (nas botas) de quem pensa assim: uma elite meritocrata, selecionada, prudente, metódica, refletida, acautelada, bem relacionada com os principais interesses que jogam (dentro e fora do país), científica, neutra e decisiva pode ser o poder moderador.

Como disse o pretenso monarca: “não é governar, é um poder de veto“.

É claro que essa mesma pretensão foi (e é) compartilhada pela velha casta jurídica, tão antiga e aristocrática, mas não seria a primeira vez que os militares vanguardistas buscam sobrepor os velhos doutores (é assim desde o fim da monarquia). Arranjos também podem ser feitos. No caso do Supremo Tribunal Federal, a balança não parece ter pendido muito para o lado dos ministros-juizes, mas mesmo com um general no cangote eles não deixam de ter seu gordo papel no condomínio de poder do novo Brasil. Ideologicamente também partilham a semelhança de querer a soberania de decidir a exceção, preceito schmittiano aclarado e consciente na ideologia da casta jurídica que já é muito dada delírios hobbesianos (não quero força, são nossas elites que são mui cultas, mas podemos ser cultos também). Os juízes pelo menos podem causar inveja ao veto militar por estarem mais próximos de governar e legislar, além de enquadrarem representantes do poder executivo no Brasil inteiro.

Não se assustem se o Leviatã do judiciário se levantar ainda mais voraz. Antes de sonhar com perseguições militares, considerem que a perseguição política deve se tornar ainda mais forte no plano do assédio jurídico. Está cada vez mais difícil para o executivo tapar um buraco em cidades pelo Brasil sem a ameaça da espada de um promotor qualquer (não faz mal: a terceirização e as multinacionais, os estrangeiros, devem vir aqui resolver isso).

Quem sabe numa futura utopia bolsonarista, aquela utopia dos condomínios cheios de luxo (algo como Elysiun), com as elites armadas e mais livres de impostos do que outrora, com o povo mais subordinado, religioso e disciplinado como num paraíso saudita…. quem sabe nessa utopia as elites militares, financeiras e judiciárias não estejam mais reconciliadas do que nunca unidas por laços de sangue, mantidos com base no auto-recrutamento e na endogamia? Isso pode ser alcançado tanto com um neoliberalismo selvagem, mais próximo do discurso do Guedes, como por um estatismo concentrador de renda que reedite a política do regime militar.

Já não é isso tradição institucional cara a todos esses grupos de pseudo aristocratas?

Essa utopia em que o outro general (o da educação, Aléssio Ribeiro de Souto) impõe o ensino de criacionismo nas escolas públicas, escolas que estarão sem investimento, enquanto a educação do pobre é paupérrima, subdesenvolvida, a aproximação das elites será beneficiada nesses colégios privados recém fundados onde uma mensalidade custa 9 mil reais. Esses oásis pensados de acordo com a elite internacional.

Eu não usei o termo “paraíso saudita” à toa. Existem outros países no mundo em que elites riquíssimas e bem comungadas com a elite internacional exercem despotismo contra a massa de pobres de seu povo. Os bolsonaristas amam Dubai. Eu poderia pensar ainda no Marrocos, ou no Paquistão para contemplar melhor o poder militar. Dou preferência ao reino saudita por conta da lealdade com os Estados Unidos do lado de fora misturada com fanatismo religioso do lado de dentro (lembrem-se da Igreja Universal).

Mais longe da utopia, nossas elites ainda podem aspirar a um modelo nigeriano (continuidade da corrupção, divisão entre as elites que são associadas aos estrangeiros que exploram o petróleo) e, se a coisa der muito errado, Ucrânia.

Pensemos então na mudança de constituição em sentido amplo: em sentido de mudança de regime.

Que ironia pensar que estamos discutindo por causa da pregação de um capitalista politiqueiro que se chama de príncipe, ele mesmo um cosmopolita das elites internacionais.

E não disso que se trata Jair Bolsonaro? O pacto hegemônico das classes dominantes está rachado, eis que surge a promessa do Messias que reconcilia os interesses dos ricos do Brasil. Isso tudo com um toque Fujimori, com um gabinete inteiro recheado de militares, depois de uma campanha que precisou de uma máquina de mentiras mesmo com toda força do antipetismo.

É uma pena que os militares que se seduzem pelo canto de sereia de um executivo do capital financeiro e toda sua gangue não percebem que podem estar atirando no próprio pé e inviabilizando a grandeza da própria pátria ao garantir trincheira sólida para grupos econômicos desinteressados no nosso progresso.

Ativistas? Será que esses ativistas tem algo a ver com o Mourão, esse defensor de “uma nova constituição feita por notáveis”? Falando em Mourão, será que ele tem algo a ver com o mentiroduto de Bolsonaro, as redes do WhatsApp?

Afinal, a estratégia de comunicação que guia essa campanha é uma estratégia militar.

Será que numa eventual lista das empresas que financiaram disparos massivos na rede encontraremos as mesmas empresas sulistas que assinaram manifesto em apoio a Mourão em 2017, defendendo uma intervenção militar? Será que o disparo simultâneo de intervenções de Mourão falando de suas ideias políticas de nova constituição foi mero fruto do acaso e da espontaneidade de pessoas que acreditam em notícias falsas absurdas (inclusive na mesma semana da facada)?

Para além de nossos devaneios, precisamos ter o pensamento frio para entender o intrincado político-militar brasileiro. Como disse Pasolini (Pier Paolo), “a pirâmide do poder, monolítica ao externo, é extremamente complicada, labirintica, monstruosa ao interno”.¹

Não esperem tão ansiosos por tanques rodando em Brasília: é mais fácil que o golpe venha na imposição de um sistema parlamentarista à gosto das elites. “Muda Brasil de verdade”, já diria o jingle de Jair.

A carta no coturno agora é uma (nova) carta constitucional. E os aristocratas sempre foram conhecidos por adorar jogar baralho.

O cidadão Luiz Philippe de Orléans e Bragança disse que já recebeu muitos apelidos. Com esse sangue real deve conhecer a história das monarquias, ainda mais carregando nome de Orléans. Caro cidadão Luiz, seu nome é muito difícil para nosso povo, mas o hábito de conspirador pode te dar um apelido mais fácil de se falar e também cheio de dignidade real: Luiz Capeto.

¹”….: la piramide del potere, monolitica all’esterno, estremamente complicata, labirintica, mostruosa all’interno” Resenha de Pasolini de Leonardo Sciascia, Todo modo, escrita em 24 de Janeiro de 1975 e presente na obra Descrizioni di descrizioni, de 1979 e que possui o grosso do ensaísmo “herético e corsário” de PPP. Pasolini descreve um protagonista, um “bom” que sem moralismo que julga a pirâmide ao ser conduzido por dentro dela. Esse “juiz quase casual – que é conduzido casualmente por dentro de seus complexos mecanismos – se torna justiceiro”, ao ganhar a liberdade de decidir quais membros do “clube” do poder devem morrer.

Não fica claro se ele atua livremente e acima da execução material dos crimes, porém fica claro que “esses ‘mafiosos’ que morrem são mortos pela vontade do autor”, porém “não gratuitamente: são condenados a morte por causa da criminalidade com qual detém e usam o poder”, com o acréscimo de que “talvez o poder mesmo seja um crime”(“Certo è che quei «mafiosi» muoiono per volontà dell’autore. Ma non gratuitamente; bensì perché condannati a morte a causa della criminalità con la quale essi detengono e gestiscono il potere. O forse in quanto il potere è di per se stesso un crimine”).

Os “maus” são aqueles que, diferente dos “bons”, “não lhes passou pelo pensamento de que o poder é injusto, é diabólico: mas aceitaram inocentemente as regras”. Entre os “malvados”, tambéme mesmo aqueles hierarquicamente inferiores frente ao poder, mas que se aproveitaram – “são vistos como miseráveis, mesquinhos e sobretudo, mesmo que obscenamente, ridículos”(“Ci sono tra i «cattivi», naturalmente, anche coloro che, rispetto al potere, sono gerarchicamente inferiori: e costoro sono quindi visti come miserabili, meschini e soprattutto, sia pur oscenamente, ridicoli”).

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