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O sólido edifício da democracia

Não se pode pedir democracia enquanto se defende a pilhagem do povo. Sábios são os que sabem que, para espoliar mais, precisarão de uma postura radical.
por Pedro Marin | Revista Opera
(Imagem: Estúdio Gauche, com base na obra de Magritte)

Abri com espanto a Folha de São Paulo do último domingo. Manchetes em defesa da democracia para lá e para cá e a campanha “use amarelo pela democracia” (em referência à campanha pelas Diretas) por um instante me fizeram imaginar que um golpe tivesse triunfado na noite anterior sem que eu notasse. Até a máxima “um jornal a serviço do Brasil” aparecia diferente; “Folha de S. Paulo, um jornal a serviço da democracia”. No editorial, o título “Democracia, nunca menos” anunciava que “é sólido o edifício da jovem democracia brasileira”, já que “vultosa maioria, de 75%, hoje considera essa a melhor forma de governo”.

Tomo o tempo do leitor para fazer algumas observações imprescindíveis nestes tempos. Começo pelo editorial: é simplesmente mentiroso afirmar que “é sólido o edifício da jovem democracia brasileira”. Se assim afirma o jornal, sou obrigado a responder que, num paradoxo, a solidez do edifício se assenta em uma estrutura corroída e arcaica. Retomo os argumentos da semana passada (que nesta revista são argumentos toda semana, todo segundo): a sólida democracia deixa para trás, há décadas, centenas de milhares de pessoas inconstitucionalmente presas. Deixa para trás, também inconstitucionalmente, os direitos sociais de milhões – são quase 13 milhões de desempregados baixo uma Constituição que assegura o direito ao emprego a todos os seus cidadãos. Não perderei tempo falando de benesses como lazer, segurança e saúde, porque o corroído-sólido edifício aparentemente é, ainda mais, torto. Torto porque o ferro se conformou em um amassa-e-empurra na década de 80, pelo qual passávamos a um regime formalmente democrático sem deixar para trás a ditadura. Não houve punição; houve anistia – geral, ampla, irrestrita. Tão ampla que, como disse também na semana passada, possibilitou que um general tutelasse artigos da nova Constituição – o mesmo general, mais tarde, ameaçaria presidentes com informações recolhidas pelo serviço de inteligência e reunidas no infame “ORVIL”, contrário de “livro” que trazia um apanhado de informações sobre o passado de políticos durante a ditadura. Se um ousado imaginou que, depois de 21 anos de regime militar, um processo constituinte reformaria o Exército, teve de conciliar-se com o fato de que foi o Exército que acabou por reformar a constituinte. 

Mas caberia perguntar, já que demonstrativo da solidez democrática, o que exatamente a “vultosa maioria de 75%” entende por “democracia”. Mais grave: o que a Folha entende disso? No editorial, o jornal reconhece que apoiou, “num primeiro momento”, o “novo regime” de 1964, e que errou por fazê-lo. Diz que “viu-se rapidamente engalfinhado pelo novo sistema de poder, perdendo a capacidade de reagir antes mesmo de percebê-lo.” Como é vulgar, a História; termo me falta para os jornais. Erraram em 1964, admitem-no em 2020, esquecem-se de 2016 quando percebem-se “engalfinhados pelo novo sistema de poder”. Lucraram nos papéis – de ações – pelas manchetes no papel-jornal que estampavam naquele ano, alinhados a senhores como Michel Temer e Eduardo Cunha. Hoje imprimem o receio frente a um pesadelo, esquecendo-se das brutalidades que prestigiaram durante o dia, e que agora, à noite, vêm assombrá-los.

Dizia em um artigo em outubro do ano passado que, para os cretinos, “uma República que hoje faz fuzis policiais a extensão da chibata contra a pele escravizada de ontem é no máximo uma República ‘com falhas’. As mortes no campo são ‘violações’. A superlotação do sistema prisional é ‘um problema’. Quando se regride nos direitos trabalhistas conquistados com sangue, ou quando a corrupção movida por grandes empresas e políticos se revela endêmica, são questões de ‘retrocessos’ e ‘desvios’. Ainda que todas essas questões sejam seculares, nossos liberais-progressistas veem nelas apenas erros, vírgulas, detalhes, crases.” Impressão minha, agora impressa no editorial. Mesmo que de fato fosse “vultoso” o apoio do povo brasileiro à democracia – e que ignorássemos o que isso significa para ele, se crê ser democrática sua vida hoje -, restaria perguntar o que este povo pode fazer. Em 1964, é certo, também era majoritário o apoio à democracia e às reformas de João Goulart. Não houve insurreição frente ao golpe militar. Haveria hoje? Apoiaria-a a mesma Folha que, em 2013, “vestia amarelo” em editorial pedindo que a polícia “retomasse a Paulista” contra os manifestantes de junho? Não é este o mesmo grupo midiático que combate e despreza todo movimento popular que dá ao povo organização?

Ser oposição de fato: moderação, virtú e fortuna

Uma frase do jurista, filósofo e professor Silvio Almeida ecoou grave na bancada de jornalistas do Roda Viva da semana passada. O professor dissera que ser antirracista é incompatível com a defesa de políticas de austeridade. Estendo a afirmação para a questão da democracia. Maquiavel escreveu sobre o caos e seu domínio; a fortuna e a virtú. Marx nos deu ferramentas precisas para, ao menos, conhecer aqueles ventos que fazem um redemoinho. Mas podemos voltar ao mesmo Maquiavel quando dissera que “em toda cidade existem estes dois humores diversos […]: o povo deseja não ser comandado nem oprimido pelos grandes, e os grandes desejam comandar e oprimir o povo.”

Assim como todas as barbaridades estúpidas que mencionei não são acidentes no caminho da História do Brasil, mas antes seu alicerce – sólido alicerce, nos diz o jornal! – Bolsonaro e seu projeto também não é um desvio. O presidente, ainda que do alto de sua estupidez, percebeu que para uma fortuna de gravíssima crise econômica, disputas geopolíticas e acirramento da luta de classes, virtuosa seria uma direita radical, raivosa, ameaçadora. O realista foi Bolsonaro e aqueles que embarcaram em sua campanha, que perceberam que o Brasil não seria um barco tranquilo navegando no remanso se o mar global é revolto, com tsunamis econômicos. Que perceberam que o contexto da luta econômica determinava, para a classe dominante, uma postura agressiva na política, e que uma defesa dos direitos econômicos dos grandes dependiam de tal postura política. A Folha, desejando tal agressividade na luta econômica, desejando que os grandes comandem e oprimam o povo, imagina possível fazê-lo com uma postura moderada na política. Não pode; a César o que dele é.

Não haverá moderação, porque não vivemos em tempo ameno. É inútil esperar por ela enquanto se apoia e vota a privatização da água e do saneamento básico em meio a uma pandemia, enquanto se comemora as reformas de Guedes. É sintoma de demência – melhor dizendo, calhordice – se pretender defensor da Constituição enquanto se apoia leis que, por 20 anos, revogam seu 6º artigo. E se o morro descer e não for Carnaval? Voltaremos aos tempos de editoriais pedindo repressão, ou os poderosos concederão, com enorme sacrifício, seu direito considerado inato – de tão absoluto, sequer escrito – à opressão contra o povo?

Um sombrio dia de justiça

Nesta ventania toda, ironicamente, maior virtú coube àqueles que dela não precisavam. Dizia afinal, também o florentino, que as armas eram de tanta virtú que eram capazes de tornar homens privados em príncipes. Os militares, os únicos que poderiam lidar com o caos como quem lida com uma corrente de vento qualquer, baixando as abas dos chapéus, decidiram dar um passo à frente com os coturnos. Viram tudo, aproveitaram o cavalão passando, trotando, e montaram. Se o corcel fosse impedido mais a frente – e tudo indicava que iria – poderiam seguir a pé; já teriam avançado. E se fosse se cansando da carga que levava, bastava uma esporadas para que o bicho seguisse.

Enquanto isso, o centro se desfazia. O PSDB, que se imaginou vitorioso depois de insuflar o antipetismo e participar de um golpe, de repente viu-se reduzido às cinzas com a explosiva ascensão do bolsonarismo. Também de Nicolau: “porque o povo, desejando viver sob as leis, e os poderosos querendo exercê-las, não é possível que se entendam.” O centro já não mais existe – lição para a esquerda que, se moderando em meio à guerra, mais ajudará os radicais e moderados de direita do que a si mesma. O centro de uma ruptura é um buraco; de uma casa que pega fogo ou se foge ou o combate – nela ficar e tentar convencer as chamas a deixarem de queimar não as farão cessar.

Em 1967, pouco depois da morte de Che, Rodolfo Walsh escreveu o conto “Un oscuro dia de justicia”, publicado em 1973. O conto se passa em um internato para rapazes irlandeses. Lá, o bedel Gielty organiza, todas as noites, lutas de boxe a punho nu e clandestinas entre os garotos, que chama de “Exercícios”. Mas elas têm um aspecto incomum: o funcionário toda noite coloca um garoto fraco, tímido, despreparado – Collins – para se enfrentar com um outro, ágil, forte, impávido – o Gato, que antes havia sido, ele mesmo, o fraco e tímido perseguido. Sua teoria: “mesmo sendo os menores do Colégio devem aprender a lutar e a abrir caminho na vida, porque Deus manda – e aqui apalpou um dos livros, que era grande e tinha capa preta – que as mais fortes de suas criaturas sobrevivam e as mais fracas pereçam, como diz este outro livro […] não quero que nenhum de vocês, que agora me olham tão indefesos, ignorantes e tolos, pereça antes da sua hora; e portanto que nenhum de vocês seja um fantoche arrastado pra lá e pra cá pelos tempos ou pela vontade dos homens como uma lagarta levada pela enxurrada.”

Cansado de apanhar, o pequeno Collins envia uma carta para seu tio, Malcolm, que lhe responde: “Chego no domingo, vou esmurrar o bedel Gielty até a  morte”. E vem. Gielty e Malcolm se enfrentam numa luta árdua no jardim do Colégio, na qual este marreta o bedel de socos e é saudado por todos os meninos. Mas, “recuperado, Gielty sacudiu o saudante Malcolm com um murro no fígado, e enquanto Malcolm se dobrava depois de uma careta de surpresa e de dor, o povo aprendeu, e enquanto Gielty o arrastava na ponta de seus punhos como nos chifres de um touro, o povo aprendeu que estava sozinho, e quando os socos que soavam na tarde abriram uma chaga incurável na memória, o povo aprendeu que estava só e que devia lutar por si mesmo, e depois que as figuras sumiram nos limites do jardim, o povo aprendeu que estava só e que devia lutar por si mesmo e que das próprias entranhas tiraria os meios, o silêncio, a astúcia e a força, enquanto um último golpe lançava o querido tio Malcolm do outro lado da cerca onde permaneceu insensível e um herói no meio do caminho”.

Portanto, “servir ao Brasil”, “servir à democracia”. Impossível sem que se sirva ao povo. O apoio a medidas econômicas contra ele demonstra que somente pretendem trocar o bedel por um outro qualquer, talvez mais acanhado, talvez mais violento – racionalmente violento. E o povo aprenderá, então, que estava sozinho.

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