Em seus devaneios, em algum ponto da história e em algum lugar do mundo, a humanidade galgou uma invenção de alta justeza moral e grande porosidade à corrupção: o ato de eleger. Há registros de líderes eleitos pelo voto na Índia do Período Védico, em Esparta por volta de 700 a.C e nas mais conhecidas sociedades romanas e atenienses.
No Brasil, tivemos em 2018 uma eleição absolutamente imoral e corrompida, primeiro porque se escolheu o sucessor de um presidente que não tivera sequer um voto para tal cargo e que encerrou seu mandato com um recorde de impopularidade, produto somente de um “grande acordo nacional” que se materializou em um golpe contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. Depois – e agora podemos afirmá-lo sob a batuta do STF e com o peso de mensagens vazadas – porque o mais popular dos candidatos, Lula, foi afastado da corrida por uma série de processos espúrios, feitos ao arrepio da lei por procuradores e juízes suspeitamente associados aos norte-americanos. Não tratarei dos espetáculos midiáticos, de possíveis crimes eleitorais, da desigualdade de recursos entre os partidos e da ausência de pluralidade midiática (além da despudorada atuação dos grandes veículos jornalísticos) pois estas são todas favas já contadas que se repetem em todo ciclo eleitoral.
O que se viu em 2016-2018 não foi somente uma torrente de atos que feriam a amplíssima noção de “democracia” brasileira (ferida já de gravidade no nascimento), mas um ataque direto ao ato de votar em si. Foram descartados 54 milhões de votos; depois, tornou-se impossível que esses votos, ou parte deles, fossem revertidos na eleição seguinte para quem seria, em alguma medida, seu herdeiro natural. Nada disso foi feito somente no campo ideológico ou da disputa política em si, mas no campo (e contra) as leis. Fossem outras as circunstâncias, tivesse o Partido dos Trabalhadores mais peito, o “grande acordo nacional” estaria jogando o País em um processo que poderia encaminhar uma guerra civil.
Brincou-se e ainda se brinca com fogo, e é precisamente a sandice com a qual avançaram contra o Partido dos Trabalhadores que deve nos trazer desconfiança frente à decisão do ministro Edson Fachin, que na última segunda-feira (8) anulou as condenações contra Lula nos processos da Lava Jato.
A mais simples das hipóteses para explicar a súbita decisão de Fachin de que as ações penais contra Lula na Lava Jato não competiam à 13ª Vara Federal de Curitiba, e também a mais acertada, foi dada por Rafael Mafei em artigo na Piauí: “Ao fazer desaparecer todas as ações penais contra Lula, a decisão de Fachin implicou a perda do objeto de todas as contestações movidas por sua defesa contra as condutas dos procuradores, de Moro, dos desembargadores do TRF-4 e dos ministros do STJ. A não ser que a Procuradoria-Geral da República consiga reverter a decisão em recurso aos órgãos colegiados do Supremo, Lula está completamente livre e desimpedido. Em consequência, os quinze habeas corpus que ele ajuizou no STF, contra atos de diversas autoridades das instâncias inferiores, perdem razão de ser se a decisão de Fachin for mantida. Serão arquivados, sem julgamento — inclusive o HC 164.493, onde a suspeição de Moro foi arguida.”
O zigue-zague do novelo histórico que uniu o juiz de Curitiba ao ex-presidente, assim, tem um desenrolar irônico: Moro fez seu nome por meio das tramoias que puniram Lula; tramoias demonstradas, é por meio da anulação da condenação que, agora, tentou-se absolver o juiz. O julgamento foi retomado no dia 9 pela Segunda Turma do STF, mas encontra-se adiado após o ministro Nunes Marques pedir vista.
2022: logo ali?
A decisão do ministro Edson Fachin reorganiza os cenários até então traçados e tem efeitos imediatos para todos os atores políticos. Primeiro, ela impõe aos inimigos de Lula, seja de que tipo forem, a necessidade de darem uma “solução ao problema político”, como disse o vice-presidente-general Hamilton Mourão certa vez. As vias da ação são muitas, inclusive jurídicas, já que a decisão de Fachin somente envia os quatro processos referentes ao triplex, ao sítio de Atibaia e ao Instituto Lula para reanálise. Além da possibilidade desses processos serem retomados com celeridade, como pede a Folha de São Paulo, há ainda outros quatro processos em que Lula atualmente é réu, referentes aos caças Gripen, à MP das Montadoras, às obras da Odebrecht em Angola e ao chamado “Quadrilhão do PT”. A tendência é que a ação seja ainda mais audaz dessa vez, tendo em vista que a primeira incursão, realizada entre 2016-2018, quase não enfrentou oposição – o PT fez tudo o que os golpistas desejariam, isto é: nada. A esperança desmobilizadora de uma grande redenção com a “volta de Lula” é, portanto, uma ingenuidade nas raias da senilidade, semelhante àquela que governou o petismo e boa parte do campo da esquerda em 2016.
Lula, por sua vez, tenderá a apresentar uma face mais conciliadora. Mirando 2022, deve se aproximar mais do centro, espaço que por natureza não poderá ser ocupado por Bolsonaro, mas que será disputado por figuras diversas da direita – de João “Bolsodória” Dória a Luciano Huck, passando por Mandetta, Rodrigo Maia e Moro. Também na atual conjuntura essa deve ser a postura do PT: se o partido não agiu muito nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro e impôs a inércia a si próprio até quando era dilapidado, agora é que não apresentará muita resistência. A tendência é que siga na oposição parlamentar e tente contrastar com Bolsonaro mais no campo simbólico, recorrendo ao mesmo tempo a um discurso sobre a necessidade de um “novo pacto”. Confirmando-se esses dois cenários – a audácia da direita e a inércia petista – não deve haver Lula em 2022.
Por fim, um efeito perigoso: a elegibilidade de Lula cria um certo tensionamento que tende a unificar mais as posições do Partido Fardado, à medida que pequenas rusgas tendem a aparecer entre o presidente e o Centrão. Nas décadas de 50 e 60, por exemplo, não seria incomum encontrar no Exército dispostos oradores apontando a continuidade do fantasma getulista em “Gregórios” – em referência a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas – que incluíam figuras desconformes como Juscelino Kubitschek, João Goulart, Teixeira Lott, e acabariam por abranger até mesmo um insuspeito Jânio Quadros. Com a decisão de Fachin, o fantasma lulista – falariam os militares em “Dirceus”? – volta a assolar a conjuntura, podendo servir de arrimo às diatribes fardadas, algumas vozes já ecoando que “aproxima-se o ponto de ruptura”. Por ora são só palavras, mas a decisão de Fachin reforça o campo discursivo de um “perigo sempre à espreita” com o qual os militares sempre lidaram para gestar golpes.
E se for?
No improvável cenário sonhado pelos mais otimistas, no qual se permite que as eleições de 2022 ocorram em normalidade e Lula possa ser candidato – a presidente ou a vice, a forma da chapa pode influir nos resultados –, é bom afirmar que as condições serão diferentes das de 2018, e não só pela presença do ex-presidente.
Bolsonaro, como venho insistindo, é filho da fortuna. Herdou da direita tradicional todas as premissas pelas quais impuseram a derrota ao Partido dos Trabalhadores entre 2016 e 2018, e representou-as radicalmente; foi premiado, enquanto partidos como o PSDB desapareciam. No governo, porém, transformou-se ele mesmo em uma ameaça. Não conformou bases novas, abandonou seu antigo partido (e foi abandonado por boa parte dele), perde popularidade continuamente, ainda que a passos lentos, e pulverizou sobre tudo isso um odioso licor viral. A não ser que consiga, nos próximos dois anos, reverter os abomináveis efeitos da sua gestão da pandemia – que incluem os efeitos econômicos, tema que o presidente não dominava em 2018, mas que não tira mais da boca desde a aparição do coronavírus – e que inclua a esse incrível milagre alguma medida excepcional, como a distribuição de um auxílio às portas da eleição, não terá mais do que o apoio de ⅓ do eleitorado no primeiro turno das eleições de 2022, podendo alcançar muito menos.
Se o presidente acabar por enfrentar um outro candidato de direita no segundo turno, que demonstre étiquette ao comer da mesa do povo e varrer as migalhas ao chão, a tendência é que seja derrotado. Mas, com uma eleição “limpa”, em que Lula seja candidato, esse cenário é improvável – uma razão mais para que o movimento persecutório contra o ex-presidente seja impetuoso.
Um segundo turno entre Bolsonaro e Lula é um todo nebuloso. É difícil imaginar que as forças da “direita moderada” e seus eleitores fiéis prefiram o ex-operário ao ex-capitão, mesmo num cenário terrível como o que devemos viver em 2022 (e mesmo tomando em conta que, como o próprio Lula reconheceu em seu discurso, seus governos nunca constituíram arremetidas contra os interesses da burguesia). Em uma pesquisa Ipec divulgada na semana passada, 50% dos entrevistados disseram que poderiam votar ou votariam com certeza em Lula, e sua rejeição foi de 44%. Bolsonaro tem 38% de possíveis votos, e uma rejeição de 56%. Outras pesquisas dessa semana, no entanto, indicam cenários diferentes. 42% dos entrevistados da pesquisa Exame Invest Pro disseram que não votariam em Lula de jeito nenhum, contra 38% que não votariam em Bolsonaro. Há ainda um outro fator: como a elegibilidade de Lula seria vista pelo eleitorado. Na pesquisa XP/Ipespe, 52% dos entrevistados desaprovaram a extinção das condenações, e 40% a aprovaram. Na Exame Invest Pro, 54% contra 33%. Ironicamente, depois de ser punido para não ser eleito, nas urnas Lula pode ser punido por ser elegível.
No mais, restam as ameaças insurgentes. Agora que as manchetes reconhecem o atrevimento de Villas Bôas e as promessas de Toffoli, se perguntar como se comportariam Bolsonaro e o Partido Fardado frente a uma vitória de Lula não é mais questão para desorientados. Sobre estas forças e para todo o cenário nebuloso, a velha maquiaveliana serve de orientação: “[Assim] acontece com a fortuna; o seu poder é manifesto onde não existe resistência organizada, dirigindo ela a sua violência só para onde não se fizeram diques e reparos para contê-la”. Quem se acomoda se arruina.