Depois de anos incensando os “freios e contrapesos” que, funcionando normalmente, garantiriam a normalidade institucional, e semanas após se dividirem em um comportamento simultaneamente atônito e normalizante para explicar ao público a coluna de tanques que, sob ordens presidenciais, entregou uma carta em Brasília, os jornalões mais uma vez fazem o exercício costumeiro de oscilar entre a euforia institucional e a perspectiva de uma derrota armada ao tratar das manifestações marcadas para o próximo 7 de setembro.
Quem acompanhou a movimentação midiática percebeu o tom escandaloso e desesperado da semana passada, com colunistas, jornalistas e editoriais anunciando o “golpe de Bolsonaro”, marcado para o feriado da independência – quer como ensaio, quer como fato consolidado.
A “travessia do Rubicão”, referência ao rio transposto pelo exército de Júlio César na sua entrada em Roma, foi o chavão preferido de uma série de artigos. No mais picaresco deles, Ricardo Lewandowski, ministro do STF, dá o recado de que “intervenção armada é crime inafiançável e imprescritível”. O artigo do ministro, segundo a Folha, colheu elogios reservados no Supremo e, no Congresso, há a expectativa de que tenha servido para fazer Bolsonaro recuar. Cá estão as armas dos que querem impedir as modernas legiões de César: a anunciação de princípios constitucionais. Talvez valha recordar que César triunfou, que a sorte que lançara se assentava na força – e portanto não era propriamente sorte – e que sua ditadura só chegou ao fim pelo punhal de Brutus e seus conjurados, não por palavras.
A lógica do golpe de Estado não é simples, porque depende, no mínimo, de um forte elo de lealdade entre os golpistas durante sua preparação e movimentação. No entanto, se a expectativa de resistência é nula, isto é, se o golpista mede o campo com contínuas provocações e não tem resposta, esse elo não é mais necessário – certamente, afinal, não haverá resistência à força, já que não houve frente as palavras.
Um golpista só pode anunciar-se tão livremente se, de fato, o que tem como expectativa para o futuro e o que guarda na recordação pretérita é a inação de seus inimigos e a cumplicidade de outros. Neste caso, Bolsonaro está em perfeito acordo com a realidade: este 31 de agosto marca cinco anos desde que Dilma Rousseff foi golpeada e apeada do governo, com a complacência absoluta dos que agora se excitam frente a Bolsonaro e o imobilismo rigoroso de seu próprio partido – que, cinco anos depois, também calcula mais com a monotonia da paciência frente ao tempo do que com a energia dos braços em relação à força.
Os corajosos jornais e os bravos magistrados apontam também, receosos, para o perigo da chamada “infiltração bolsonarista” nas polícias – o que significa simplesmente que os costumes policiais encontraram uma expressão institucional carismática. No entanto, nada ou quase nada fizeram em todos os momentos em que o perigo, agora anunciado, se manifestou. A rebelião de policiais no Ceará, por exemplo, passou incólume, com o apoio de figuras-chave do governo como o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro. Mais grave ainda: os militares, sem os quais qualquer aventura policial não poderia frutificar, força de sustentação última tanto do golpista quanto do institucionalista, também pintam e bordam há anos sem que sejam punidos, desde a intervenção no Rio e a recriação de um superpoderoso Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante o governo Temer, até a ameaça aberta de Villas Bôas ao STF. Prender tocadores de berrantes, pseudojornalistas e líderes partidários vivendo transtornos delirantes pode ser coisa útil para impedir um golpe, mas não quando são só a franja de um fenômeno cujo centro é seguramente verde-oliva.
Nos últimos anos foi permitido ao Exército, que não é um poder constitucional, arrogar para si, pela ameaça, tal posição. Como os poderes constitucionais não impuseram barreiras e limites, e por vezes se tornaram de fato sócios da empreitada, consolidou-se tal situação não de um quarto poder, mas de um único acima de todos os outros – do qual, seja para rasgar a Constituição, seja para preservá-la, todos os outros são dependentes. Por isso a insistência desta revista com o Exército, não em aloprados policiais golpistas: sempre haverá conjuras – como lembrou Maquiavel – o que importa é que forças estão à disposição para lhes resistir.
Não se pode também esquecer de outra nota que impressiona pela coragem: a dos banqueiros e empresários. O manifesto foi pensado para “ter linguagem muito neutra, justamente para atrair o maior número de adeptos que estão preocupados com a escalada de tensões entre os Poderes”, informam os jornais. O resultado é um manifesto que afirma, do alto de um panteão: “Mais do que nunca, o momento exige do Legislativo, do Executivo e do Judiciário aproximação e cooperação. Que cada um atue com responsabilidade nos limites de sua competência, obedecidos os preceitos estabelecidos em nossa Carta Magna. Este é o anseio da população brasileira”. É verdade que a burguesia não apostaria, a priori, em um golpe de Bolsonaro, e que prefere viabilizar a chamada “terceira via” para 2022; mas são suas próprias palavras que expõem quantas palhas estariam dispostos a mover contra ele caso apostasse na força.
Bolsonaro está acuado, mas mantém sua base ativa e mobilizada, ao contrário do que fez o petismo em 2016. Um golpe não depende somente de sua vontade – que não vale tanto, apesar de ser grande –, nem da vontade dos militares – que, também ampla, vale muito –, mas da interação destes dois atores com os outros e entre si, incluindo o Legislativo, o Judiciário, os governadores, a burguesia e os trabalhadores. Neste caso, nunca é demais lembrar que, durante um golpe, é de se esperar que a maior parte dos atores se mantenha inerte, esperando para decidir com mais segurança quem será o vencedor. Se não há resistência, a decisão já está feita de antemão.
Ao jogar suas bases com força nas ruas, Bolsonaro não garante sua permanência, nem seu poder, muito menos um golpe; mas garante uma posição em que várias opções táticas se mantêm abertas para si, obrigando os outros atores a lidarem de acordo ou em resposta a seus movimentos. Não é um blefe – aliás muito mal compreendido por esses tempos, porque um blefe sempre tem por trás de si alguma substância e intenção –, tampouco data marcada para uma ruptura. Se o presidente conseguir mobilizar sozinho uma massa de seus apoiadores em grandes manifestações, aumenta sua segurança e margem de manobra frente a aliados e inimigos, podendo dobrar suas apostas; se enfrentamentos e tragédias se desenrolarem, abre também uma série de possibilidades para si – incluindo a convocação de uma GLO; se uma turba de seus apoiadores invadem o Congresso ou o STF, também assegura uma nova situação, um tanto caótica, mas na qual tem preponderância – seriam seus apoiadores dentro dos prédios governamentais. O Exército os tiraria de lá?
Essas vielas táticas abertas para si também abrem escolhas para seus parceiros militares, que em última instância mantêm a possibilidade de preferir prolongar sua presença na política com ou sem o presidente. O fundamental é precisamente manter esse clima de incerteza de fato, uma situação em que se conserve a possibilidade da opção para si e a impossibilidade para os outros. Perdendo popularidade e tendo restritos seus movimentos na esfera institucional, Bolsonaro conserva a iniciativa de mobilizar – o que é bastante frente a políticos e juristas que crêem que as próprias palavras são espadas, e uma centro-esquerda que tem se esforçado para conter as mobilizações, apostando em uma futura vitória eleitoral, como se esta fosse um canhão.
Daí a necessidade de todos irem às ruas no 7 de setembro, demonstrando força contra Bolsonaro e os militares sem, no entanto, cair nas provocações que certamente serão incentivadas, e mantendo-se atentos às possíveis arapucas postas.