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Frei Betto: Trump e a ameaça do supremacismo branco

A vitória de Trump significaria um mundo sob o governo do supremacismo branco, com um deus criado à imagem e semelhança de seus propósitos imperialistas

Frei Betto
(Washington, DC – EUA 19/03/2019) O Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Sou branco, embora com DNA negro e indígena. E tenho dúvidas se o meu inveterado otimismo, reforçado pelo fator ressurrecional de minha fé cristã – de que a vida prevalecerá sobre a morte – resistirá aos indícios de barbaridade que identifico na atual conjuntura mundial. 

Alivia-me o fato de não ter gerado descendentes, tal o temor que, hoje, nutro pelo futuro da humanidade. Assino embaixo o epílogo de Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881): “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

Se tivesse que indicar um único fator do atual desarranjo global, eu apontaria o supremacismo da elite branca. Não tanto por condição de classe, e sim de espírito. 

Conheço pessoas pobres imbuídas da síndrome de elitismo. Todo o Brasil viu, no governo Bolsonaro, um presidente da Fundação Palmares, negro, manifestar preconceito à sua própria etnia. Em setembro de 2021, ele criticou o movimento negro, negou que o Brasil seja um país racista e defendeu que o crime de racismo deve ser aplicado também para quem ofende pessoas brancas. “Sou o terror dos afromimizentos, da negrada vitimista, dos pretos com coleira. Não tenho medo deles”, declarou em um evento em Brasília voltado ao público conservador organizado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP).

O elitismo racista se caracteriza por acentuada aporofobia, a aversão aos pobres. A pessoa vive de aluguel, carrega uma penca de dívidas, rala para pagar as contas, mas abomina quem se encontra desempregado ou vive em situação de rua. Por ter amizades em situação melhor que a dela, julga-se classe média rumo à ascensão social. Envergonha-se de sua real situação e se alia aos alpinistas da pirâmide da desigualdade. 

Trump é, hoje, o guru dessa gente. Ele usa metáforas como “imigrantes” para vomitar seu preconceito aos estrangeiros atraídos pelo “sonho americano”, embora sua terceira esposa, Melania Knauss, tenha nascido na Eslovênia. Esperto o suficiente para não ser acusado de racista e perder votos dos eleitores negros, é óbvio que a sua América é a dos “Wasp”: sigla em inglês para “brancos, anglo-saxões e protestantes”. Os racistas estadunidenses desprezam os católicos predominantemente descendentes de italianos e irlandeses.

A ideologia trumpista é a Destino Manifesto, a convicção de que o modelo estadunidense de vida deve ser levado a todos os povos. Trump é o Capitão América, personagem de histórias em quadrinhos criada em 1941, em plena Segunda Grande Guerra, para inflar o orgulho das tropas dos EUA contra as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Ele opera prodígios e escapa de todas as ciladas preparadas por seus inimigos.

Trump se destaca como candidato presidencial acolitado por J.D. Vance, apontado como modelo de meritocracia por ter nascido em uma família interiorana de poucos recursos e se tornado rico e famoso. Sua mulher, Usha Chilukuri Vance, é filha de imigrantes. Essa rasteira ideologia estadunidense, de que o sol da prosperidade brilha para todos e basta saber alcançá-lo, como se não houvesse luta de classes, me lembra a “Reader’s Digest”, revista conhecida no Brasil de minha infância como “Seleções”, repleta de artigos centrados em convencer o leitor da supremacia dos EUA e de como tantos famosos nascidos na pobreza se tornaram exitosos magnatas. 

Vance, o vice de Trump, na convenção do Partido Republicano se gabou da avó, que tinha em casa 19 armas “para proteger a família”. Meus Deus! Quando se poderia imaginar que manter um arsenal em casa pudesse ser motivo de orgulho para um político! 

Os EUA são uma nação bélica. Abriga apenas 4% da população mundial e, no entanto, sua população civil tem em mãos 393 milhões de armas – 40% de todas as armas em circulação no mundo. 

Assim como o guru de Bolsonaro era o suposto filósofo Olavo de Carvalho, o de Vance é o cientista político Patrick Deneen, da Universidade Notre Dame. Católico fundamentalista, se tornou conhecido a partir de 2018 ao lançar o livro “Por que o liberalismo fracassou”, no qual propõe uma sociedade centrada nos valores religiosos e restrita a pequenas comunidades, sistema conhecido como “localismo”, que se opõe à globalização.

Admirador do premiê húngaro Viktor Orbán (amigo de Trump), de extrema-direita, Deneen sugere imitá-lo no controle ideológico das universidades, vetando ideias identitárias, ecológicas, sexistas e marxistas. E apoia o serviço militar e civil obrigatório para todos os jovens. 

Deneen defende ainda que foi um equívoco integrar as mulheres no mercado de trabalho. Elas eram mais felizes quando se mantinham na posição de rainhas do lar…

É espantoso ver milhões de eleitoras estadunidenses fanáticas pela dupla Trump-Vance. Em março de 2023, Trump foi indiciado por ter feito pagamentos clandestinos a uma estrela de cine pornô, o famoso “cala boca”. E em maio do mesmo ano, condenado por um júri de Nova York como culpado de abuso sexual e difamação contra a escritora Elizabeth Jean Carroll, a quem teve que pagar 5 milhões de dólares. 

Quando a cabeça se impregna de fanatismo, os olhos ficam cegos. 

Um dos fatores que mais contribuem para o fundamentalismo é a religião, que se baseia na fé, embora a teologia exija apoiar a crença na razão e não ceder ao fideísmo, a convicção de que a fé prescinde da razão e da ciência.    

Sem dúvida, como vimos aqui no Brasil ao longo do governo Bolsonaro, e ainda hoje em muitas candidaturas aos governos municipais, Deus será evocado como cabo eleitoral de inúmeros candidatos.

Pesquisa feita pela Reuters/Ipsos revela que 65% dos eleitores republicanos atribuem a uma intervenção divina a sobrevivência de Trump ao escapar do atentado que lhe feriu a orelha… A vitimização martirial de um candidato sempre ajuda a alavancar sua eleição. 

Embora ocorram sintomas apocalípticos em decorrência do desequilíbrio ambiental, como secas prolongadas e inundações diluvianas, Trump defende abertamente descartar energias limpas e priorizar o uso de combustíveis fósseis. 

Tudo indicava que a dupla Trump-Vance seria eleita em novembro. A partir de 20 de janeiro de 2025, o mundo estaria sob o governo do supremacismo branco, racista, misógino e religioso. Um deus criado à imagem e semelhança de seus propósitos imperialistas. Ocorre que a renúncia de Biden a um segundo mandato e a indicação de Kamala Harris, mulher e negra, como candidata do Partido Democrata, agora obriga Trump a pôr as barbas de molho…

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Jesus rebelde” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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