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A ideologia da Inteligência Artificial

A difusão da Inteligência Artificial corresponde a um projeto ideológico dos senhores da tecnologia, que vendem a ideia de que humanos são só computadores orgânicos

João Camargo
Inteligência Artificial
Assim como as vacas dos anos 90 adoeceram quando foram alimentadas com farinha de ossos e carne de outras vacas, as “inteligências artificiais” também estão se autodegenerando à medida que são programados a partir dos dados da própria Internet, onde já existem tantos dados produzidos por outros modelos linguísticos, especialmente o ChatGPT, que os erros podem se acumular até se tornarem incompreensíveis. (Foto: Pavel Danilyuk / Pexels)

Há mais de oitenta anos que se desenvolvem modelos de informatização e automatização. Um certo sentido do ridículo fez com que a maioria das pessoas envolvidas nestes desenvolvimentos evitassem chamá-los de “Inteligência Artificial” ou IA. Em consonância com o espírito do nosso tempo, os novos tecnolordes Musk, Thiel, Zuckerberg e Bezos investiram centenas de milhões nas redes sociais, no mundo acadêmico e na imprensa para promover o alvoroço da “Inteligência Artificial” e para normalizar esta expressão. Mas o seu projeto ideológico não é inovador.

A IA é, fundamentalmente, uma máquina de síntese de texto (e, em menor grau, máquinas de análise e classificação de imagens e padrões para carros “autônomos” e deepfakes). Essas máquinas são incapazes de produzir novas informações, não “pensam” sobre o que estão escrevendo, usando apenas a probabilidade do que será escrito a seguir, de acordo com os bancos de dados com os quais foram programadas. Portanto, não há uma consciência iminente ou uma nova entidade que queira nos destruir como o Exterminador do Futuro de James Cameron. O que temos é propaganda, cujo objetivo principal é acelerar demissões, alimentar a especulação financeira e desviar investimentos e recursos para uma nova fuga adiante das elites econômicas e políticas.

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A principal ilusão da IA para o grande público nem sequer são as probabilidades que constroem textos e listas geralmente coerentes, mas a fase de melhoria das respostas, uma nova camada de tinta que produz uma linguagem quase humana. Chamam-lhe “Inteligência Artificial”, mas o seu verdadeiro nome é Modelo de Linguagem em Grande Escala. Os modelos mais famosos são ChatGPT, Claude, Gemini, DeepSeek e MechaHitler (Grok).

Tendo em conta o estado desastroso da informação na Internet hoje em dia, os modelos linguísticos já estão sofrendo uma espécie de doença das vacas loucas. Assim como as vacas dos anos 90 adoeceram quando foram alimentadas com farinha de ossos e carne de outras vacas, os modelos linguísticos também estão se autodegenerando à medida que são programados a partir dos dados da própria Internet, onde já existem tantos dados produzidos por outros modelos linguísticos, especialmente o ChatGPT, que os erros podem se acumular até se tornarem incompreensíveis. Assim como a doença das vacas loucas contaminou os humanos, a IA está definitivamente nos contaminando.

As promessas feitas por tecnocratas e políticos que seguem o alvoroço das IAs são, em geral, falsas – tanto as boas quanto as ruins. Os modelos linguísticos não vão acabar com a humanidade, nem substituir as tarefas essenciais das sociedades e acabar com o trabalho inútil. Na verdade, já estão gerando trabalho precário, mal remunerado e oculto, entre outras coisas, por parte de pessoas que têm de verificar se as respostas dadas pelos modelos estão numa linguagem educada para não serem como o MechaHitler de Elon Musk, apelando ao genocídio dos judeus e à violações em massa. Isso não significa de forma alguma que já não existam milhões de pessoas demitidas pelo furor de que o ChatGPT ou outro modelo linguístico as substitua. Muitas são recontratadas por salários menores pouco tempo depois.

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Os modelos linguísticos atuais não produzem conhecimentos além do que já contêm as bases de dados que os programaram. Agora vemos negacionistas do clima afirmar que os modelos linguísticos resolverão a crise climática, mas isso é redundante. Modelos baseados em textos científicos e em décadas de negociações sobre o clima sabem como resolver a crise climática, o que é de conhecimento público há décadas: acabando com a indústria fóssil rapidamente. Modelos baseados em pseudociência e em conteúdos aleatórios retirados da internet vomitarão lixo como resposta. Se o que entra na programação dos modelos é ruim, o que sai só pode ser ruim. A questão não é uma IA ser inteligente demais e nos aniquilar; a questão é que não há inteligência envolvida.

Ainda assim, os modelos linguísticos começam a ser utilizados de forma generalizada, com algoritmos desconhecidos e privados, gerindo quantidades enormes de dados. É garantido que haverá interpretações erradas dos dados e pedidos que causarão danos irreparáveis (na saúde, nos dados criminais, nos sistemas energéticos, na atribuição de ajuda social, como já aconteceu em vários países). Não haverá ninguém a se culpar pelas consequências, uma vez que os multimilionários que difundem a IA externalizam sua responsabilidade em tudo isso com o apoio das elites políticas.

A difusão de modelos linguísticos em grande escala corresponde a um projeto ideológico dos senhores da tecnologia, que vendem a ideia de que os seres humanos não são mais do que versões orgânicas dos computadores, reduzidos estritamente ao que podem produzir. No capitalismo, a principal promessa da IA que conta é a possibilidade abstrata de tornar redundantes ou desnecessários uma série de empregos. Na realidade, não se trata nem mesmo de torná-los redundantes ou desnecessários, mas simplesmente de criar a ilusão de que eles podem abrir a porta para a demissão de milhões de pessoas, sem sequer ter que demonstrar como a IA substituiria essas pessoas. É o eterno retorno ao “aumento da produtividade”, substituindo teoricamente a mão de obra pela tecnologia. Para instalar esse projeto ideológico em grande escala, seria necessário normalizar o roubo generalizado de dados e o fim da privacidade, com sistemas de vigilância e punição permanente para os mais pobres. Isso não tem nada a ver com um grande avanço tecnológico ou com qualquer bobagem de conscientização global; a proposta é a de sempre: enriquecer os ricos às custas de quem trabalha.

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A magnitude do projeto ideológico baseado na “Inteligência Artificial” é catastrófica: substituir centenas de milhões de pessoas que trabalham na saúde, educação, justiça, ciência, artes, serviços públicos e imprensa pela vaga promessa de uma automação que permita demissões em massa. Este projeto ideológico implicaria também uma expansão maciça dos centros de dados e das infraestruturas de rede, aumentando as necessidades energéticas e materiais em plena crise climática. Aos tecnocratas e aos políticos iludidos que os apoiam, pouco importa se os modelos linguísticos de IA não conseguem substituir a maioria dos empregos que pretendem destruir. Os médicos dos senhores da tecnologia continuarão sendo pessoas, assim como seus professores, advogados e serviços de informação. Para a maior parte da população mundial, o que se pode esperar de um projeto como esse seria mais pobreza e uma degradação incomparável de todos os serviços públicos e privados, entregues a papagaios automatizados construídos com bancos de dados contaminados por outros papagaios automatizados.

(*) João Camargo é pesquisador da crise climática e militante da Climáximo.

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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