Em 1901, o banqueiro e militar venezuelano Manuel Antonio Matos lançou, com o apoio da Compañia Francesa de Cables Telegráficos (França), da Ferocarril Alemán (Alemanha) e das norte-americanas New York & Bermúdez Company e Orinoco Steamship Company, um movimento militar com o objetivo de derrubar Cipriano Castro da presidência da Venezuela.
No centro do conflito, os interesses de banqueiros norte-americanos e europeus, que insistiam que o país pagasse suas dívidas. O diplomata alemão Theodor Von Holleben, por exemplo, enviou ao secretário de Estado norte-americano John Hay um informe sobre uma dívida venezuelana com o banco alemão Disconto-Gesellschaft no montante de 33 milhões de bolívares. O presidente venezuelano se negava a reconhecer a dívida, que seria na verdade cinco vezes menor.
Por quase um ano, a chamada Revolução Libertadora de Matos se enfrentou com o Governo Restaurador de Castro, que acabou vitorioso, às custas de milhares de vidas. Derrotados, era a hora dos interesses internacionais passarem à intervenção direta.
Em 1902, navios de guerra alemães, ingleses e italianos bloqueiam os portos venezuelanos, exigindo o pagamento das dívidas – em especial aquelas contraídas para a construção da rede ferroviária no país – e, para tanto, bombardeando as costas do país e saqueando povoados. Cipriano Castro volta-se aos Estados Unidos, exigindo que o presidente Theodore Roosevelt agisse, mediando o conflito, em conformidade com a Doutrina Monroe.
Anunciada em 1823 pelo presidente norte-americano James Monroe, a Doutrina Monroe tinha como premissa apresentar os EUA como defensor de um continente frente às tentativas europeias para submetê-lo. Em muitos países da América Latina, era vista com otimismo; Colômbia e Argentina, por exemplo, solicitaram a proteção norte-americana algumas vezes. O ministro chileno Diego Portales (1793-1837) era mais receoso. “Nós devemos tomar muito cuidado: para os americanos do norte, os únicos americanos são eles mesmos”, dizia. Mas, à época, os norte-americanos eram de preocupação menor: eram os países europeus, as maiores potências coloniais daqueles tempos, que faziam as veias abertas pulsar e derramar sangue.
Cipriano se punha em meio de dois blocos, tentando avistar a liberdade por suas brechas. Mas Portales estava certo: americanos, todos – mas uns mais que os outros. O presidente Theodore Roosevelt, que considerava Castro “um macaquinho indescritivelmente vil” e que já havia declarado que “se qualquer país sul-americano se portar mal frente a um país europeu, que o país europeu o espanque”, lavou suas mãos, e a surra começou. Cipriano Castro foi forçado a aceitar um acordo no qual o país comprometia 30% de seus direitos aduaneiros de seus principais portos para o pagamento dos credores, em troca do fim do bloqueio. Em troca, os europeus se retiravam.
Esse episódio teve especial importância para a mensagem ao Congresso do presidente norte-americano em 1904, no qual ficava consolidado o Corolário Roosevelt (ou Política do Grande Porrete – Big Stick Policy, assim chamada a partir do provérbio africano “fale manso, mas sempre com um porrete em mãos.”) Com o Corolário, ficava definido, de maneira mais concreta, o que a Doutrina Monroe afinal significaria 80 anos depois, quando o poderio dos Estados Unidos já crescia, junto de sua frota naval: “Não é verdade que os Estados Unidos sentem qualquer fome de terra. […] Tudo o que este país deseja é ver os países vizinhos estáveis, ordeiros e prósperos. Qualquer país cujo povo se conduza bem pode contar com nossa amizade sincera. […] [Mas] irregularidades crônicas, ou uma incapacidade que resulte num afrouxamento geral dos laços da sociedade civilizada, podem em última instância exigir, na América como em outro lugar, intervenção por alguma nação civilizada, e no Hemisfério Ocidental a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode forçar os Estados Unidos, ainda que com relutância, em casos flagrantes de tais irregularidades ou incapacidade, ao exercício de um poder de polícia internacional.” De protetores contra os hegemons europeus, os Estados Unidos passaram a proclamar – e a garantir – sua hegemonia regional. Era óbvio: o pan-americanismo não buscava isolar opressores e abraçar aliados, mas isolar competidores, na busca de novos escravos.
O general Juan Vicente Gómez, vice de Castro, assume a presidência no ano de 1908, enquanto Cipriano embarca para a Europa, para tratar da sífilis que o acometia e que havia agravado sua saúde. Essa viagem é aproveitada por Gómez, que com um movimento apoiado pelos EUA, França e Países Baixos dá um golpe de Estado em 19 de dezembro. Goméz lideraria uma ditadura – com fachada constitucional e democrática – durante 27 anos. O “César democrático” usou da nascente indústria petroleira do país para pagar a dívida externa, orbitando – principalmente por conta do petróleo – em torno dos Estados Unidos. A dependência era tamanha que partes da Lei do Petróleo de 1922 foram escritas por companhias petroleiras estrangeiras. O pagamento das dívidas, com o petróleo, afastava os europeus. Mas sua produção atiçava e aproximava os norte-americanos.
A hegemonia regional
Se nos tempos de Monroe havia líderes latino-americanos buscando consolidar alguma independência navegando pelas brechas de duas grandes rochas, a virada do século ficava marcada por um mapa de ação em que qualquer respiro se encontrava em torno de um só rochedo, ao redor do qual se podia orbitar ou ser esmagado. Os encouraçados do Irmão do Norte serviam para espantar europeus, mas também para subjugar latinos.
Em 1903, por exemplo, após o Senado colombiano recusar-se a aprovar o Tratado Hay-Herrán, que concedia aos norte-americanos o domínio sobre as terras na zona do Canal do Panamá, Manuel Amador e seus rebeldes panamenhos, estimulados por Roosevelt, proclamaram a independência do Panamá. Quinze dias depois, os EUA conseguiam do novo governo o tratado necessário para a construção do canal.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos se projetavam para o mundo, exibindo seu poderio naval. Em 1909, uma esquadra de guerra da Marinha dos EUA, composta por 16 encouraçados, deu a volta ao mundo, saindo de Hampton Roads e passando por Brasil, Argentina, Peru, México, Havaí, ilhas Samoa, Nova Zelândia, Austrália, Filipinas, Japão, China, Sri Lanka, Egito, Argélia, Grécia, Líbano, Turquia, Marrocos, França e Itália. “Reconhecida pela sociedade internacional, a emergente Marinha dos EUA dançaria uma valsa conduzida pelo balanço do mar, como a debutante que, de branco, exibe diante do público que está preparada (e armada!) para ingressar no mundo daqueles que já alcançaram a maturidade”, escreveu Luigi Bonafé.
Após a aprovação, em 1907, de um tratado que tornava ilegal o uso de força militar para a cobrança de dívidas, os EUA passaram a revisar alguns de seus métodos – o que não implicou em um fim do intervencionismo norte-americano na América Latina. O presidente republicano William Taft, sucessor de Roosevelt, foi responsável pela virada, que deixava de lado as intervenções como forma preferencial de resolver cobranças de dívida, implicando na “Diplomacia do Dólar”. O movimento consistia em incentivar bancos dos EUA a comprarem dívidas de países do Caribe e América Central com credores europeus, além de aumentar sua penetração na China.
Cunhando moedas de sangue
O senador republicano liberal pelo Estado de Nebraska, George W. Norris, proclamou um discurso no dia 4 de abril de 1917, no qual dizia: “Estamos indo à guerra sob o comando do ouro. Nós vamos arriscar sacrificar milhões de vida de nossos compatriotas para que outros compatriotas possam cunhar sua força vital em dinheiro”.
Com cerca de 20 milhões de mortes, muito sangue foi vertido, de fato, nas trincheiras da Primeira Guerra. Mas muito dinheiro era também cunhado. De acordo com Moniz Bandeira, em “Formação do Império Americano: Da guerra contra a Espanha à Guerra contra o Iraque”, as exportações de aço dos EUA durante a guerra quadriplicaram. As de munição foram de 40 milhões de dólares para 330 milhões. Os explosivos exportados, em 1914, eram da ordem de 60 milhões de dólares – entre 1916 e 1917, eram de 1,7 bilhão. A empresa norte-americana DuPont havia suprido, sozinha, dois quintos da munição usada pelos países da Entente, testemunhando nas suas ações de mercado um salto que foi de 20 dólares, em 1914, para mil dólares, em 1918.
Quando o armistício pôs fim à guerra, em 1918, havia 21 mil novos milionários nos EUA. Dos 20 milhões de mortos ao final da guerra, somente 116 mil eram norte-americanos, num fato que corrigia a declaração do senador Norris: cunhava-se dinheiro com força vital, sim, mas não com a de seus compatriotas. Por outro lado, quatro impérios estavam completamente arruinados ao fim da guerra: o alemão, o russo, o austro-húngaro e o otomano. E os poderes aliados haviam acumulado uma enorme dívida com os EUA, de forma que o país logo se transformou, de devedor, para credor da Europa. Em 1914, os EUA deviam à Europa entre 4 e 5 bilhões de dólares. Em dois anos, liquidaram a dívida, e em 1918 já haviam concedido créditos no montante de 25 bilhões de dólares.
À guerra seguia a partilha. No Oriente Médio, Palestina e Iraque ficavam sob mandato inglês, e Síria e Líbano sob o francês, que se apossaram também de colônias alemãs na África. O Japão e a Itália também participavam a partilha. Mas a América Latina ficava livre da divisão. Assim, conservava-se a América Latina e o Caribe como protetorado norte-americano.
Duas décadas depois, em 14 de abril de 1939, o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt enviou um telegrama a Hitler, manifestando sua preocupação com uma nova guerra e solicitando a garantia de não-agressão, por 10 anos, a 31 países. Hitler respondeu duas semanas depois, dizendo que se Roosevelt tinha tanto interesse em saber de suas intenções na Europa, ele também queria saber quais eram as intenções dos EUA em relação aos países da América Latina. E, evocando a Doutrina Monroe, disse que “nós alemães sustentamos doutrina similar para a Europa – sobretudo para o território e para os interesses do Grande Império Alemão.”
A guerra de fato viria. E, com ela, “Roosevelt colimava, simultaneamente, alguns objetivos: esmagar a Alemanha, como potência, principal concorrente dos Estados Unidos, e liquidar as possessões da Itália e do Japão; dissolver o império colonial que a França, a Holanda e a Bélgica ainda mantinham, e assumir todas as posições e domínios da Grã-Bretanha, proposta feita a Churchill na reunião de Placentia Bay (9 de agosto de 1941), e estabelecer nova ordem mundial, sob a hegemonia dos Estados Unidos”, de acordo com Moniz Bandeira.
Assim foi feito.
Globalizando a hegemonia
A emergência do movimento anticolonial em todo o mundo representava a retirada de uma parcela considerável do globo do jugo das antigas potências. Aqui estava incluída a União Soviética, bastião desta luta, que conseguira sair da Primeira Guerra Mundial escapando pelos dedos do domínio estrangeiro e afirmando a sua própria independência política.
O projeto de Hitler, como ele mesmo dissera, era “sustentar teoria similar [à Doutrina Monroe] para os interesses do Grande Império Alemão”. Ocorre que a União Soviética era um alvo especial dos nazistas.
Heinrich Himmler, comandante militar da SS e uma das principais figuras do partido nazista, disse em um discurso na cidade de Posen, na Polônia: “O que acontece a um russo, ou a um checo não me interessa o mínimo. O que as nações podem oferecer na forma de bom sangue do nosso tipo, nós vamos tomar, se necessário, raptando os seus filhos e criando-os aqui conosco. Se as nações vivem em prosperidade ou morrem de fome, só me interessa enquanto nós precisarmos deles como escravos para a nossa cultura; caso contrário, não me interessa. Se 10.000 mulheres russas caem de exaustão enquanto cavam uma vala antitanque, interessa-me apenas na medida em que a vala antitanque para a Alemanha esteja terminada. Nunca seremos rudes e sem coração quando isso não for necessário, isso é claro. Nós alemães, que somos o único povo no mundo que tem uma atitude decente para com os animais, também assumimos uma atitude decente para com estes animais humanos (Menschentieren).”
Assim eram vistos: “animais humanos”. O Generalplan Ost nazista (Grande Plano para o Leste) consistia em genocídio, limpeza étnica e colonização em larga escala dos países do leste europeu. Escravos seriam então usados nos esforços de guerra, junto das reservas de petróleo do Cáucaso e as commodities agrícolas da União Soviética. Em última instância, o leste europeu poderia se tornar colônia alemã.
Para os Estados Unidos, a Alemanha nazista significava, por um lado, uma ponta de lança contra os comunistas (na Europa e em relação a União Soviética) e, por outro, um ousado competidor no campo geopolítico. Aquela antiga potência, derrotada na Primeira Guerra e submetida ao endividamento, emergia mais uma vez, estendendo sua influência por todos os continentes com promessas de guerra. E se a guerra fosse declarada contra os Estados Unidos – como de fato foi, em 1941 – a América Latina seria um território chave.
Para a Alemanha nazista, bastava que os países latino-americanos ficassem neutros. Os Estados Unidos garantiram apoio na região, no entanto, por meio da “Política de Boa Vizinhança”, aumentando os investimentos na América Latina e promovendo intercâmbios culturais. Os países que tenderam mais à neutralidade – como Chile e Argentina – foram castigados no campo econômico.
Depois que um furacão de carne humana, alimentado principalmente pelo sangue soviético, varreu o governo nazista da Alemanha e impôs a rendição ao Japão e à Itália, o tabuleiro global ficou limpo: norte-americanos de um lado, soviéticos de outro. A partilha já havia sido preparada em Yalta, na Crimeia, oito meses antes, e um ano antes os Estados Unidos já haviam decidido, na Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, em Breton Woods, pela criação do Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas (GATT, em inglês), do Fundo Monetário Internacional (FMI), e do Banco Mundial.
A intenção era promover o comércio multilateral, com livre circulação de mercadorias e investimentos, por meio da conversibilidade das moedas (tendo o dólar como base); a concessão de ajuda financeira aos países em troca de medidas de redução de gastos e privatizações, e a promoção de investimentos privados e empréstimos em massa às nações no pós-guerra. Por meio dele, os Estados Unidos não só estariam em luta contra a URSS, mas também assegurando o domínio sobre as antigas colônias britânicas e francesas e, porque não, sobre a Inglaterra e a França em si.
Logo após a Segunda Guerra, chegou-se à chamada Guerra Fria. A disputa geopolítica entre soviéticos e norte-americanos no pós-guerra, cada vez mais, tornaria o estalar de uma nova guerra necessário. No entanto, ela seria contraprodutiva para ambas as partes: as duas potências saíam vitoriosas de campos de batalha que lhes haviam custado enormes quantidades de recursos, humanos e financeiros. Guerrear não só implicava abrir mão dos garantidos e imediatos espólios da Segunda Guerra, como jogar-se, como potência, num mundo em que o caos poderia destronar ambos os reis.
Era necessário guerrear sem armas, mas sempre sob sua sombra. A Guerra Fria foi, assim, feita nos moldes da política, e a política era feita como num mapa da guerra. O desenvolvimento da capacidade nuclear soviética em 1949 transpunha para o campo militar o paradoxo político após a Segunda-Guerra: vencer o inimigo era necessário, para ambos os lados. Mas para ambos os lados era contraproducente e perigoso demais combater. Neste jogo de xadrez em que não havia mais torres, cavalos, bispos ou rainhas, a vitória seria alcançada pelos peões, convertidos em torres de hegemonia de cada um dos reis.
Torres de hegemonia
A Guerra Fria foi combatida em todo o mundo, na dimensão cultural, política e econômica. Batalhas militares eram efetivamente travadas, mas com caráter limitado.
Na Ásia, em 1949, a Revolução Chinesa ergueu, às portas da Rússia, a primeira torre de hegemonia contra os Estados Unidos. Igualmente ocorreu na Península Coreana, que acabou dividida e passou pela Guerra da Coreia entre 1950 e 1953. O Japão e a Coreia do Sul, por sua vez, serviram de torres norte-americanas na região, com centenas de milhares de dólares em investimentos e ajuda financeira, e ostensiva presença militar norte-americana. A Tailândia e as Filipinas também cumpriram papéis importantes na “doutrina asiática” da Southeast Asian Treaty Organization (Organização do Tratado do Sudeste Asiático), um pacto militar que incluiu também a Inglaterra, Nova Zelândia, Austrália, França e Paquistão, com o objetivo de defender o Vietnã do Sul, o Laos e o Camboja dos comunistas. A doutrina asiática, como a Doutrina Monroe, considerava que qualquer intrusão no sudeste da Ásia era perigosa para a paz e segurança dos EUA.
No Leste Europeu, até a Alemanha Oriental, a influência foi assegurada à União Soviética. Na Europa Ocidental, a hegemonia norte-americana era mantida.
Um campo de batalha especial foi o Oriente Médio. Ali, a influência norte-americana era forte, com a grande torre de Israel, erguida em 1948, a Arábia Saudita e, depois do golpe contra Mohammad Mossadegh, o Irã. A Síria e o Iraque permaneciam alinhadas ao Bloco Soviético, que teve sua influência expandida também para o Egito, cujo líder, Abdel Nasser, nacionalizou o Canal de Suez em 1956.
Na América Latina, prevalecia a Doutrina Monroe. A hegemonia em alguns países, durante o final dos anos 40 e os anos 50, já era assegurada pelo grande porrete literal do irmão do norte: Costa Rica, Guatemala e Paraguai. Em 1959, no entanto, a Revolução Cubana estourou, e a ilha se alinhou ao Bloco Soviético a partir de 1961. A tensão, agora no protetorado preferencial dos Estados Unidos, deveria ser resolvida. Argentina, Brasil, Chile, Nicarágua, Panamá, Peru e Uruguai seriam todos alvos do porrete norte-americano e seus representantes regionais: coturnos e milicos.
Novas potências
Gay Talese, o lendário escritor e jornalista norte-americano, escreveu certa vez, sobre a final da Copa do Mundo de Futebol Feminino em 1999, disputada entre EUA e China: “Era sim uma visão contrastante e atualizada do tipo de mulher chinesa que Mao havia imaginado capaz de levar o mundo nas costas. Aquelas modernas finalistas chinesas, que viajavam pelo planeta e calçavam chuteiras com travas na final da Copa do Mundo de 1999, eram, em certos casos, netas ou bisnetas de mulheres que no passado manquitolavam em sua terra com pés atados e, por isso, deformados. Aquelas jogadoras de futebol eram, num sentido histórico, parte de uma longa marcha que ainda continuava, de um grande salto avante rumo ao século XXI, no qual, como futuras mães numa superpotência florescente e tecnicamente avançada, seus genes competitivos talvez epitomassem a energia e a determinação com que novas gerações de chineses poderiam vir a competir com os americanos na tentativa recíproca de riscar o outro país do mapa.”
Oito anos antes, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas encontrava o colapso, depois dos governos comunistas caírem nos aliados Hungria, Tchecoeslováquia, Bulgária, Romênia e Alemanha Oriental, e a as repúblicas soviéticas da Lituânia, Letônia e Estônia declararem sua independência.
A China, que já se mantinha independente dos soviéticos, havia empreendido a partir de 1976 grandes reformas econômicas. Na década de 1960-1970, a economia do país crescia no passo de 4,5%; entre 1970-1980, 5,8%; entre 1980-1990, 8,5%.
A União Soviética havia sido destruída, sim, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) se expandia para suas antigas fronteiras. Mas na Ásia Oriental o “perigo vermelho” crescia e se tornava uma potência. Os canhões rudimentares viraram modernos e sofisticados mísseis. A industrialização avançava a passos largos. E os pés confinados por panos e deformados agora vestiam chuteiras e chutavam ao gol no final da Copa.
Desde aquela final, em 1999, o PIB chinês saltou de 1,094 trilhão para 12,24 trilhões (em comparação, o PIB norte-americano saltou de 9,6 trilhões para 19,3 trilhões). O tamanho dessa potência econômica é tal que, de acordo com um relatório da Oxford Economics, “a indústria chinesa […] reduziu os preços dos bens de consumo nos Estados Unidos, amorteceu a inflação e colocou mais dinheiro nos bolsos americanos […] o comércio com a China […] economizou até 850 dólares por ano para essas famílias.” Além disso, tudo indica que a China esteja na dianteira no desenvolvimento do 5G, a “quarta revolução tecnológica”, enquanto a indústria bélica norte-americana se torna cada vez mais dependente de commodities chinesas, em especial das chamadas “terras raras”. Um relatório do Departamento de Defesa norte-americano considera que a China “representa um risco significativo e crescente para o fornecimento de materiais considerados estratégicos e críticos para a segurança nacional dos EUA, já que o país asiático é a única fonte ou provedor principal de uma série de materiais utilizados na indústria de defesa.”
Velhos porretes
O ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos declarou em 2018, quando anunciando a nova doutrina estratégica de seu país: “Continuaremos a levar adiante a campanha contra terroristas em que estamos envolvidos hoje, mas a competição entre grandes potências, não o terrorismo, agora é o foco principal da segurança nacional dos EUA.” Como escrevi em “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil”, “a retomada da Doutrina Monroe não é só uma teoria; é discurso oficial. Se em 2013 o então Secretário do Estado John Kerry declarava publicamente que ‘a era da Doutrina Monroe acabou’, o então Secretário de Estado de Trump, Rex Tillerson declarava, antes de embarcar para uma série de viagens na América Latina, que a Doutrina era ‘claramente um sucesso […] tão relevante hoje como no dia em que foi escrita.’ Nesta mesma ocasião, disse que ‘hoje a China está colocando um pé na América Latina. Está usando políticas econômicas para colocar a região na sua órbita. A pergunta é: a que preço? A América Latina não precisa de novos poderes imperiais que só buscam beneficiar seu próprio povo.’ O Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, também gosta de rememorar o presidente Monroe. Respondendo a uma pergunta sobre a Venezuela, declarou que ‘nessa administração nós não temos medo de usar a frase ‘Doutrina Monroe’. Esse é um país em nosso hemisfério, tem sido o objetivo de presidentes desde Ronald Reagan ter um hemisfério completamente democrático.”
De fato, a China tem posto um pé na América Latina. Um não; vários. E de chuteiras. Desde 2005, são cerca de 140 bilhões de dólares em empréstimos enviados à região, dos quais 90% foram para quatro países: Venezuela, Brasil, Equador e Argentina. Os empréstimos chineses para o desenvolvimento da América Latina e Caribe nos últimos anos têm sido maiores do que os do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do Banco de Desenvolvimento da América Latina juntos.
O país que mais recebeu dinheiro chinês na região foi a Venezuela (67,2 bilhões de dólares entre 2001-2018). O país deve à China cerca de 19 bilhões de dólares em petróleo. No Brasil, para o mesmo período, o montante foi de 29,8 bilhões de dólares, e a China é o nosso principal parceiro comercial desde 2009. O Equador, de 2009 a 2018, recebeu 18 bilhões de dólares, e um acordo com o ex-presidente Rafael Correa estabeleceu que 90% das exportações de petróleo cru seriam feitas ao dragão asiático. E a Argentina, nas últimas duas décadas, recebeu quase 17 bilhões de dólares. Grande parte dos investimentos se destinam ao desenvolvimento de infraestrutura.
No Brasil, Bolsonaro fala duro com a China e mole com os Estados Unidos, mas a língua é mordida, no primeiro caso, e ignorada, no segundo. O presidente chegou a abrir mão de benefícios da Organização Mundial do Comércio (OMC) em troca de uma prometida entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que foi frustrada. Os EUA também negaram a abertura de seus mercados para a carne bovina in natura do Brasil. E Trump também disse que taxaria as exportações de aço brasileiro, para que Bolsonaro depois dissesse que o mandatário norte-americano se comprometeu a não fazê-lo; o brasileiro já foi enganado pelo amigo do norte antes.
A China, por outro lado, colocou 100 bilhões de dólares à disposição do Brasil após a XI Cúpula de Líderes do Brics, e foi o único país a tomar parte no mega leilão do pré-sal ocorrido em novembro (de acordo com a Folha de São Paulo, a pedido do próprio Bolsonaro).
Para fazer frente à presença econômica da China na região, os Estados Unidos criaram o programa “América Cresce”. O Brasil deve assinar em breve um memorando para participar. Mas concorrer em empréstimos com outras potências – em especial uma liderada por um Partido Comunista – não é o que prega a Doutrina Monroe. Forçar sua retirada sim.
O presidente brasileiro, com sua política pró-americana, parece buscar, a partir da fraqueza, o apoio incondicional dos Estados Unidos. Acena a todas as posições norte-americanas e, também no campo diplomático, as repete. Aceitou inclusive sediar um encontro “anti-Irã” no Brasil em fevereiro. A lógica de Bolsonaro, ao que tudo indica, é falar mais manso do que quem fala manso. Não sem custos internos, econômicos e políticos. Por outro lado, adotou uma postura chamada “mais pragmática” pelos grandes meios em relação à China nos últimos meses.
Nada disso está ocorrendo nos tempos de Cipriano Castro. Tampouco os eventos ocorrem na Europa, na Ásia, no Oriente Médio, nas portas da China ou da Rússia. Os oficiais norte-americanos não estão declarando, neste momento, que “o mundo é assim” ou que “os mercados são livres”. Pelo contrário, estão dizendo: o porrete está vivo; nós acreditamos no porrete!
No Brasil, e em toda a América Latina, chegará o momento em que os governos terão de fazer uma escolha. E, para aqueles que não entendam o falar manso do império, o porrete está ao alcance das mãos. Ele já afastou antes potências muito menos perigosas, já comprou dívidas, já derrubou governos, já procurou os militares, já autorizou surras. Somente a ingenuidade pode nos permitir acreditar que não fará de novo.