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Marcha turca: A sinfonia de Erdogan

Na Síria, Erdogan tenta compor uma sinfonia, que consolide, a despeito de outros atores, um poder próprio, que busca estender para além das fronteiras.
por André Ortega | Revista Opera

A ideia de uma marcha turca é tão marcante que serviu de fundamento para compositores europeus clássicos. Esse tipo de marcha, apesar de ter se afirmado como um “estilo” em específico entre os europeus, encontra – com justiça – suas origens nas músicas militares dos otomanos, a exemplo das marchas janissárias. O brilhante pesquisador, compositor e condutor turco contemporâneo, Emre Araci, nos oferece hoje ótimos exemplares do que é uma boa marcha turca, com suas flautas e baterias. No entanto, vamos falar sobre outro grande compositor turco, que faz suas óperas na política e suas marchas com o exército: Recep Tayyip Erdogan¹, atual presidente da Turquia.

Antes da crise pandêmica mundial, um dos grandes acontecimentos geopolíticos e episódio mais importante da guerra na Síria foi o encontro de Erdogan com o presidente russo, Vladimir Putin, em Moscou, no começo de março. Os líderes se reuniram para resolver diferenças causadas por tensões e mortes na província de Idlib, na Síria, região ocupada por tropas turcas que mantêm um santuário para jihadistas que lutam contra o estado sírio governado por Bashar al-Assad. O governo sírio é apoiado pela Federação Russa. O governo sírio realiza ofensivas para tentar retomar a região, que tem grande fluxo de migratório (entrada e saída de refugiados) com a Turquia.

No dia 1 de fevereiro, quatro membros das forças especiais russas, ligados ao serviço de segurança estatal FSB (Serviço de Segurança Federal), foram mortos em uma emboscada. No dia 20 de fevereiro, forças paramilitares ligadas ao exército turco lançaram uma contra-ofensiva na vila de Nayrab, com forte apoio da artilharia e de aviões turcos. Por sua vez, as força aérea dos russos apoiava as forças do governo sírio; os atacantes tentaram derrubar aviões russos com MANPADS (mísseis terra-ar portáteis) fornecidos pela Turquia.

No dia 27 de fevereiro, um comboio turco entre al-Bara e Balyn foi bombardeado, onde oficialmente morreram 33 soldados turcos, mas algumas estimativas falam de quase o dobro disso. O ataque teria sido realizado por aviões Su-22, que por sua vezes seriam tropas russas, que atacaram, finalmente, posições turcas com mísseis de precisão guiados por laser KAB-1500L. O ataque gerou grande comoção na Turquia.

Diferente do que parte das notícias ocidentais e o escândalo na mídia turca deram a entender, a crise não começou com a morte dos soldados turcos no final de fevereiro, mas com a emboscada que matou os agentes russos, possivelmente organizada por serviços da Turquia e executada por um grupo por eles apoiados – o acontecimento pode ter sido apenas “mais uma notícia” no ocidente, mas foi manchete na Rússia. Os dois países passaram a última dezena de fevereiro tendo choques em Idlib.

A reação internacional foi de preocupação: a OTAN e os Estados Unidos deram apoio moral à Turquia, a ONU expressou ansiedade pedindo respeito a normas de cessar fogo. O estado turco respondeu com mais de 300 ataques a posições sírias. Depois disso, predominou uma situação tensa.

Uma “tribuna conjunta de ministros de estado europeus” apoiou a Turquia chamando a Síria, Rússia e Irã a “cessarem sua ofensiva”; mas o documento só teve 14 signatários de 27 – ademais, o Irã não participa dessa ofensiva contra Idlib. A declaração também se refere a um cessar fogo assinado em Sochi no passado, mas que nunca foi devidamente implementado pelas partes (ele também abria possibilidade para a Turquia discriminar grupos de oposição na Síria do que seriam grupos terroristas, podendo conferir legitimidade a uns e outros).

A situação em Idlib estava virando a favor do estado sírio. Tropas do Exército Árabe Sírio assumiram o controle de Maarat al-Nouman e Nayrab, tomando de volta o controle da rodovia M4, que conecta Aleppo a Latakia. Posições turcas também estão cercadas pelo Exército Árabe Sírio desde o final de 2019 em Surman e Morek, mais recentemente em Maar Heitat.

No dia 5 de março, Putin e Erdogan se encontraram em Moscou e concordaram com um cessar fogo. Erdogan voltou em tom triunfante dizendo que conseguiu um cessar fogo, mas sem mencionar que isso foi em troca do reconhecimento das posições que o exército sírio conquistou em Idlib.

Os acompanhantes turcos estavam todos de pé, aos pés de uma estátua de Catarina, a Grande. Os chefes de estado, Putin e Erdogan, estavam divididos por uma pequena estátua de bronze, representando os soldados russos que venceram a Turquia na Bulgária entre 1877 e 1888.

Como disse o jornalista sênior e especialista em geopolítica Cengiz Candar, no Al Monitor, Erdogan, quando insistiu para se encontrar com Putin (Putin iria se encontrar com chefes de estado europeus em Paris, Erdogan “se convidou” mas não conseguiu a audiência que queria) e foi até Moscou ser recebido, mostrou sua fraqueza: são os turcos que precisam de Putin, são os turcos que estão sofrendo com a situação e precisando negociar.

Candar fez sua análise chamando esse episódio de “dança” entre Putin e Erdogan, mas se olharmos mais fundo veremos que existe uma grande ópera da intervenção turca na crise da Síria. Qual o sentido desse conflito e da atuação turca? Podemos tocá-la, mesmo que de forma parcial, e identificar elementos decisivos? Se vamos fazer um resumo da Opera, não podemos nos restringir ao último movimento.

O partido de Erdogan

A ascensão de Erdogan ao poder é a ascensão de seu partido, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (na sigla turca, AKP)². A ascensão do AKP teve apoio de setores liberais da sociedade por mostrar um caminho para desmontar as instituições de controle do Estado e da sociedade que serviam ao controle e à tutela militar, tutela que se realizava por vários caminhos (dentre eles o sistema de justiça e o supremo tribunal).

Como o próprio AKP diz em seu programa de “Justiça e Desenvolvimento”: a Turquia é rica em recursos naturais, tem uma população considerável, com muitos jovens, uma herança cultural rica, uma tradição antiga de governo e uma posição geoestratégica privilegiada, sendo a ponte entre a Europa e a Ásia. O arquiteto que orientou a política externa do governo nessas condições foi o professor Ahmet Davutoğlu, especialista em relações internacionais, autor de um livro muito influente chamado “Profundidade Estratégica” – entre maio de 2009 e agosto de 2014, foi Ministro das Relações Exteriores.

O partido também tem uma ideologia específica, que se reflete em sua concepção de política externa. O AKP é uma tenda de militantes islâmicos e mantém vínculos com uma organização transnacional específica, a Irmandade Muçulmana (ou Sociedade dos Irmãos Muçulmanos, Jamaʿat al-Ikhwan al-Muslimin, muito referida também somente como Ikhwan; movimento influente fundado em 1928 no Egito por Hassan al-Banna). Esse vínculo com os Irmãos é um dos pontos cruciais da política externa de Erdogan. 

Em 2008 e 2009 o governo do AKP assumiu uma postura vocal mais ativa de apoio à Palestina, se aproximando mais da Irmandade Muçulmana e do Hamas (movimento político nascido da Irmandade na Palestina). A abertura se deu devido à passividade de outros países na região, enquanto Gaza era bombardeada pelos israelenses; a oportunidade também se deu como contraposição à postura ativista e de apoio à Palestina dos iranianos, que se colocavam como líderes de um “Eixo de Resistência” que contava com muito prestígio devido à vitória da resistência libanesa contra Israel em 2006. 

No mesmo período, na política interna, Erdogan ganhou um governo mais forte nas eleições gerais de 2007³. Neste momento, a Turquia expõe com maestria um dos princípios centrais de sua geopolítica: se aproveitar de uma condição de ponte entre mundos diferentes, servir como um mediador ativo que se aproveita de dependências e interesses de aliados e interlocutores. Como disse Erdogan em 2016: “Israel precisa de um país como a Turquia nesta região” e os turcos “também devem admitir que precisam de um país como Israel”; “isso é um fato regional”.

Erdogan não está errado; a Turquia sempre entrou como um aliado e um contrapeso aos árabes nos cálculos israelenses – em 2008-2009 eles ainda haviam importantes acordos de cooperação militar (que seriam suspensos em 2011).

Efetivamente, para citar um outro exemplo de potência geopolítica, a Turquia controla fluxos de água dos rios Tigre e Eufrates, o que coloca o estado em uma posição vantajosa em relação à Síria e ao Iraque. O controle através de sistemas hidráulicos já foi usado antes pelo estado turco como arma de negociação contra o estado sírio, em negociações relativas à relação do governo da Síria com o grupo guerrilheiro curdo PKK. A possibilidade de guerra causada por razões hídricas é colocada em diversas projeções de conflito na região, seja da OTAN, seja de grupos de trabalho da ONU. O país se destaca na região por suas reservas de água e continua com projetos de engenharia na região da Anatólia que aumentariam a vantagem geopolítica decorrente dessas reservas; a existência das guerrilhas curdas equilibrou essa vantagem até então.

Partindo dessas condições, a visão do partido de Erdogan era de transformar a Turquia em modelo: “Islã, democracia e desenvolvimento econômico”, na síntese de um intelectual do AKP, Ibrahim Kalin, dedicado a pensar a política exterior do partido e que em 2019 se tornou porta-voz de Erdogan. Assim, Erdogan se converteu naquele momento em um forte padrinho da Irmandade Muçulmana. Essa relação foi crucial na intenção do governo turco de intensificar sua influência geopolítica a partir da Primavera Árabe em 2011. A Irmandade Muçulmana no Egito aceitava o governo do AKP como modelo a ser seguido. A Turquia apoiou o movimento que derrubou Hosni Mubarak e rapidamente entrou em cena para fornecer assistência técnica, financeira e política ao país – 2 bilhões de dólares em ajuda, fora apoios diversos, até equipamentos para serviços municipais. As relações comerciais se intensificaram. Quando Erdogan visitou o país ainda em 2011, foi recebido e saudado por manifestantes na Praça Tahrir; assinou 27 tratados bilaterais com o Egito, incluindo a área policial. Quando vieram as eleições egípcias em 2012, Erdogan e seu partido apoiaram o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohammed Morsi: enviaram seus profissionais eleitorais para trabalhar ao lado do candidato. A vitória de Morsi foi saudada e celebrada como uma vitória da política turca. Morsi e o secretário-geral do Hamas, Khaled Mashal, participaram do congresso do AKP em 2012; Morsi fez um discurso saudando os turcos por apoio à revolução egípcia.

A política em relação ao Egito cumpre um objetivo geopolítico geral de estender a presença da Turquia pelo Mediterrâneo e de se projetar no delta do Rio Nilo. Erdogan assumiu uma postura pan-islamista. A Turquia se aproximou do Qatar – cujo governo também estava muito próximo da Irmandade – enquanto “membros de uma cultura e civilização em comum”. A Irmandade Muçulmana também teve um papel político na queda de Muammar Gaddafi na Líbia, com apoio direto do Qatar, que chegou a usar tropas especiais no país mediterrâneo.

A política pan-islâmica da Turquia não poderia dispensar o envolvimento na guerra da Síria. Ali também a Irmandade Muçulmana – seu braço local – cumpriu um papel, tendo sido protagonista político, por um tempo, das forças jihadistas que lutavam contra o governo Bashar al-Assad. A guerra é a extensão da política por outros meios, e a participação turca na guerra da Síria nos prova.

Guerra na Síria: primeiros passos, revolução para colocar Irmandade no poder

Nos primeiros meses de 2011, o chanceler Davutoglu tentou usar a relação que havia construído com Damasco em uma política de boa vizinhança para convencer Assad a ceder e preparar o terreno para a Irmandade, começando por um novo governo que incluísse membros da Irmandade. Mal lograda essa alternativa, a Turquia vira base dos grupos armados que queriam derrubar Bashar Al-Assad. Permitiram que uma coalizão de opositores formasse o Conselho Nacional Sírio em território turco; a coalizão era dominada pela Irmandade Muçulmana. Abrem as fronteiras para a circulação de rebeldes e de radicais que viessem de outros países para combater na Síria.

A Turquia aderiu à “coalizão revolucionária” para derrubar o governo de Bashar al-Assad, junto da Irmandade, dos Estados Unidos, do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita.

A Turquia forneceu bases de treinamento para jihadistas e bases operacionais de serviços de inteligência ocidentais (vide, por exemplo, a operação da CIA de armamento e treinamentos para grupos que atuavam na Síria, nomeada Timber Sycamore) . Diversos grupos atuavam a partir da Turquia e os comandos de instalaram no país. A Turquia foi peça central para a transferência de combatentes jihadistas vindos de outros países, principalmente líbios experimentados na guerra do próprio país.

O comando do “Exército Livre Sírio” estava muito bem situado na Turquia, coordenado com o serviço de inteligência da Turquia – isto é, se essa coalizão de grupos e brigadas com nome de “exército” não estivesse, como alguns sugerem, sobre o controle de um comando norte-americano também instalado na Síria (e que eventualmente fracassou nesse projeto devido as competições entre os grupos no campo).

A revolta teve dificuldades em ter um apelo nacional por seu vínculo com a Irmandade Muçulmana, tendo mais apelo em setores do norte da Síria e mobilizando partes da população rural sunita desta região.

A Irmandade Muçulmana sofreu revezes na região, apesar do momento sírio. Morsi foi deposto por um golpe militar em 2013, depois de ignorar manifestações que ocorreram contra ele e seu projeto de estado, sonhando em fazer uma intervenção com tropas no exército na Síria (intenção que deve ter sido fundamental para precipitar o golpe).

O novo governo egípcio retaliou o apoio turco para Morsi, expulsando o embaixador turco em dezembro de 2013, declarando-o persona non grata. A Arábia Saudita e seus aliados, apoiando os militares egípicios, também começaram a pressionar o governo do Qatar.

A Turquia passou a temer sanções econômicas, assustados com a pressão saudita – os sauditas conseguiram, rapidamente, colocar o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos na sua linha regional.

Erdogan foi incentivado a ter uma postura ativista e intervencionista na Síria não só por suas ambições pessoais, mas também pelas dos Estados Unidos. No entanto, as ideias dos dois países não concordaram completamente, e Erdogan se frustrou muito com a atuação norte-americana, tida como indecisa – ao contrário do que esperava, a reeleição de Obama em 2012 não se traduziu em uma política mais despreocupada por parte do presidente dos EUA. Erdogan exigia uma no fly zone (zona de exclusão aérea), o que Obama nunca deu.

Erdogan se viu comprometido, usado como um peão da política dos Estados Unidos. Ao invés de desengajar (o que poderia ter consequências na política interna), intensificou os esforços em 2012 para tentar derrubar Assad. Mais armas chegavam para as facções anti-Assad e o conflito atinge novos patamares em 2013.

Assad respondeu tomando decisões – como a retirada de tropas de certas posições – que favorecem que elementos ligados ao PKK – o partido-guerrilha curdo que lutou contra o estado turco por décadas – se armassem e assumissem o poder no nordeste da Síria, na fronteira com a Turquia. A Síria historicamente serviu como base para o PKK realizar ações guerrilheiras na Turquia, no passado; até aquele momento, Erdogan havia conquistado algum sucesso em programas de inclusão dos curdos em geral nos seus primeiros governos e estava avançando em conversações de paz com o PKK. A nova situação viria a ser um problema para os turcos.

Em 2013, entre maio e agosto, a Turquia também viu grandes manifestações contra Erdogan, iniciadas em defesa do parque Gezi, zona pública verde no lado europeu de Istambul, onde se pretendia construir um shopping center. Morreram 22 pessoas. Nesse período, Erdogan também iniciava um esforço sistemático para fazer reformas de teor religioso no currículo escolar turco.

Califados: a Turquia, o Daesh e os Estados Unidos

Dentre os grupos jihadistas, um deles se destacou por sua ruptura com os outros, a tomada de cidades no Iraque e por ter se voltado contra a Al Qaeda, o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (vamos nos referir aqui como Daesh, organização nascida no Iraque que atuava também na Síria).

O Daesh ganhou preponderância e a Turquia seria muitas vezes acusada como co-responsável pelo surgimento do grupo, quando não uma das forças que puxavam as cordas por trás dele; pelo menos, o país foi a peça central no tráfico de petróleo do Daesh, e a própria família de Erdogan figurou nos escândalos.

Independente de apoio operacional do estado turco, o Daesh espalhou centros de recrutamento na Turquia, seus recrutas compravam suprimentos e circulavam livremente; hospitais do sudeste da Turquia forneceram tratamento grátis para combatentes do Daesh que depois voltavam para a Síria.

A questão do Daesh se desenrola em um período entre 2014 e 2015. Em setembro de 2014, o Daesh fez o cerco contra a área mais importante controlada pelas milícias do YPG,  o que vira motivo de atenção internacional e faz com que os grupos curdos peçam ajuda dos aviões norte-americanos, que já estavam bombardeando posições do Daesh no Iraque.

Erdogan tentou evitar essa aliança, fomentando a criação específica de grupos armados para combater o ISIS em Manbij.  Estes seriam conhecidos como os “mercenários turcos” por excelência, já indo além da expressão política da Irmandade Muçulmana na Síria. Não pareceu suficiente para Obama, que preferiu dar prosseguimento a aliança com o YPG. Para a tristeza de Erdogan, os ocidentais voltaram o grosso de sua atenção ao Daesh, motivados por ataques como os de Paris em janeiro e novembro de 2015, os ataques em Orlando e em Nice em junho e julho de 2016.

A Turquia só passaria a ter uma política clara de combate ao Daesh a partir do segundo semestre de 2015, quando cedeu ostensivamente o uso de bases aéreas para os Estados Unidos fazer ataques contra este grupo terrorista. A retaliação terrorista veio na forma de diversos ataques no ano seguinte, a partir de outubro, quando no dia 10 um ataque matou 103 pessoas em uma manifestação pela paz e anti-Erdogan em Ankara. O governo Erdogan traçava uma estratégia que considerava Assad um mal maior do que o Daesh e prioridade para os interesses da região, culpando esse mal maior por “efeitos” como o terrorismo. Consequentemente, aumentou a pressão sobre Assad e os grupos jihadistas cresciam de forma correspondente; grupos como o Jabhat al-Nusra, representante oficial da Al Qaeda na Síria.

2015 como divisor de águas: as eleições e a inclinação nacionalista de Erdogan

O ano de 2015 apresenta uma série de culminações e transformações importantes na guerra da Síria. Erdogan estava cansado da vacilação dos Estados Unidos: na verdade, se sentia não só abandonado, mas traído, já que o governo Obama optou por transformar as milícias curdas do YPG em peças preferenciais de sua política para a Síria e adotaram uma estratégia mais voltada para a divisão daquela república a partir de suas diferenças étnico-religiosas – sendo realistas, os norte-americanos aderiram ao que parecia ser o caminho mais curto e mais barato, ainda apoiando alguns grupos de jihadistas mas sem crer na necessidade de sua vitória, já que sua mera existência cumpria uma função (manter o país dividido).

Já em novembro de 2013, no dia 20, John Kerry fez um retrato dos acontecimentos no Egito como manifestações de jovens modernos e idealistas, mas dizendo que a oportunidade foi “roubada” pela Irmandade Muçulmana, usando esse modelo para pensar a “Primavera Árabe”, incluindo aí os problemas da Síria (onde, segundo ele, tudo começou com manifestações de jovens querendo reformas, que sendo vítimas da “repressão brutal de Assad” foram envolvidos numa situação em que o conflito é cada vez mais sectário). A própria chave da narrativa ocidental começa se transformar mais em 2015, em prol de tendências separatistas dentro da Síria e da “contenção de danos” administrada por uma “comunidade internacional” liderada pelos Estados Unidos.

Do ponto de vista da política turca, 2015 foi um ano importante, pois ocorreram duas eleições: uma eleição geral em junho e eleições gerais adiantadas em novembro. As eleições tiveram de ser repetidas: o AKP não tinha cadeiras o suficiente para formar o governo e não queria fazer um governo de coalizão – nas eleições em novembro, conseguiram a maioria desejada por Erdogan.

Nas eleições de junho, os ultra-nacionalistas do partido MHP (Partido do Movimento Nacionalista) conquistaram um número maior de cadeiras (de 53 foram para 80). Apesar deles terem perdido quarenta cadeiras nas eleições de novembro, Erdogan em sua estratégia política e parlamentar se aproximou dos nacionalistas. Naquelas eleições o partido de esquerda progressista, HDP, sofreu muito e quase não entrou no parlamento.

Erdogan estava frustrado – conseguiu 40% dos votos nas eleições de junho de 2015, quando gostaria de uma maioria absoluta para seu partido, o que não conseguiu mesmo com resultados melhores em novembro, quando teve a grande vitória de 49,5%. Essa frustração seria deixada para trás através de um novo projeto de poder ao lado dos nacionalistas.

Como dissemos antes, Assad estimulou os grupos armados ligados ao PKK (sob a sigla YPG) na fronteira com a Turquia como uma forma de gerar tensão e complementar sua estratégia de criar uma coalizão de minorias, mas sem garantias de sucesso e sem conseguir um enfrentamento imediato dessas forças com os turcos. As conversações de paz com o PKK na Turquia, um dos trunfos de Erdogan, só colapsaram completamente em julho de 2015. Antes disso, no quadro das negociações de paz, o governo turco até chegou a manter contatos com a lideranças políticas do YPG da Síria, recebendo Salih Muslim (do Partido da União Democrática – PYD) em 2013 e 2014.

A tensão começou a acumular em 2013, escalando em seguida, com a Turquia não aderindo a uma aliança anti-Daesh em 2014 enquanto posições curdas dentro da Síria eram atacadas por grupos do Daesh que saíam do território turco; mas foi só em outubro de 2015 que tropas turcas deram os primeiros disparos contra posições de milícias curdas na Síria.  Em julho de 2015 aviões turcos bombardearam posições do PKK dentro do Iraque (as bases nas montanhas de Qandil).

No curto período do governo interino, antes das novas eleições, Erdogan faz uma aliança com os nacionalistas para enfrentar as forças curdas, fortalece suas credenciais como um nacionalista e ganha votos dos nacionalistas nas eleições de fim de ano.

Depois de ter enfrentando, no ano de 2013, a mais dura oposição dos nacionalistas às negociações de paz com os movimentos curdos, em 2015 Erdogan encontra nos nacionalistas os seus melhores aliados, os melhores companheiros de armas para fazer uma guerra contra os curdos. Essas aliança prosperou: em 2017 os nacionalistas apoiaram o referendo constitucional de Erdogan (o regime se tornou presidencialista) e em 2018 o MHP foi o principal parceiro do AKP na aliança feita para dar um novo mandato presidencial para Erdogan.

Em 2014 ocorreram eleições locais e presidenciais, e as negociações com movimentos curdos não impediram que Erdogan perdesse votos nas regiões com maior popular curda, que não estavam mais aderindo à sua visão de reconciliação em uma Turquia “Islâmica, democrática e inclusiva”. Quem colheu resultados muito positivos nessas regiões do sudeste do país foi o partido de esquerda progressista HDP (que depois passaria a ser perseguido).

Outro fator relevante na sociedade turca, em meio a uma crise econômica (desaceleração e desemprego crescente), é que o discurso inicial de Erdogan de “solidariedade islâmica” com os refugiados já não estava aplacando o descontentamento, que em alguns casos se manifestava em racismo aberto contra migrantes e refugiados (no caso, adeptos da juventude paramilitar e ultra-direitista do MHP, os lobos cinzentos, chegaram a atacar refugiados).

Foi a partir de maio de 2015, também, que o território controlado pelas milícias curdas na Síria, referido como Rojava, passou a se expandir com a ofensiva de Tell Abyad, na região de Raqqa, em que o YPG teve apoio aéreo da coalizão liderada pelos Estados Unidos.

A política de guerra se intensificou. Em 2014 já estava claro que o governo turco pretendia fazer uma invasão aberta da Síria – em março vazou um áudio em que altos oficiais falavam sobre a estratégia e discutiam a possibilidade de fazer uma operação de falsa bandeira que justificasse uma invasão. No mesmo ano, em outubro, o parlamento debateu uma moção para autorizar o governo a invadir a Síria, inclusive para combater Assad, e a moção foi aprovada. As eleições de 2015 atrasaram os planos, mas em junho Erdogan já se encontrava com o Conselho de Segurança Nacional para organizar a invasão. 

Em setembro de 2015, porém, aconteceu o inesperado: a Federação Russa entrou na guerra. Isso se deu precisamente para contrapor a Turquia, considerando que a intervenção turca poderia ser decisiva para derrotar o governo sírio.

A Rússia usou como motivação central – casus belli – a luta contra o jihadismo, sendo essa política mais prioritária do que a manutenção do governo de Bashar al-Assad. Não obstante, a defesa do governo foi colocada como uma política de proteção do estado sírio, da estrutura estatal síria, para evitar mais um país destruído e caótico, tomado pelo terrorismo, tomando a Líbia como exemplo. Alguns velhos conhecidos do governo russo estavam ali: boa parte dos jihadistas que atuavam na Síria eram provenientes da Federação Russa, de repúblicas com população muçulmana, ou países adjacentes, que no passado haviam conduzido ações terroristas contra o estado russo.

Boa parte da direção do Daesh vem de elementos experimentados provenientes do antigo espaço soviético. O principal país de origem de estrangeiros no Daesh é, aliás, a Rússia.

Os bombardeios russos acabaram com a peça central da política de Erdogan para a Síria, que tinha em Aleppo um ponto de articulação estratégica – para ele, tão logo os jihadistas tomassem a cidade inteira, eles conquistariam a legitimidade internacional para um governo alternativo liderado pela Irmandade (não importando se o Jabhat al-Nusra servisse de “soldados de chão” – essa lógica, para eles, teria funcionado na Líbia, com a Irmandade em um governo internacionalmente reconhecido enquanto a Al Qaeda servia como força nas ruas). A Rússia destruiu esse plano bombardeando as linhas de suprimento e comunicação que estavam bem estabelecidas desde Aleppo até a Turquia.

Em fevereiro de 2016, o estado sírio começa a ofensiva de Aleppo. A ofensiva começou com a quebra do cerco que isolava forças do governo nas pequenas cidades de Nubl e Zahraa. Este movimento, aliado à pressão de milícias curdas ao norte (tomando cidades dos jihadistas na região ao redor de Tal Rifat), serviu para cortar de vez as linhas de suprimento dos jihadistas com a Turquia.

No meio da ofensiva, Erdogan foi até a comunidade internacional – se dirigindo especificamente aos Estados Unidos e à OTAN – para pedir uma no fly zone, livre de confrontos, no norte da província de Aleppo, isto é: que a OTAN assumisse o domínio dos ares no norte da Síria e criasse um santuário ali. Só a chanceler alemã, Angela Merkel, manifestou um tímido apoio à ideia, enquanto os Estados Unidos, que já haviam se desentendido com o governo turco em 2015, a ignorou.

Uma no fly zone em tese exigiria uma decisão do Conselho de Segurança da ONU. Agora a Rússia não só tinha um voto e um veto no Conselho de Segurança, como efetivamente dominava aqueles ares e os Estados Unidos não tinham interesse em apostar numa possível guerra com os russos para tentar salvar a Irmandade Muçulmana e a Al Qaeda.

O que os turcos buscaram então, ao lado dos sauditas, foi apoio ocidental para a uma operação militar de ocupação direta. Foi só em 24 de agosto de 2016, com apoio dos Estados Unidos, que a Turquia fez sua intervenção militar oficial direta.

Em 22 de dezembro de 2016, o bastião jihadista no norte de Aleppo caiu para o governo, o que fez Assad declarar que a cidade era “a tumba dos sonhos fascistas de Erdogan”. Com a devido interesse protetor da Turquia, foi negociado que os combatentes anti-governo, seus familiares e apoiadores, poderiam evacuar suas posições e ser enviados para Idlib em uma frota de ônibus verdes.

No dia 29, no que foi considerado um arroubo de fúria e frustração, Erdogan fez um discurso dizendo que as tropas turcas não entraram na Síria para tomar o solo, mas para “devolver o solo a seus legítimos donos”, “para reestabelecer a justiça”: “nós entramos lá para acabar com o domínio do tirano Assad – não entramos por nenhum outro motivo”.

A derrota dos jihadistas no norte de Aleppo, no entanto, mudou tudo no cenário sírio: a estratégia turca também mudou. 2016 também teve dois episódios cruciais na política interna da Turquia: Ahmet Davutoğlu, arquiteto da política externa de Erdogan por mais de uma década que havia ocupado o cargo de primeiro-ministro no governo interino de 2015, foi tirado em maio de 2016, saindo do erdoganismo para organizar outro partido, nascido de uma dissidência do AKP, o “Partido Futuro”, fundado em dezembro de 2019 usando um nome comum em frentes políticas da Irmandade Muçulmana.

Ademais, no dia 15 de julho de 2016 ocorreu uma tentativa de golpe militar sob a liderança de uma junta chamada “Paz em Casa” (referência a um lema kemalista, “Paz em Casa, Paz no Mundo”) que reivindicava defender o secularismo contra a islamização promovida por Erdogan. O golpe usou sistemas de comunicação da OTAN, foi liderado por um general da Força Aérea (muito próxima dos EUA devido à empresa Lockheed Martin) e foi derrotado; durante o golpe, houve uma tentativa de assassinato contra Erdogan. Após esses acontecimentos, Erdogan colocou o país em um estado de emergência que durou até janeiro de 2019, que serviu como uma ferramenta para intensificar repressões e perseguições contra as mais diversas forças políticas, governos locais e a realização de um novo expurgo nas Forças Armadas.

Idlib e a nova estratégia turca

A partir de 2017 o governo turco reconhece que a política de “Assad deve sair” já não era realista, mas ainda insiste em ser reconhecido com um ator legítimo dentro da Síria. No dia 20 de janeiro de 2017, no Fórum Econômico Mundial, Mehmet Şimşek, vice primeiro-ministro da Turquia, disse que, apesar do governo considerar Assad o principal culpado pelo “sofrimento do povo sírio”, “nós temos que ser pragmáticos, realistas: os fatos no terreno mudaram dramaticamente e não podemos mais insistir em tirar Assad, não é realista”.

A política externa foi reorganizada: a Turquia buscou conversar com o Irã e com a Rússia. Na Síria, os turcos criaram um santuário para os jihadistas em Idlib. A província virou uma carta nas mãos da Turquia, para mostrar poder e manter uma voz forte na crise síria. Através dela, o governo turco manteve o território sírio desintegrado, o que combina com a abordagem estratégica dos Estados Unidos. Erdogan também vislumbrou um ambicioso plano de alocação de pessoas na província, incluindo projetos de construção e desenvolvimento.

Um milhão de pessoas seriam instaladas nas novas comunidades e outro grupo de um milhão seria reinstalado em comunidades já existentes: 50 cidades de 30 mil habitantes cada e 140 vilas de 5 mil habitantes cada. A comunidade internacional contribuiria financeiramente para o projeto e empreiteiras turcas o executariam; o projeto de certa forma seria como uma forma de responder a problemas econômicos da Turquia.

A região serve como moeda turca, base de poder para negociar no tabuleiro internacional. As relações ambíguas e alternância conflito-cooperação entre a Rússia e a Turquia não deve nos surpreender nem nos confundir – os países estão fazendo intercâmbios que incluem pequenos choques militares. A província segue sendo um santuário para os jihadistas, mas a relação da Turquia com eles é marcada por algumas tensões e ambiguidades. Os combatentes mais próximos e mais protegidos pela Turquia são as milícias turcomenas.

Os jihadistas debaixo do guarda-chuva turco em Idlib estão no Hay’at Tahrir al-Sham. Independente de tensões, no fim a Turquia é quem fornece efetivamente cobertura militar, política e diplomática para o HTS, ao passo que o HTS oferece um grupo paramilitar organizado, disciplinado e numeroso para controlar a zona de influência turca, mesmo que a Turquia ainda disponha de grupos mais leais e diretamente subordinados ao comando turco.

A Turquia não assumiu nem o princípio de não-intervenção e de voltar se para si mesma de Ataturk, e nem o ocidentalismo do período dominado pelos militares. Formalmente, dizem que tem como prioridade agora “combater grupos terroristas”. Por um momento, alguns pensaram que a conversa com os russos levaria a Turquia a atacar os jihadistas e poupar só as milícias diretamente sob seu controle, levando a designação de terroristas para além das milícias curdas, mas não foi bem assim. Quem noticia avanços de jihadistas em Idlib é a mídia turca. A celebração é turca. Foi assim no dia 25 de fevereiro, quando declararam ter tomado o vilarejo Nairab. O porta voz jihadista Yusef Hamoud agradeceu a “ajuda de nossos amigos turcos” na sua realização.

O jihadismo não é um fator irrelevante, e a relação da Turquia com ele tem uma série de implicações para suas relações com a sociedade e outras partes do mundo. Como observou o orientalista e presidente do Instituto de Estudos Orientais da Acadêmia de Ciências Russas, Vitaly Naumkim, se voltar contra o HTS em Idlib poderia significar um duro golpe na reivindicação de legitimidade da Turquia como “protetora dos sunitas” nas visões mais militantes – seria atacar a principal força militar anti-governo na Síria.

Em Idlib também há a participação de uigures provenientes de Xinjiang (província da República Popular da China), que viviam na Turquia, lutando nas fileiras jihadistas, dentre a maioria de estrangeiros que preencheram esses grupos na Síria. Sua ideologia é apresentada, geralmente, mais como nacionalista, túrquica, do que jihadista: mesmo que o jihadismo acabe por se destacar como justificativa da luta na Síria, como uma defesa da ummah (comunidade islâmica). Esse caso é, então, ainda mais exemplar por mostrar a união do nacionalismo túrquico com o islamismo. Jisr al-Shughour, cidade estratégica em Idlib – que o Al-Masdar News chamou de “objetivo principal” do Exército Árabe Sírio neste ano de 2020 – é defendida por forças uigures ligadas ao “Partido Islâmico do Turquestão”. A Turquia está lidando com uma articulação internacional e, graças à sua presença na Síria, tem até ativos em uma das questões mais delicadas da política chinesa.

As prioridades da estratégia turca agora são:

– Se preservar como ator regional de primeira relevância – preservar força.

– Evitar o surgimento de novos estados, no caso Rojava ou ainda um “Grande Curdistão” (retirado do território de mais de um país), que pode ser apoiado por ocidentais em detrimento de interesses turcos.

– Preservar, na medida do possível, a popularidade de vanguarda muçulmana.

Controlar o destino de Idlib é crucial para a estratégia turca e não é um problema simples de ser resolvido. É o carteado da intervenção na Síria. A “comunidade internacional” formada pelo bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos criou a revolução do “Assad must go” (Assad deve ir embora) e daí vários países estavam apoiando seus grupos rebeldes de jihadistas favoritos. Antes, grupos notáveis de Homs, Daara, Ghouta e até Aleppo, ligados a países do Golfo ou preferidos pelos Estados Unidos, serviam para pressionar a Turquia; agora a Turquia tem seus interesses mais bem servidos pois possuem mais cartas na mão, o jihadismo na Síria não é mais aquela joint venture de 2012-2016 e está se tornando cada vez mais um empreendimento turco. Os turcos são players e facilitadores de qualquer política para a Síria e a região. Graças à sua presença na Síria, eles mantêm uma nova relação ambígua com os ocidentais, principalmente os Estados Unidos.

Os Estados Unidos e os europeus passaram a criticar a postura dura que Erdogan assumiu em relação aos imigrantes depois de sua virada nacionalista – usando mecanismos policiais e restringindo ao máximo o movimentos deles – o que não deixa de ser irônico, já que a Turquia recebeu mais migrantes do que a União Europeia e o mundo árabe. É irônico também que, nesse xadrez multidimensional, se a Europa sofre com ondas de migrantes, Putin e Erdogan precisam se acertar em relação a Idlib.

Depois que as cartas estão jogadas, perder Idlib de uma vez seria um grande fracasso para a Turquia: põe em questão sua capacidade de projetar poder. Erdogan não ficou de mãos abanando em suas negociações com Putin: cessar-fogo, corredores de segurança e mais algumas re-instalações de civis. Mais importante, a manutenção da tal zona de segurança (buffer zone) no norte, a garantia de que pelo menos por agora os turcos não vão perder a região, Putin não vai bombardeá-la, nem o Exército Árabe Sírio e nem milícias curdas vão ocupar aquele espaço. O arranjo segue de pé – por um tempo.

Putin foi ao encontro em março com a confiança de que a Rússia é o grande carrasco dos turcos e da decadência otomana, que praticamente ganhou todas as guerras. O analista Soner Cagaptay enfatiza que o grande erro de Erdogan é bater de frente com um concorrente regional histórico da Turquia (Irã) e com o maior nêmesis histórico (a Rússia) simultaneamente.

Em relação à Turquia, Putin está numa posição de vantagem. Nas negociações de março conseguiu o reconhecimento de todos os avanços do governo sírio. O cessar fogo se refere não às linhas combinadas pelos acordos de Sochi firmados em 2018, mas sim com as atuais “linhas de contato”. Mais importante, garante reconhecimento do controle sírio nas rodovias M4 e M5 (que ligam cidades importantes). 

A estratégia serve para ganhar e controlar o tempo e também ganhar reconhecimento da sua força e, se possível, de sua legitimidade (a legitimação dessa força). Os turcos deram legitimidade em troca de tempo.

Para além do som da metralha: os cantos de legitimidade

A ópera turca na Síria tem muitos movimentos e texturas; nos oferece lições que nos recordam do grande Carl von Clausewitz. Os conflitos geram vórtices do inesperado, pois fatores como a sorte aparecem ao lado de interesses políticos racionais – os objetivos se adaptam e se transformam na própria dinâmica do conflito, que tem várias facetas, mas que são unificadas por um polo político.

O vazio de poder é uma abertura para o estado turco, que tem uma oportunidade de ampliar o próprio poder e perseguir sua política. A situação excepcional é o momento de disputa pela decisão e de construção da legitimidade. O conflito e o exercício do poder não se resumem a uma dimensão estritamente militar ou violenta; além disso, mesmo o conflito militar, por ser inevitavelmente político, lida com polos que são ideológicos.

A política do estado turco recorreu a vários processos de construção de legitimidade. Recorreu a narrativas ideológicas como o otomanismo ou ao pan-turquismo, a imagens de soldados otomanos e de “filhos de lobos” das estepes, guerreiros que fundaram a comunidade turca. Com o islamismo, buscou fazer diplomacia através de sua política interna, o contato com lideranças religiosas e vínculo a mesquitas no exterior. Também buscou aliados no “grande espaço túrquico” que se estende principalmente em territórios da antiga União Soviética. O mais importante no contato desses países e atores diversos (partidos de minorias étnicas ou jihadistas) não é a afinidade cultural construída no tempo, mas a mobilização dessas afinidades pela política. Não a cultura ou a história como fatores imóveis e decisivos, mas um processo de legitimação política, que ocorre primariamente através da ideologia, que articula elementos da cultura e provém do processo histórico.

Estes processos não se restringem à atuação racional do estado turco e incluem outros atores sociais. A Turquia produz filmes e séries de qualidade sobre o período otomano, e esse período é celebrado de várias maneiras, é ostentado como artigo de identidade por alguns turcos. Na internet, há toda uma rede de conteúdo islamista que gira ao redor da construção de uma identidade sunita centrada na “Revolução Síria”, com narrativas de vitimização, de guerra, conquista, propostas políticas, histórias diárias, vídeos bem produzidos, imagens e montagens, que mobilizam milhões de usuários todos os dias. Não são fenômenos explicados por dinâmicas tradicionais da religião ou modernas da organização político-partidária, nem tão pouco restritos à mídia de massa da indústria cultural, mas fenômenos de uma comunicação altamente dinâmica e com redes de produção-consumo que se espalham por várias direções.

Esse conflito tem elementos próprios de nossa época, mas não podemos perder de vista fatores geográficos que tem um sentido milenar. Ainda que nós possamos falar muito em nome das montanhas, as montanhas também falam, mesmo que pouco, e ordenam as coisas humanas.

O problema na Síria toca em dois problemas geopolíticos primários da Turquia: o controle da Anatólia (que remete ao controle das montanhas e a questão curda) e a sua política para o mediterrâneo.

A Turquia é um desafio geopolítico para a Rússia devido à Crimeia – seu calcanhar de Aquiles, que pode regular o movimento do Mar Azov e da Bacia do Don – e as duas grandes passagens do Cáucaso. A outra zona de contato é o Mar Negro.

As montanhas e os mares falam, dão suas ordens, mas é a fala dos homens que multiplica os ordenamentos, quando os homens respondem às montanhas dizendo o que elas são e a quem elas pertencem. O sentido do espaço. Tanto na estratégia como na geopolítica se deve buscar navegar por momentos distintos; se deve pensar na metáfora da música por ela trazer essa ideia de polimorfo, capaz de atentar para a variedade, para o qualitativo, sem cair em um exercício quantificador ou em explicações unilaterais – acima de tudo, não se pode falar através de tabelas.

Talvez a metáfora da música seja mais forte se um dia um compositor fizer uma ópera ou sinfonia para Idlib – em que cada decisão e intervenção, a depender de sua importância, é uma nota, uma linha, um instrumento, um movimento. De toda forma, conservemos nossa metáfora da forma que pudermos: Erdogan dirige sua própria peça, mobiliza seus cantores e instrumentistas, desde comunicadores e soldados até engenheiros e jihadistas, para deixar sua ópera turca o mais forte possível, também fazendo seu melhor da forma que ele pode.

Quando o estado turco persegue sua política ou o jihadismo se espalha pelas redes de comunicação, não estão só produzindo propaganda ou criando identidades individuais, mas construindo um sentido do espaço e um sentido do tempo. Um sentido do espaço que uma hora expande por quilômetros além das fronteiras da Turquia, outra hora está enraizado no leste do país, ou ainda mais estrito nas montanhas do sudeste do país. Muda o sentido do tempo, que corre nos rápidos minutos da internet e na fugacidade da inesgotável produção de conteúdo, mas se estende em décadas de diplomacia e conflitos acumulados, até se entregar à tentação aniquiladora do tempo secular e milenar dos livros sagrados e dos antepassados desconhecidos; o tempo rápido do especulador, o tempo controlado do cotidiano do trabalhador, o tempo do pastor rural que assiste bombas cair ou assiste à transformação de vizinhos que pegam em armas. Soldados, agentes, mercenários e jihadistas que circulam por rotas diversas, às vezes passando por cidades tão antigas como Istambul, Paris, Beirute, Damasco, para se organizarem e se enfrentarem nos interiores mais bucólicos.

O tempo e o espaço podem parecer intransponíveis, imposições, tiranias, mas é neles que conforma a situação que permite os sujeitos construir suas mediações – eles oferecem possibilidades infinitas de negação, liberdade. Por essa senda que a geopolítica se relaciona com o própria construção do sentido do ser no mundo.

Em Idlib se disputa mais do que pedaços de terra ou pequenas fortificações, e os choques estão além do aço e do fogo: são formas distintas e opostas de estruturar o mundo, o tempo e o espaço, que disputam a primazia ao direito de negar e ao direito de construir.

Notas:

¹ – O correto é Erdoğan, o que faz um efeito de prolongamento da vogal anterior à consoante ao invés do som da consoante “g”. Mantemos Erdogan, no entanto, por razões editoriais.

² – Historicamente, o partido tem origens em movimentos religiosos e conservadores islâmicos, nascido dos ambientes religiosos e em uma intelectualidade crítica ao forte elemento secularista do kemalismo (Mustafa Kemal Ataturk, pai da Turquia moderna) turco, além de possuir um vínculo especial com a Anatólia e a parte oriental do país. O secularismo é uma questão tão importante que foi usado como justificativa em intervenções militares, dentre elas o memorando de 1997: os militares publicaram um memorando criticando o primeiro-ministro por sua esposa usar o véu sobre a cabeça como uma violação do caráter secular do Estado, o que iniciou uma avalanche nas instituições que derrubou o governo e culminou na dissolução por banimento do partido do governo, o Partido do Bem-Estar, antecessor do AKP, com a justificativa da Suprema Corte de “violar a separação da religião e do estado”. O partido também foi acusado de corrupção, em processos que culminaram na prisão de 68 membros; Erdogan, prefeito de Istambul e membro daquele partido, também foi preso por ter recitando um poema de  Ziya Gökalp, pan-turquista do início do século XX, acrescentando que “as Mesquitas são nossos quartéis, os domos nossos capacetes, os minaretes nossas baionetas e os fiéis nossos soldados”. A prisão de Erdogan foi feita com base em um artigo do código penal sobre incitação à violência, “ódio racial ou religioso”. Perdeu seu cargo de prefeito e passou um tempo banido da política, até fundar, finalmente, o AKP.

³ – Erdogan teve como aliados no processo de islamização o movimento gulenista (Fethullah Gülen), que funciona como uma sociedade responsável por várias iniciativas educacionais e sociais, com vários membros em posições importantes na sociedade Turquia. Os gulenistas no Estado auxiliaram a ofensiva de Erdogan contra elementos secularistas. Eventualmente, o próprio governo Erdogan se voltaria contra o movimento em 2014.

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