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Histórias por trás das Canções: Modo de Ser e Antonio Candido

Modo de Ser, de Carlinhos Vergueiro, baseado em ensaio literário de Antonio Candido, foi possivelmente o primeiro texto acadêmico musicado.
Modo de Ser, de Carlinhos Vergueiro, baseado em ensaio literário de Antonio Candido, foi possivelmente o primeiro texto acadêmico musicado. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera
(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

No segundo texto da série “Histórias Por Trás das Canções“, a Revista Opera conta a história de Modo de Ser, blues inspirado em um ensaio acadêmico do prof. Antonio Candido e composto por Carlinhos Vergueiro, na época genro do sociólogo.

O cantor e compositor Carlinhos Vergueiro, que lançou este ano o CD Tô Aí — disco que celebra 45 anos de carreira —, é conhecido por seus sambas em parceria com Adoniran Barbosa, Chico Buarque e João Nogueira, entre outros. No entanto, pouca gente sabe que Carlinhos foi genro do professor, sociólogo e crítico literário Antonio Candido, um dos pensadores brasileiros mais importantes do século XX. E mais: pouco se falou e pouco se fala a respeito de uma música de Carlinhos cuja letra é assinada por Candido — um detalhe curioso que agrega importância histórica a esta composição. 

Em 1988, como marco comemorativo de seus 15 anos de estrada, Carlinhos Vergueiro lançou um elepê que levava seu nome na capa e contava com a participação de vários artistas do primeiro time (Paulinho da Viola, Chico Buarque, Caetano Veloso, Djavan, Edu Lobo, Luiz Melodia e Ney Matogrosso, entre outros). Em meio a canções de relativo sucesso, como Torresmo à Milanesa e Noturno Paulistano, a faixa mais original do disco passou despercebida: Modo de Ser, justamente a única interpretada exclusivamente por Carlinhos no disco.

Na época em que a canção foi feita, Carlinhos Vergueiro era casado com a historiadora Laura de Mello e Souza, filha de Antonio Candido. Por este motivo, o compositor conviveu durante anos com o grande intelectual paulista e passou a se aprofundar na leitura de seus textos, tendo o privilégio de discutir alguns deles com o próprio autor, nos almoços em família. 

Um dos textos de Candido que Vergueiro mais gostava era um ensaio intitulado Esquema Machado de Assis, proferido entre abril e maio de 1968 nas Universidades da Flórida (Gainesville) e Wisconsin (Madison), nos Estados Unidos. Nele, o professor busca desmistificar a “dor da alma” idealizada pela maioria dos leitores (que atribuiria aos grandes escritores uma aura de sofrimento, nem sempre condizente com a realidade). O exemplo de Machado de Assis é o seu ponto de partida.

O primeiro parágrafo é assim: “Como nosso modo de ser ainda é bastante romântico, temos uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio. Dickens desgovernado por uma paixão de maturidade, após ter sofrido em menino as humilhações com a prisão do pai; Dostoiévski quase fuzilado, atirado na sordidez do presídio siberiano, sacudido pela moléstia nervosa, jogando na roleta o dinheiro das despesas da casa; Proust enjaulado em seu quarto e no seu remorso, sufocado de asma, atolado nas paixões proibidas — são assim as imagens que prendem a nossa imaginação”.

Antonio Candido não escreveu isto pensando em fazer uma letra de música, é claro, mas sem querer acabou dando ao parágrafo inicial alguma musicalidade — o que despertou em Carlinhos Vergueiro o desejo de musicá-lo. A ideia do compositor era homenagear o sogro transportando à canção popular um de seus mais conhecidos textos teóricos.

(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

O grande desafio era tornar o primeiro parágrafo cantável sem que fosse preciso passar por muitas alterações. Segundo Vergueiro, o blues era a linguagem musical que melhor se encaixava ali, não só no ritmo ditado pelo discurso, mas também na “atmosfera” sugerida pelas imagens que versavam sobre sofrimento, drama, paixões proibidas, etc. Por fim, comprovando a primeira impressão de que o texto de Candido tinha musicalidade própria, a canção nasce preservando seu conteúdo quase que na íntegra.

Modo de Ser destaca o trabalho cuidadoso de Carlinhos na transposição de um ensaio literário para uma letra de música, adaptando-a para que soasse como canção sem perder totalmente sua forma e o seu sentido original. Esquema Machado de Assis foi, possivelmente, o primeiro artigo acadêmico musicado. Até onde se sabe, uma experiência nunca repetida na MPB. 

Embora nunca tenha cogitado compor uma letra de música, Antonio Candido, que morreu em 2017, aos 98 anos, era muito ligado ao tema. Em 1965, por exemplo, publicou um ensaio sociológico que se tornaria um clássico do gênero — Os Parceiros do Rio Bonito, constituído por estudos de folclore e música brasileira. 

Nas palavras de Carlinhos Vergueiro, o ex-sogro admirava os compositores populares e tinha um apreço especial pelos paulistas Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa. Deste último se tornou amigo em 1975, depois de ser apresentado a ele pelo genro, em sua residência no Itaim Bibi: “No segundo elepê de Adoniran, o produtor Pelão convidou Antonio Candido para escrever a contracapa e eu fiz a ponte. Foi o texto mais inspirado que eu li a respeito do sambista. Essa contracapa foi responsável pelo primeiro encontro dos dois”, conta.

Modo de Ser
(Carlinhos Vergueiro – Antonio Cândido)

Como nosso modo de ser ainda é bastante romântico
Temos uma tendência quase invencível
Para atribuir aos grandes criadores
Uma cota pesada e ostensiva
De sofrimento e drama
Pois a vida normal parece incompatível
Com o gênio desgovernado por uma paixão
Fuzilado, atirado na sordidez do presídio
Sacudido pela moléstia nervosa
São assim as imagens que prendem a nossa imaginação
Coração, coração
São assim as imagens que prendem a nossa imaginação
De sofrimento e drama

Pois a vida normal parece incompatível
Com o gênio desgovernado por uma paixão
Fuzilado, atirado na sordidez do presídio
Sacudido pela moléstia nervosa
Enjaulado no seu quarto e no seu remorso
Atolado nas paixões proibidas
São assim as imagens que prendem a nossa imaginação
Coração, são assim, coração
São assim as imagens que prendem a nossa imaginação
De sofrimento e drama

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