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Marco D’eramo: vendendo cidadania

A cidadania é desigual: se você nasceu no Burundi, viverá uma média de 57 anos com U$300 por ano; se nasceu na Finlândia, os números são 80 anos e U$42.000
Marco D’eramo
Imigrantes do Triângulo Norte da América Central descansam em linha de ferro durante viagem pelo México, rumo aos Estados Unidos. (Foto: C. Palma / EU Civil Protection and Humanitarian Aid)

“Aux armes, citoyens!” (Às armas, cidadãos!). Assim começa o refrão de “La Marseillaise”, adotado como o hino nacional francês pela Convenção Revolucionária de 1795. Não mais servos, nem súditos, nem vassalos, mas iguais. Cidadão: uma categoria política que havia desaparecido com o mundo antigo (cives romanus sum) ressurgiu para encapsular os direitos conquistados pela Revolução e unir a comunidade imaginada do Estado-nação. Os direitos de cidadania seriam ampliados ao longo do tempo (direito à educação, direito à saúde, direito ao trabalho…), juntamente com seus deveres correspondentes (alistamento, dever de júri, imposição de impostos…). Aqui reside uma distinção fundamental em relação aos direitos humanos contemporâneos: o intuito de dar um conteúdo positivo a uma igualdade que, de outra forma, é formal e teórica, conforme expresso no princípio de “uma pessoa, um voto”.

Essa concepção de cidadania – e, portanto, do Estado – atingiu seu auge na década de 1960, e depois começou a declinar. Ela continua a ser considerada uma forma de pertencimento, que pode ser conferida pelo local de nascimento (ius soli), pela linhagem sanguínea (ius sanguinis) ou por um longo período de residência. No entanto, a cidadania foi “diluída”, como diz a expressão. Os direitos foram reduzidos (o fim do estado de bem-estar social) e os deveres encolheram (alívio da carga tributária), quando não foram totalmente abolidos (alistamento militar). Com o triunfo do neoliberalismo, ela foi transformada em uma mercadoria, ou seja, em algo que pode ser comprado e vendido. Existe agora, como escreve a socióloga americana Kristin Surak em “The Golden Passport”, uma “indústria da cidadania” que se estende por todo o mundo. O livro contém um tesouro de informações, dados e relatos em primeira mão sobre a história dos primeiros quarenta anos desse mercado.

Por que alguém precisaria comprar cidadania? Uma pessoa almeja outra nacionalidade porque nem todas as cidadanias são iguais. Nossas vidas dependem de uma “loteria do nascimento”. Como Surak nos lembra, se você nasceu no Burundi, pode esperar viver uma média de 57 anos com 300 dólares por ano à sua disposição; se nasceu na Finlândia, os números são 80 anos e 42 mil dólares. As grandes ondas migratórias que vemos hoje dependem dessa desigualdade geopolítica sem limites. As fronteiras (sobre as quais escrevi recentemente para o Sidecar) servem para manter esse abismo: a Turquia recebe 6 bilhões de euros por ano de Bruxelas para impedir que refugiados sírios, afegãos e outros entrem na União Europeia; a partir deste ano, a Tunísia está recebendo 1,1 bilhão de euros para conter a migração subsaariana. A minúscula república de Nauru (uma ilha de 21 quilômetros quadrados com uma população de 12,6 mil habitantes) ganhou metade de seu produto interno bruto na última década atendendo solicitantes de asilo rejeitados pela Austrália.

No entanto, embora a cidadania seja ferozmente desigual, ainda somos rotineiramente apresentados à ficção jurídica de que todos os Estados são igualmente soberanos – uma noção que remonta a “Le droit des gens” (O direito das gentes, 1758) de Emer de Vattel, que argumenta que se no estado de natureza os homens são iguais uns aos outros, apesar de todas as suas diferenças, então o mesmo deve se aplicar aos Estados. É claro que os Estados não são, de forma alguma, igualmente soberanos. Nauru não tem soberania igual à de um país como a Alemanha, apesar do fato de de ser voto ter o mesmo peso na ONU, poder abrir embaixadas em todo o mundo, oferecer imunidade a seus diplomatas e assim por diante. É nesse sentido que Surak cita Stephen Krasner, em seu livro “Sovereignty” (Soberania, 1999): “O que encontramos com mais frequência, quando se trata de soberania, é a hipocrisia organizada”. A reformulação da cidadania como uma mercadoria é resultado dessa contradição entre a igualdade formal e a desigualdade real. Como disse Thomas Humphrey Marshall em 1950, “a cidadania fornece a base da igualdade sobre a qual a estrutura da desigualdade pode ser construída”.

Naturalmente, muitos querem escapar dessa desigualdade; na grande maioria dos casos, isso ocorre por meio da migração. Mas para os poucos que podem pagar, há um elevador, e não uma escada, para subir os degraus da cidadania. Em geral, a cidadania é comprada pelas classes privilegiadas de estados desprivilegiados – aqueles que estão na periferia do comércio global, sujeitos a sanções imperiais, marcados por agitação política, guerra ou autoritarismo. O mercado da cidadania surge, explica Surak, “da confluência de desigualdades interestatais e intraestatais”. O preço da cidadania para o próprio indivíduo e sua família varia de algumas centenas de milhares de dólares a alguns milhões. Os compradores tendem a ser multimilionários, mas podem ser palestinos buscando status legal, empresários iranianos atingidos por sanções, membros das elites chinesas tentando se proteger da expropriação pelo partido-estado ou oligarcas russos buscando refúgio do governo volátil de Putin e, agora, dos perigos da guerra. Durante algum tempo, os maiores clientes foram os residentes de Hong Kong, preocupados com uma invasão de Pequim. Mas eles também podem ser gerentes e executivos de alto nível – indianos, paquistaneses, indonésios – que trabalham nos países do Golfo, que não têm o direito legal de permanecer lá quando se aposentam e não desejam retornar aos seus países de origem.

Justamente porque a cidadania de alguns países é um privilégio exorbitante, seus atuais detentores fazem questão de protegê-la erguendo barreiras intransponíveis. Portanto, mesmo para os extraordinariamente ricos, não é fácil comprar a cidadania de países no topo da pirâmide geopolítica (embora haja exceções: a França naturalizou o bilionário do Snapchat, Evan Spiegel, e a Nova Zelândia fez o mesmo com o bilionário fundador do Paypal, Peter Thiel). Outro caminho é comprar uma cidadania de nível inferior que lhe permita entrar e residir nos principais estados – a hierarquia de estados corresponde a uma hierarquia de mobilidade internacional. Aqueles com passaportes da União Europeia ou do Japão podem entrar livremente em 191 países; com passaportes dos EUA, em 180; com passaportes da Turquia, em 110. Em essência, escreve Surak, enquanto os imigrantes precisam morar no estado ao qual desejam se juntar, para aqueles que compram a cidadania, apenas o dinheiro precisa estar lá.

Os primeiros a capitalizarem o comércio de cidadania foram as nações do Caricom: os quinze microestados do Caribe com uma população combinada de 18,5 milhões. São Cristóvão e Névis rompeu o precedente ao promulgar uma lei em 1984 que concedia cidadania àqueles que investissem uma determinada quantia. Isso ficou conhecido como “Cidadania por Investimento” (CBI). Durante séculos, essas ilhas prosperaram com o açúcar – produzindo 20% da produção global no século XVIII – mas, na década de 1970, entraram numa crise econômica, exacerbada pelo crescimento do setor de cruzeiros. O programa CBI acabou gerando 35% do PIB do país. Ele tinha a vantagem de fazer parte da Comunidade Britânica, onde se aplica a lei comum, ou seja, onde a lei se baseia em decisões judiciais anteriores: a lei comum define apenas o que é proibido, enquanto a lei civil define o que é legal e, portanto, é muito mais restritiva. Não é de surpreender que estados da Comunidade do Caribe, como Antígua, Granada e Santa Lúcia, tenham seguido seu exemplo. Em seguida, veio Dominica, cuja economia era totalmente baseada em bananas, que eram exportadas principalmente para a Europa até que, na década de 1990, os regulamentos da OMC permitiram que a empresa Chiquita Brands organizasse um processo judicial bem-sucedido. Como a “guerra das bananas” que se seguiu levou a ilha à beira do abismo, o programa CBI se tornou seu principal ativo; a fim de igualar os benefícios de seus vizinhos da Comunidade Britânica das Nações, Dominica ofereceu cidadania a taxas mais baixas e outros benefícios (como facilitar a mudança de nome). Desde 2009, os passaportes de São Cristóvão e Antígua dão a seus portadores acesso gratuito ao Espaço Schengen (27 Estados europeus); desde 2015, Dominica, Granada e Santa Lúcia oferecem o mesmo benefício.

A conveniência de um passaporte depende da mobilidade que ele proporciona. Nesse sentido, a cidadania é diferente da residência. Há cerca de cinquenta países (entre eles Portugal, Espanha, Austrália e EUA) que, em troca de investimento, oferecem residência, mas não cidadania. A mobilidade, no entanto, não depende tanto do Estado naturaliza um cidadão quanto aquele que o deixa entrar (em 2015, por exemplo, São Cristóvão perdeu a entrada livre no Canadá e seu passaporte foi desvalorizado). É por isso que, à medida que o setor de cidadania foi progredindo da sua fase artesanal, desenvolvendo mais regras e procedimentos, os grandes estados ganharam influência crescente sobre a concessão da cidadania. Para adquirir a cidadania dos microestados do Caribe, agora é necessário que os Estados Unidos (e, cada vez mais, também a UE) deem sua aprovação.

No Mediterrâneo, os principais vendedores de cidadania têm sido Malta e Chipre, por motivos relacionados à sua história. No caso de Malta, isso se deve ao idioma inglês, à sua localização e ao fato de ser membro da União Europeia. Os termos de seu programa CBI foram muito contestados tanto pelos partidos de oposição malteses quanto pelo Parlamento Europeu, que impôs um limite máximo de 1,8 mil naturalizações; ele foi encerrado em 2020, mas desde então foi reaberto com um limite máximo de 400 naturalizações por ano e 1,5 mil no total (ao preço módico de um investimento de 700 mil libras, mais 50 mil libras por membro da família ou funcionário). O Chipre também tem a vantagem de estar na UE, mas também fazia parte das nações não alinhadas durante a Guerra Fria e tinha um forte Partido Comunista. Quando a URSS entrou em colapso, o país ainda tinha uma grande população de profissionais falantes de russo, muitos deles nas áreas jurídica e financeira, com fortes conexões com Moscou. Em pouco tempo, o estado tornou-se o destino favorito dos russos devido à sua proximidade, sua exposição ao sol e ao acesso à Europa. Sua capital foi renomeada não oficialmente como “Limassolgrad” ou “Moscou Ensolarada”, “com escolas russas, lojas russas, clubes russos, restaurantes russos, jornais russos”, informa Surak. No entanto, com a crise grega de 2013, a Troika impôs grandes taxas (chegando a 100%) sobre todos os depósitos bancários não cobertos por seguro acima de 100 mil euros e, vários anos depois, o programa CBI do Chipre foi encerrado, exatamente quando a pandemia elevou a demanda por passaportes daqueles que queriam escapar de bloqueios draconianos impostos na China e em outros lugares. Os russos tiveram que procurar um novo refúgio.

Eles o encontraram na Turquia, um candidato incomum entre os vendedores de cidadania. Com uma população de 80 milhões de habitantes e um exército poderoso, a Turquia é uma das 20 economias mais fortes do mundo. No entanto, atualmente, ela recebe mais da metade dos compradores de cidadania do mundo. O país pode não ser membro da UE, mas tem outras vantagens. Diferentemente dos microestados do Caribe ou de Vanuatu, ou mesmo de Malta, Istambul é uma metrópole perfeitamente habitável para um expatriado abastado. No início, a maioria das solicitações vinha do Iraque, Afeganistão, Palestina e Egito. Depois, vieram os estrangeiros de Dubai. Com a Covid-19 e, depois, com a guerra na Europa, ucranianos e paquistaneses se juntaram às suas fileiras. Para os iranianos abastados, a Turquia tem um apelo especial – não apenas porque é um país vizinho e um dos poucos em que os iranianos podem entrar sem visto, mas também porque a lira turca sofreu uma forte desvalorização (nos últimos dois anos, perdeu metade do seu valor em relação ao dólar) devido à alta inflação (39% este ano). Os iranianos são menos penalizados por sua própria desvalorização e inflação ao comprar imóveis na Turquia do que em qualquer outro lugar: atualmente, eles estão comprando uma média de 10 mil unidades habitacionais por ano. Esses ativos são lucrativos, pois os preços das moradias estão subindo em Istambul e em toda a costa do Mediterrâneo. Como disse uma agência de pedidos de cidadania, “você pode pensar na Turquia como um lar, um seguro e um investimento”.

É desse modo que a cidadania foi mercantilizada, transformada em um produto semelhante a instrumentos de investimento. Embora, em comparação com o fluxo mundial de migrantes (cerca de 200 milhões), as naturalizações por investimento sejam insignificantes (cerca de 50 mil por ano), elas revelam mais sobre a cidadania do que poderíamos supor. Por exemplo, sobre o quanto a cidadania em um Estado afeta a cidadania fora do Estado, já que sempre a carregamos conosco e não podemos nos desfazer dela. Ao visitar a Índia, sempre me surpreendi com a capacidade dos habitantes locais de adivinhar a nacionalidade dos turistas europeus. Percebi que nosso sistema de nacionalidade é para eles uma espécie de sistema de castas, e que eles são bem treinados para distinguir entre as muitas castas com as quais cresceram (há cerca de 3 mil no total, com 25 mil subcastas).

Talvez o fenômeno mais curioso relatado por Surak seja o dos norte-americanos que buscam dupla nacionalidade. Muitos deles são residentes estrangeiros que não querem continuar pagando impostos aos EUA (onde o regime tributário estipula que você deve contribuir, não importa em que lugar do mundo você viva ou obtenha sua renda). Outros buscam uma segunda nacionalidade para poderem viajar. Uma grande socióloga com dupla nacionalidade me disse que, desde o 11 de setembro, ela sempre viaja com seu documento europeu. Outros solicitaram outra nacionalidade depois da eleição de Trump. Quem sabe o que eles farão em 5 de novembro, data das eleições gerais dos EUA.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Sidecar O Sidecar é o blog da revista New Left Review, fundado em 2020.

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