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Fuzis e canetas: o golpismo, a lei e a força

O golpismo não é só a violação da lei; é sua violação pelas forças legitimadas pelo Estado. Somente a força pode assegurar o fim da tutela e das ameaças militares.
01.01.2023 – Luiz Inácio Lula da Silva assume pela 3ª vez a Presidência da República e torna-se o 39º Presidente do Brasil. (Foto: Ricardo Stuckert / Lula Oficial)

No seu clássico “Uma história da guerra”, o historiador e professor da Real Academia Militar da Inglaterra, John Keegan, trata de dois fundamentos contraditórios que convivem e compõem uma certa “normalidade cultural” em boa parte das sociedades modernas, em especial no Ocidente: o pacifismo e o uso legal da força. 

“Os limites da guerra civilizada são definidos por dois tipos de humanos antitéticos, o pacifista e o ‘portador legal de armas’. […] Nossa cultura busca compromissos, e o compromisso ao qual chegou sobre a questão da violência pública é desaprovar sua manifestação, mas legitimar seu uso. O pacifismo foi elevado a um ideal; o porte legal de armas – sob um código rigoroso de justiça militar e dentro de um corpus de leis humanitárias – foi aceito como uma necessidade prática”, escreve. “Nossas instituições e leis, dizemos para nós mesmos, estabeleceram tantas restrições à potencialidade humana para a violência que, na vida cotidiana, nossas leis irão puni-la como criminosa, enquanto sua utilização pelas instituições de Estado tomará a forma particular de ‘guerra civilizada’”.

Uma das consequências desse modo de ver o mundo, que apelidei de “tara normalista” em outro artigo, é a insistência em considerar como impossível a existência ou a vitória de quaisquer atos de violência pública que não estejam restritos à lógica da “guerra civilizada”. Atos como os que assistimos no último domingo (8) em Brasília. “Nossa dieta diária de notícias traz relatos de derramamentos de sangue, muitas vezes em regiões bem próximas a nossas terras natais, em circunstâncias que negam completamente nossa concepção de normalidade cultural. Mesmo assim, conseguimos confinar as lições da história e das reportagens em uma categoria especial e separada de ‘alteridade’ que não invalida nossas expectativas de como nosso próprio mundo será amanhã e o dia seguinte de forma alguma”. Até que, de repente, estas expectativas são destruídas por um ato intempestivo qualquer.

O princípio é o de que a caneta da lei contém a força do fuzil; ou, no mínimo, a regula e comanda para que contenha os que não sejam legítimos. Por trás do princípio, no entanto, mora um idealismo infantil: um que mascara que a caneta só pode dirigir a força na medida em que se sustenta, antes, na força. Assim como qualquer um pode fazer uso das armas “incivilizadas”, e por isso ter de enfrentar a furiosa combinação de lei e força da “guerra civilizada” (como ocorreu após os eventos do dia 8, com a prisão de milhares de golpistas), também é verdade que qualquer um pode escrever leis e exigir seu cumprimento – mas nem por isso tais leis serão consideradas válidas ao ponto de serem cumpridas pelos detentores “legítimos” da força.

Até aqui, nada demais. Estamos descrevendo um ato excepcional pontual – a invasão às sedes dos Três Poderes – e a resposta “normal” do Estado – a repressão, e depois a punição dos golpistas nos termos da lei. Podemos baixar nossas sobrancelhas e suspirar, voltar a considerar que acontecimentos na Bolívia, Peru, Colômbia ou Sri Lanka estão suficientemente distantes de nossa realidade: “mais uma vez as instituições venceram”.

Mas e se damos um passo atrás, e nos lembramos que foi precisamente o aparato de “guerra civilizada” que não só permitiu  a ação dos incivilizados golpistas, como também as protegeu e legitimou? E quando a força, embora regulada, se opõe à própria lei que a legitima? E quando o que sem legitimidade alguma inventa leis é aquele que, pela força, pode efetivá-las? Abandonar a falsa premissa de que é a lei que regula a força, e não a força que impõe a lei, deve levar às suas consequências práticas.

O fuzil como intérprete e legislador

As responsabilidades de militares, da ativa e da reserva, nos atos do dia 8, sejam por inépcia, omissão ou ativa simpatia, estão ainda sob investigação. Mais importante que estas responsabilidades individuais, no entanto, é o quadro geral que as gerou; a responsabilidade institucional das Forças Armadas, em especial do Exército, nos atos de domingo em Brasília. Para jogar-lhes luz, convém rememorar alguns fatos.

No dia 30 de outubro do ano passado, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil. Já no dia seguinte, quando muitos de seus apoiadores ainda curavam a ressaca dos festejos pelo resultado eleitoral, apoiadores do candidato derrotado, Jair Bolsonaro, bloqueavam estradas por todo o País. Estes atos se arrastaram por vários dias, alguns mais violentos que outros, até que, desistindo das estradas, os golpistas foram acampar em frente aos quartéis, a partir dos quais, em coro ridículo e covarde, imploravam para que os militares movessem um golpe.

Apesar de tais manifestações serem flagrantemente criminosas (Art. 286 do Código Penal), e apesar de representarem, em si, um risco para a segurança dos próprios quartéis (ficou demonstrado afinal que homicidas, terroristas e traficantes de drogas anciãs estavam entre os acampados nas portas das instalações militares), os comandantes das três Forças Armadas emitiram uma nota no dia 11 de novembro defendendo a manutenção dos atos. Por meio de uma interpretação completamente absurda, afirmavam ali, conjuntamente, que as manifestações não constituíam crime, porque eram pacíficas, e que condenáveis seriam “eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos”. Como escrevi então, “as três Forças se arvoram ali como intérpretes da lei, e nessa condição expressam, de antemão, qual é sua interpretação constitucional. Interpretam e julgam; executarão também? […] Que a interpretação não caiba às Forças Armadas significa somente que tal ato as serve como ameaça.”

Outro aspecto que chamava atenção na nota era a referência, já no primeiro parágrafo, à ideia de Poder Moderador. Nela, os comandantes afirmavam que as Forças “reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro, com a democracia e com a harmonia política e social do Brasil, ratificado pelos valores e pelas tradições das Forças Armadas, sempre presentes e moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. Criação do pensador francês Benjamin Constant, o Poder Moderador tinha por objetivo evitar a “anarquia” e o “derramamento de sangue” ao qual, na visão do autor, a separação de Poderes na Françå perigava levar. Para evitar esse cenário, caberia a criação de um Quarto Poder, capaz de mediar eventuais conflitos institucionais. No Brasil, o conceito foi instituído na Constituição de 1824, e o Poder Moderador passou a valer para o imperador Pedro I. É este o poder, que media e tutela as relações entre os Poderes, que as Forças Armadas buscam afirmar como seu quando se referem ao seu papel “moderador”.

Na noite da diplomação de Lula, em 12 de dezembro, manifestantes queimaram ônibus, quebraram carros e tentaram invadir a sede da Polícia Federal em Brasília. Embora os atos de violência incivilizada tenham tornado impossível continuar afirmando que os manifestantes eram “pacíficos”, as Forças Armadas não acharam conveniente dar um passo atrás na sua interpretação. No dia 24 daquele mês, véspera de Natal, outro caso de violência incivilizada: três frequentadores dos acampamentos golpistas planejaram explodir um caminhão-tanque nas proximidades do Aeroporto de Brasília. A interpretação das Forças Armadas se manteve.

Apesar dos bloqueios, da quebradeira, dos atentados mal-sucedidos e das ameaças, Lula subiu a rampa no dia 1 de janeiro de 2023. No dia seguinte, quando empossado, o novo ministro da Defesa, José Múcio, disse considerar os acampamentos golpistas “manifestações da democracia”, confessando inclusive ter “amigos e parentes” ali. Como se vê, só ecoava o que os comandantes das Forças Armadas haviam afirmado em nota dois meses antes.

Seis dias depois, no dia 8 de janeiro, a multidão raivosa, reunida em frente ao Quartel General de Brasília, se dirigiu à Praça dos Três Poderes, invadindo as sedes das instituições e as quebrando. Está claro que a Polícia Militar do Distrito Federal, submetida ao comando do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, pouco fez para impedir a destruição. O que ainda não está claro é por qual razão o Batalhão da Guarda Presidencial, responsável pela segurança do Palácio do Planalto, não impediu a entrada dos golpistas na sede do governo. “Teve muita gente da PM conivente. Muita gente das Forças Armadas aqui dentro conivente. Eu estou convencido que a porta do Palácio do Planalto foi aberta para essa gente entrar porque não tem porta quebrada. Ou seja, alguém facilitou a entrada deles aqui”, disse Lula.

Mesmo após a destruição e a decretação da intervenção federal, o Exército seguiria protegendo os golpistas. Quando um destacamento policial chegou ao acampamento em frente ao QG do Exército, tanques e soldados estavam mobilizados para impedir sua entrada. De acordo com o The Washington Post, o próprio comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, teria declarado ao ministro da Justiça, Flávio Dino: “vocês não vão prender ninguém aqui”. O fato indiscutível é que, além de ter dado guarida física, moral e legal aos acampamentos golpistas e falhado em impedir a invasão do Palácio do Planalto, mesmo após a destruição da Praça dos Três Poderes o Exército deu refúgio a criminosos golpistas. Fazia, simplesmente, o que havia ameaçado em 11 de novembro: impedir que “agentes públicos” cometessem o que ele (o Exército) interpreta como “eventuais restrições a direitos”. O fuzil decretava: o crime será lei, a lei será crime

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Que mensagem o fuzil escreve quando dá guarida aos atos de violência incivilizada mas, contrariando sua missão – aquilo que a caneta determinou como razão para que sua violência seja legítima –, falha em proteger a caneta? Não está escrito em pedra o significado de um Exército que ameaça “agentes públicos” para proteger golpistas, mas não protege o Palácio presidencial destes mesmos golpistas? Quando os legítimos detentores da violência fazem a “guerra civilizada” contra as canetas que legitimam sua posição, não é evidente que deixam de ter legitimidade? Mas, o que é mais grave: a partir deste momento não se torna inócua toda legitimidade advinda das canetas, na medida em que lhes falta a sustentação dos fuzis? É este o infernal paradoxo que nós encontramos, e qualquer um que não o diga, ou que tente legitimá-lo, não faz mais do que alinhar-se ao mais forte, torcer e apoiar o fuzil contra a caneta.

Como escrevi em novembro passado, “a bricolagem bizarra feita pelos comandantes […] revela somente que, mais do que Poder Moderador, desejam é transformar sua supremacia armada em soberania política: interpretar as leis como lhes convir, atrasar e depois adiantar relatórios, invadir espaços que não lhes pertencem, bloquear o voto popular quando ele não lhes agrada, julgar o que não lhes cabe. Em uma palavra, não se submeter: e perceba o leitor que tudo isto que desejam foi, nos últimos meses, tudo o que de fato fizeram.”

Fuzil contra fuzil

O Exército só afirma como sua a posição de Poder Moderador porque tem como contracheque desta sua reivindicação a sua própria força. É nesse sentido que, embora importante, seja inócuo afirmar que o Poder Moderador já não existe mais. Os fuzis e seus portadores sabem que o que demandam como direito é uma invencionice sua – ainda assim, a partir da força, afirmam sua existência, que a princípio têm mais capacidade de sustentar do que seus inimigos têm de negar. Na medida em que o fuzis interpretam, também legislam: podem as canetas impedir que executem? Em uma palavra, pode a força da lei submeter a lei da força?

Muitos se perguntam o que fazer, e passam a rascunhar uma série de alterações legais ou curriculares em relação às Forças Armadas, esquecendo-se que a condição para qualquer mudança que as impeça de seguirem subvertendo a lei por meio da ameaça do uso da força é a própria força. Pra que a caneta possa escrever, é preciso opor fuzil contra fuzil. 

Olhando a longa trajetória histórica do Brasil, é visível que desde a colonização, no século 16, até a proclamação da República, no final do século 19, o Exército teve sua força reduzida e contida. Cientes de que o fuzil pode mais do que a caneta, a classe dominante brasileira e seus dirigentes mantiveram sempre, ao lado das forças regulares – Exército, Marinha – forças irregulares independentes, e muitas vezes mais poderosas. A primeira delas foi o Corpo de Ordenanças, espécie de milícia privada latifundista. Especialmente a partir do século 18, surge com destaque, também, o Corpo de Milícias, e depois, após a Independência, as guardas policiais. “Daí as três categorias militares, exército, milícias e guardas policiais, com efetivo fixado anualmente e, ainda, fixado anualmente o processo de recrutamento. O Exército destinava-se a defender as fronteiras e nelas estacionar; as milícias incumbiam-se de manter a ordem pública nas comarcas, dentro de cujos limítes permaneceriam, sendo eletivos e temporários os seus oficiais, a exceção dos majores e ajudantes; as guardas policiais eram encarregadas de fornecer a segurança dos indivíduos, perseguindo e prendendo os criminosos. Só em casos de rebelião ou invasão estrangeira poderia o governo desviar tais tropas de seu mister privativo”, escreve Sodré. A partir de 1831, a complexa estrutura militar é simplificada. Lei de 18 de agosto de 1831 cria as Guardas Nacionais, “e extingue os corpos de milícias, guardas municipais e ordenanças”.

A divisão de forças armadas em tropas regulares e irregulares, existente no Brasil por quase quatro séculos, tinha o óbvio objetivo de impedir que um só comando tivesse o acesso exclusivo à força, mantendo um desequilíbrio de forças cuja resultante era a estabilidade. “Como ninguém pensa começar a guerra se não pode fazê-lo com vantagem e todos estão atentos e tensos para não deixar a nenhum uma vantagem, uma espada mantém a outra em repouso e sucederá uma paz crônica que só poderá ser interrompida por acontecimentos causais”, como escreveu Fichte em suas notas sobre Maquiavel.

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O fenômeno que altera essa correlação de forças, permitindo ao Exército fundar a República às espadadas em 1889, é a Guerra do Paraguai. Ao final da guerra, não só o Exército havia se fortalecido politicamente, como também a Guarda Nacional havia se enfraquecido (embora se tivesse tentado ainda aumentar o efetivo desta última e diminuir o do primeiro). Após a proclamação da República, o movimento das Forças Armadas para garantir a si o comando exclusivo da força é contínuo: em 1918, a Guarda Nacional é incorporada e subordinada ao Exército; em 1922, deixa de existir. Restavam, ainda, as Forças Públicas, chamadas de “pequenos exércitos estaduais”, que contavam inclusive com material bélico pesado. A mais importante delas, a Força Pública paulista, enfrentaria o Exército em duas ocasiões: em 1924 e em 1932. É a partir da Revolução de 1930, e especialmente após o golpe que institui o Estado Novo, em 1937, que as forças policiais estaduais têm sua relevância reduzida, na mesma medida em que cresce a das Forças Armadas. Após a Segunda Guerra, na Constituição de 1946, as Forças Públicas tornam-se Polícias Militares, agora consideradas forças auxiliares e de reserva do Exército, com a gradual transferência de seu papel como “pequenos exércitos estaduais” para forças de segurança pública. A centralização das polícias pelo Exército aumenta na ditadura, em especial por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares, criada em 1967, que, entre outras atribuições, regula e controla o material bélico das polícias. Na saída da ditadura, na década de 1980, a pressão militar sobre a Assembleia Constituinte garante a manutenção de tal relação entre as Forças Armadas e as polícias, sendo estas últimas conservadas como forças auxiliares e de reserva do Exército.

Para pôr fim à tutela militar, silenciar o clamor dos fuzis sobre um “Poder Moderador” e anular suas ameaças, convém, antes de tudo, disputar e repartir o monopólio da força. Para esse fim, toda medida que impeça às Forças Armadas fazer qualquer ameaça ou “começar alguma guerra” sem que estejam em posição de segurança é boa – a educação do povo; a organização de partidos; a retirada das polícias do controle do Exército; a criação de novas organizações e instituições armadas. Nada disso tem como fim efetivar o combate, mas precisamente cumprir a função de uma espada que mantém a outra em repouso. Em contraponto, toda medida que, fortalecendo as Forças Armadas, aumente seu monopólio da força em relação ao restante da sociedade, é má – participação em missões de paz como a do Haiti; participação em operações de Garantia da Lei e da Ordem; aumento de efetivos e despesas militares (pouco adianta comprar aviões e tanques imaginando que por isso os militares se calarão); recriação de ministérios como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), etc. 

A proposta de criar uma Guarda Nacional para garantir a segurança de áreas sensíveis do Distrito Federal, estudada pelo governo, é boa precisamente por isso – mas insuficiente se restrita a poucos efetivos e ao Distrito Federal. E não surpreenderá ninguém se, mesmo para efetivar essa tímida medida, for necessária uma ampla mobilização popular. Daí porque é inexplicável que, após o 8 de janeiro, num momento em que 93% da população condena os atos golpistas, Lula não tenha ainda mobilizado suas bases e a opinião pública mais claramente contra aqueles que ameaçam o País: não a guerra incivilizada, os fuzis ilegítimos; mas a guerra civilizada, os fuzis legitimados.

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