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Luis Fernando Veríssimo, o artista que retratou o Brasil

A genialidade de Veríssimo era perceber que o cotidiano é um palco onde todos atuamos sem ensaio, e que o riso é o aplauso involuntário de quem reconhece a própria trapalhada

Frei Betto
O escritor Luis Fernando Veríssimo durante n Sessão de homenagem a Zuenir Ventura no 13º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo (28/06/2018). (Foto: Alice Vergueiro/Abraji)
O escritor Luis Fernando Veríssimo durante n Sessão de homenagem a Zuenir Ventura no 13º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo (28/06/2018). (Foto: Alice Vergueiro/Abraji)

Conheci Luis Fernando Veríssimo na casa de seus pais, Mafalda e Érico Veríssimo, no arborizado bairro Petrópolis, em Porto Alegre, em 1974, ao sair da prisão. Fui agradecer a Érico as várias caixas repletas de livros enviadas por ele, a meu pedido, à biblioteca da penitenciária de Presidente Venceslau (SP), onde a ditadura me isolou, entre presos comuns, por quase dois anos.

Interessado em reler “O Tempo e o Vento”, que se encontrava em poder de Pedro, vizinho à minha cela, passei semanas insistindo que terminasse de lê-lo. Um dia me confessou que protelava o repasse do livro porque havia gostado tanto que comprara grossos cadernos para copiar à mão cada volume da trilogia. Fiquei tão impactado que narrei o fato em carta ao Érico. Semanas depois ele fez chegar à penitenciária caixas contendo livros seus e de outros autores.

Costumava encontrar Lúcia e Luis Fernando em eventos literários, na casa deles em Porto Alegre e também no Recife, no apartamento de Leda Alves e Hermilo Borba Filho, onde o casal e eu nos hospedávamos em visita à capital pernambucana. Parecia que as conversas naquela sala, com vista para a praia de Boa Viagem, já viessem com direitos autorais, prontas para virar peça, conto, crônica, anedota de botequim ou até mesmo discurso de formatura.

Um fim de tarde, ao ser provocado sobre a política da época, Veríssimo disse algo tão simples e devastador que, até hoje, me parece uma síntese do Brasil: “O problema não é que estamos mal-governados. O problema é que estamos bem governados por quem não devia governar.” Disse isso ao mexer o café, como quem fala sobre o tempo. E pronto, se calou.

Em qualquer ambiente Veríssimo tinha a peculiaridade de estar presente e, ao mesmo tempo, parecer um personagem de si mesmo, recolhido ao silêncio, entretido com a sua subjetividade como se fosse um monge budista. Era como se tivesse sido inventado por Henfil, escrito por Millôr e retratado pelo traço de Chico Caruso. 

Em meus lançamentos de livros no Rio, no “Esch Café”, no Leblon, Veríssimo se fazia presente em companhia de Chico Caruso e Jaguar. Na roda de amigos, lembrava o passageiro clandestino de um navio que, ao ser descoberto, não era expulso, e sim convidado para reger a orquestra. Escutava mais do que falava, e quando se pronunciava, vinha a frase curta, seca, tão exata que parecia ensaiada por séculos de reflexão. 

Convidado a fazer palestras, Veríssimo não discorria sobre o tema, preferia que o público o inquirisse. Assim, o caráter dialógico imprimia vivacidade ao evento. Em especial quando cessava o palavrear, retirava da caixa o saxofone e improvisava um show de jazz.

Veríssimo escrevia como quem bebe café sem açúcar, em gole rápido, quente, às vezes amargo, mas sempre pertinente. Seu humor político fugia a todos os parâmetros proselitistas. Ácido, contundente, tanto nos textos quanto nas charges vinha banhado de inteligência.

 Leia também – Ser pobre e leitor no Brasil: um manual prático para o livro barato 

Era um cronista que não escrevia apenas sobre o Brasil; radiografava a condição humana. Seus personagens, como Ed Mort, detetive particular trapalhão, Analista de Bagé, Velhinha de Taubaté, as Cobras, Família Brasi e Dora Avante, expressam e espelham nossas facetas mais abscônditas e, ao mesmo tempo, ridículas e verdadeiras. Veríssimo era o gênio da banalidade, elogio superlativo a um artista que tocava muito mais que sete instrumentos – escritor, humorista, cartunista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista. Foi também publicitário e revisor de jornal.

Ele era o mais convincente dos disfarçados. Escrevia sobre um casal brigando pelo controle remoto e fazia parecer que narrava a Guerra de Troia. Descrevia um jantar insosso como quem pinta o teto da Capela Sistina. E fazia rir. Rir de verdade, rir de si mesmo, rir tanto a ponto de não sabermos por que estamos rindo. Em plena ditadura, no universo verissimiano rir não era uma opção estética, era uma forma de sobrevivência.

Veríssimo não precisava de grandes acontecimentos para escrever. Bastava-lhe um espirro, um engarrafamento, um pedaço de queijo esquecido na geladeira, e pronto, virava crônica. A genialidade estava em perceber que o cotidiano é um palco onde todos atuamos sem ensaio, e que o riso é o aplauso involuntário de quem reconhece a própria trapalhada.

Em seus lançamentos de livros, talvez os leitores tivessem vontade de, em vez de autógrafo, pedir a receita da felicidade em pílulas. Porque, no fundo, todos suspeitavam que ele escondia no bolso a fórmula simples de rir das desgraças antes que elas rissem de nós.

Não pensem que Veríssimo era apenas um comediante com o manual de erudição debaixo do braço. Ele tinha a melancolia elegante dos humoristas de verdade. Sabia, como poucos, que a ironia é irmã da tristeza e, às vezes, o riso é apenas uma forma de dizer que não vale a pena chorar. Seu segredo era rir e fazer rir com poesia, zombar com delicadeza, atirar pedras com a mão enluvada.

E pensar que o encontrei tantas vezes e nunca lhe perguntei como conseguia manter tamanha leveza naquele corpanzil. Talvez a resposta fosse esta: aprenda a rir de si mesmo com a seriedade de quem sabe que a vida, se não for engraçada, não tem a menor graça.

(*) Frei Betto é escritor, autor de “Minha Avó e seus Mistérios” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org

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