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Inteligência artificial, lucros fictícios

A Inteligência Artificial não está construindo a economia dos EUA — está inflando a próxima crise do capitalismo

Gary Wilson
Com febre da Inteligência Artificial, trilhões são despejados em centros de dados, chips e infraestrutura em nuvem – tudo com base na suposição de que os lucros futuros justificarão os custos exorbitantes de hoje.(Foto: Leonardo Rizzi / Flickr)
Com febre da Inteligência Artificial, trilhões são despejados em centros de dados, chips e infraestrutura em nuvem – tudo com base na suposição de que os lucros futuros justificarão os custos exorbitantes de hoje.(Foto: Leonardo Rizzi / Flickr)

A economia dos EUA não está em expansão – está levitando. O que a mantém em alta não é a produtividade ou a inovação, mas a especulação.

A chamada “revolução da IA”, aclamada como um novo alvorecer industrial, é, na realidade, uma enorme bolha – uma febre especulativa que leva os preços das ações muito além do que a tecnologia pode realmente oferecer.

A anatomia de uma bolha

Uma bolha especulativa se forma quando o preço de algo – como ações de empresas de tecnologia – sobe muito além de seu valor real e sustentável.

Esse valor real não vem do hype do mercado ou de lucros rápidos, mas da força de trabalho dos trabalhadores – sua capacidade de criar mais valor do que recebem.

Mas, em uma bolha, os preços sobem não porque a produção real ou a criação de valor estão se expandindo, mas porque os investidores estão perseguindo promessas – cada um apostando que outra pessoa pagará ainda mais pelo mesmo ativo.

O padrão não é acidental. Ele está embutido no próprio capitalismo.

Primeiro passo: o capital precisa se expandir

O capitalismo funciona com uma lógica de “expandir ou morrer”. Toda empresa deve crescer constantemente para sobreviver – gastando mais, produzindo mais e inovando mais do que seus rivais.

Quando uma onda de crescimento desacelera, o capital busca outra.

Depois que os smartphones e as mídias sociais deixaram de gerar lucros explosivos, os investidores foram em busca de uma nova fronteira. Eles encontraram uma na inteligência artificial.

O sonho das “máquinas inteligentes” se tornou uma nova corrida do ouro. Os investidores declararam que a IA transformaria todos os setores – da saúde ao direito – e não se importaram que a maioria das promessas estivesse a décadas de se tornar realidade. A única coisa que importava era que a IA parecesse grande o suficiente para sustentar a expansão.

Passo dois: o crédito faz com que pareça real

Uma vez que o hype se instala, as comportas do crédito se abrem. Trilhões são despejados em centros de dados, chips e infraestrutura em nuvem – tudo com base na suposição de que os lucros futuros justificarão os custos exorbitantes de hoje.

Marx denominou esse estágio de “prosperidade fictícia” – uma expansão de créditos em papel sobre lucros futuros que não têm base imediata no valor criado pelo trabalho. Isso cria a aparência de crescimento, sem sua substância.

A IA agora desempenha esse papel. O capital está sendo investido em tecnologias que ainda não produzem mais-valia, mas inflacionam os balanços das empresas por meio de especulação e contratos estatais.

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Os mercados de ações disparam, os investimentos crescem e os políticos aclamam a “economia da IA” como prova da recuperação de uma economia ainda viciada em crédito barato. Por baixo da superfície, os lucros são escassos – tudo é alimentado por expectativas e dívidas.

Em seu pico, as ações da Nvidia foram negociadas a cerca de 138 vezes mais do que seus lucros anuais – um nível de frenesi que fez a era das empresas “ponto com” parecer moderada. Quase 60% dos ganhos dos ativos indexados no S&P 500 em 2024 vieram de apenas sete empresas. A febre da IA agora ultrapassou a loucura das empresas “ponto com” de 1999.

Terceiro passo: quando a ilusão encontra limites

Eventualmente, a realidade se impõe. Os chatbots alucinam. Os modelos de imagem não conseguem pagar suas próprias contas de servidor. Os consumidores não estão comprando produtos de IA em números significativos.

No entanto, os preços das ações continuam subindo porque ninguém quer ser o primeiro a admitir que os créditos em papel do capital superaram o valor criado pelo trabalho. É aí que a bolha se completa – quando os valores financeiros estão totalmente desvinculados da produção e do lucro.

A nova miragem dos EUA

A IA é o capítulo mais recente do capitalismo especulativo. Por trás da retórica da inovação, há uma verdade simples: a economia dos EUA está sendo sustentada por capital fictício, não por trabalho produtivo.

A manufatura está encolhendo. Os empregos no setor de serviços estão desaparecendo. O endividamento das famílias está aumentando. O brilhante boom tecnológico esconde a estagnação em todas as outras áreas.

Até mesmo figuras do establishment tecnológico – de Eric Schmidt, ex-CEO do Google, à analista Selina Xu – admitem que a obsessão do Vale do Silício com a Inteligência Artificial Geral (IAG) ignorou as oportunidades reais de usar a IA já existente.

IAG refere-se a uma inteligência artificial hipotética que poderia aprender e raciocinar em qualquer tarefa com a mesma flexibilidade de um ser humano – uma espécie de “mente universal”.

Ao contrário dos sistemas de IA limitados de hoje, que são construídos para funções específicas, a IAG supostamente entenderia e agiria em muitos domínios por conta própria.

Na realidade, a IAG não existe. Sua promessa serve ao capital como uma fronteira especulativa – uma projeção de produtividade ilimitada usada para justificar vastos investimentos e subsídios estatais.

De uma perspectiva marxista, o hype da IAG incorpora o fetiche tecnológico do capitalismo – a crença de que as máquinas, e não o trabalho, criam valor.

A busca pela IAG é uma busca por poder e lucro, não por progresso.

A IA como império

Por trás da bolha está um império. O Pentágono, a CIA e o capital de risco compartilham a mesma fantasia: que a supremacia da IA garantirá o domínio global dos EUA.

Contratos governamentais massivos – de softwares de vigilância a armas autônomas – agora servem como subsídios para o Vale do Silício. A Nvidia, a Microsoft, a Amazon e a Palantir estão na encruzilhada do capital financeiro e do complexo militar-industrial.

Até mesmo Joe Biden, em seu discurso de despedida da Casa Branca em janeiro de 2025, deixou isso bem claro – um raro momento de honestidade.

Biden disse que “uma oligarquia está se formando nos Estados Unidos, com extrema riqueza, poder e influência, que literalmente ameaçam toda a nossa democracia, nossos direitos e liberdades básicas”.

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Ele falou de “uma concentração perigosa de poder nas mãos de um número muito pequeno de pessoas ultra-ricas”.

Ele tratou especificamente da ascensão de um “complexo tecnológico-industrial”, ecoando deliberadamente o aviso de Dwight Eisenhower em 1961 sobre o “complexo militar-industrial”. Biden disse que esse novo bloco de poder está “violando os direitos dos americanos e o futuro da democracia”.

A fusão agora está completa – um complexo militar-tecnológico-industrial, caminhando para o que alguns começaram a chamar de fascismo tecnológico.

Biden comparou a situação atual à Era Dourada dos “barões ladrões” – uma época em que a economia dos EUA era dominada pela riqueza extrema e pela expansão imperialista em Cuba, Porto Rico e nas Filipinas. Foi também uma época em que Mark Twain e organizações como a Liga Anti-Imperialista Americana lutavam contra a expansão do império.

Biden não citou nomes. Mas suas observações foram feitas no momento em que Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos se alinhavam ao novo governo Trump, planejando participar da posse do novo presidente.

O Vale do Silício se transformou em uma fusão de grande capital, grande tecnologia e grandes guerras. A mais nova arma do império não é um míssil – é o algoritmo.

As restrições de vendas de chips de Washington à China, suas sanções comerciais contra a Huawei e seus pactos militares baseados em IA – da AUKUS às suas alianças de tecnologia de defesa com o Japão e a Coreia do Sul – seguem a mesma lógica imperialista. A tecnologia civil e a infraestrutura militar estão sendo fundidas em um único sistema de domínio global.

O caminho diferente da China

A China, por outro lado, está tratando a IA não como uma ficha num cassino, mas como uma ferramenta. Em vez de apostar na inteligência abstrata para lucros futuros, a China aplica a IA a setores reais – manufatura, logística, energia e planejamento urbano.

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Os relatórios oficiais do governo chinês descrevem mais de 400 zonas-piloto de IA industrial com foco em logística, aço e energia – mostrando uma implantação que prioriza a produção.

A diferença é gritante. Os EUA estão usando a IA para inflar uma bolha. A China está usando-a para construir.

Política industrial ou subsídio financeiro

Washington insiste em afirmar que está reconstruindo a indústria por meio da Lei Chips e Ciência, da Lei de Redução da Inflação e das novas “zonas de inovação em IA”. Na realidade, trata-se menos de política industrial e mais de bem-estar corporativo – fundos governamentais canalizados para monopólios privados.

Mais bilhões fluem para a Intel, TSMC e Nvidia – as mesmas empresas que impulsionam a especulação. O Estado não está revivendo a manufatura; está financiando e garantindo lucros corporativos, socializando riscos enquanto privatiza ganhos. A “economia de IA” não está reconstruindo a base produtiva dos EUA; está inflando a próxima crise.

Enquanto os EUA financiam o hype, a China se reequipa para a produção. Esta não é apenas uma corrida tecnológica, é um choque entre dois sistemas: capitalismo impulsionado pelas finanças versus desenvolvimento planejado.

Quebrando o ciclo

O progresso real significa acabar com o próprio sistema de lucros, no qual a produção serve à riqueza privada, não às necessidades humanas. O capitalismo transforma cada avanço em uma nova fonte de lucro, não em um meio de melhorar a vida.

A tecnologia deve servir à sociedade, não ao capital. A riqueza criada pela inteligência humana – por meio da pesquisa, da educação e do trabalho – não deve ser desviada para mais um frenesi especulativo.

Até tirarmos a tecnologia da lógica do cassino, todas as chamadas “revoluções” terminarão da mesma maneira: a bolha estourará e os trabalhadores serão os que pagarão, com demissões, cortes salariais e serviços públicos destruídos.

Os ricos sairão ainda mais ricos. Todos os outros ficarão com o custo do colapso.

(*) Tradução de Raul Chiliani

Struggle-La Lucha

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