Em setembro deste ano, por ocasião do centenário da Revolução Russa, a Editora Boitempo organizou em São Paulo o “Seminário Internacional 1917: o ano que abalou o mundo.”
Neste ocasião, a Revista Opera teve a oportunidade de entrevistar o filósofo italiano Domenico Losurdo, um dos maiores pensadores marxistas ocidentais vivos. Professor da Universidade de Urbino, na Itália, Losurdo é autor de livros como “Guerra e Revolução“, “Contra-história do Liberalismo” e “A Linguagem do Império.”
O que segue é a primeira parte da entrevista, na qual o professor trata do movimento por independência na Catalunha, fascismo e China. Clique aqui para ler a segunda parte.
Agradecemos ao senhor por mais uma vez disponibilizar seu tempo para nos encontrar. Em uma entrevista, você uma vez falou sobre o fato do capitalismo atualmente ter chegado a um nível em que até nossas emoções estão sob controle. Você poderia falar mais uma sobre isso?
Meu ponto inicial foi a declaração que podemos encontrar em “A Ideologia Alemã”, de Marx e Engels, que é a de que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, ou seja, a classe que tem o monopólio da produção material tem também o monopólio da produção das ideias, esta é a declaração feita em “A Ideologia Alemã.”
Eu disse, e de fato tenho esta opinião, que hoje é necessário compreender também que esta classe tem a possibilidade de controlar até a produção das nossas emoções. Antes das guerras neocoloniais, por exemplo contra a Iugoslávia, Iraque, ou qualquer pequeno país, nós podemos ver nas televisões imagens terríveis, que são construídas com o objetivo de demonstrar a crueldade do inimigo. E neste caso nós temos – eu costumo usar essa expressão – o terrorismo da indignação. Essa indignação é provocada de forma artificial em favor da dominação do mundo. Isso é algo novo, que não era realmente possível nos tempos de Marx e Engels, mas hoje é assim que as guerras são preparadas.
Professor, neste sentido, quando falamos desta indústria das emoções, estamos falando de comunicação. Você mencionou a televisão, mas hoje temos muitos autores tratando da ascensão da internet de um ponto de vista bastante otimista, do papel que ela tem a cobrir em um processo emancipatório, de formação de identidade que é contrário ao capitalismo. O que você pensa disso?
Bem, essa posição é otimista de uma maneira tola. É claro que a invenção da imprensa foi substancialmente progressista. É claro! No entanto, mesmo a imprensa é utilizada contra a emancipação. Rádio – a invenção do rádio foi neste sentido, sim. No entanto, não podemos entender o nazismo e o fascismo, por exemplo, sem o uso do rádio. O problema não é a questão da inovação; toda invenção pode ser usado em sentido ou em outro. Ou seja, a internet também pode ser usada como uma ferramenta para a preparação da guerra. Hoje em dia os Estados Unidos criticam a Rússia pelo uso da internet na “desestabilização da democracia norte-americana.” A internet não significa a paz eterna, a paz universal – a internet pode ser usada mesmo em um contexto de luta geopolítica.
Você trata desta figura russa, da manipulação. E neste momento as pessoas têm tratado muito do movimento na Catalunha, por independência. Você tem alguma consideração em relação a isso?
Qual é a minha opinião sobre a Catalunha?
Sim, sobre o movimento de independência.
A minha opinião é esta: não digo que a Catalunha está certa ou errada. Primeiro, uma análise: a Catalunha não é uma nação oprimida. A Catalunha é a região mais rica da Espanha. A língua catalã é respeitada e ensinada na Catalunha.
Para entender a Catalunha é necessário considerar outros fenômenos similares. Por exemplo, na Itália, temos o movimento secessionista no norte. O norte da Itália não é oprimido pelo sul; trata-se da região mais rica do país. Então qual é a explicação para a revolta destas regiões? Eles dizem que pagam pelo sul, que pagam por essas regiões “semi-africanas” da Itália. Ou seja, no norte da Itália se vê muitas vezes uma ideologia racista. Os movimentos secessionistas na Itália, na Catalunha, ou na Bélgica ocorrem nas regiões mais ricas e podemos dizer – esta é minha opinião – que a classe privilegiada, em um país que tem grandes diferenças regionais, pode desenvolver a luta em defesa de seus privilégios com movimentos secessionistas. Ou seja, em um país como a Itália, onde as diferenças de região para região são fortes, a luta contra o estado de bem-estar pode se manifestar como uma luta por secessão. A destruição do estado de bem-estar é levada a cabo por meio da destruição do Estado nacional.
Ainda no que se refere à Europa, tivemos recentemente as eleições alemãs, onde a extrema-direita teve uma impressionante parte dos votos, penso que 13%, e temos hoje a ideia de que o fascismo não pode renascer. Gostaria que comentasse sobre o futuro da Europa.
Creio que temos situações diferentes. É claro que temos que nos preocupar com o aumento do movimento xenofóbico, como na Alemanha, por exemplo. Mas não acredito que teremos uma repetição da situação da Europa nos anos 30, e tenho um argumento decisivo: hoje a Europa e o mundo ocidental em geral preparam suas guerras em nome da democracia. Trata-se de uma situação bem diferente em comparação ao fascismo clássico. A guerra contra o Iraque e Iugoslávia, por exemplo, foram guerras neocoloniais, mas foram preparadas e levadas a cabo em nome da defesa e da difusão da democracia.
Portanto, não acredito que teremos o renascimento do fascismo na Europa em um sentido clássico. Mesmo as grandes guerras contra a China ou contra a Rússia são hoje preparadas em nome da democracia. É claro que a situação é diferente na Ucrânia; lá temos uma longa tradição, mesmo após o fim da Segunda Guerra o Ocidente apoiou o movimento fascista para derrotar a União Soviética. E agora nós temos a continuação disso contra a Rússia, esses movimentos fascistas na Ucrânia não são um fenômeno novo. Após a Segunda Guerra a União Soviética era muito respeitada no mundo, e o uso de movimentos neofascistas não era uma boa ideia – mas agora, contra a Rússia, para o Ocidente, é. Mas mesmo neste caso o Ocidente argumenta que a Rússia é uma ditadura, e que estes movimentos fascistas são representantes da democracia.
Tendo em vista a sua intimidade com a obra de Gramsci, seria interessante que o senhor tratasse de contra-hegemonia, dos caminhos para desafiar, para lutar, contra a ordem hegemônica.
Nós não temos uma resposta única para este problema. Na China, por exemplo, o Partido Comunista insiste que é necessário lutar contra duas formas de revisionismo histórico: a primeira sendo a condenação ou a demonização do período Mao, e a segunda a condenação e demonização de Deng Xiaoping. Ambas as formas de revisionismo histórico são instrumentos da guerra imperialista e capitalista, e devemos tomar parte na defesa da República Popular da China e na defesa do socialismo em geral. E é claro que em cada país o Partido Comunista deve participar das lutas sociais e políticas, e desenvolver raízes nas massas. Não há uma resposta correta, e portanto precisamos do Partido Comunista em cada país.