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O espelho peruano

A mesma estratégia estadunidense e israelense que tem o fujimorismo como “leading case” inspira o bolsonarismo.
por Henrique Júdice Magalhães | Revista Opera
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Superando décadas de resistência das classes dominantes e das Forças Armadas, um partido de centro-esquerda com expressivo apoio entre as massas desvalidas, os trabalhadores organizados em sindicatos e a classe média chega à presidência de um país sul-americano marcado por uma iniquidade distributiva frequentemente entrelaçada a um racismo que remonta à época colonial.

O partido, que tem por símbolo uma estrela, professava, na origem, um socialismo heterodoxo – ou, quando menos, um reformismo radical – com elementos de anticapitalismo e também de anticomunismo, sob o rótulo de “crítica ao socialismo real”. Ao longo dos anos, o abandonou – conservando, porém, a proximidade com a II Internacional – , e compôs com forças do velho sistema para chegar ao governo.

Seu líder, eleito presidente da República, se destaca pelo carisma e pela capacidade comunicativa, reconhecidos por seus mais acérrimos adversários. Granjeia certo prestígio internacional.

Acreditando poder substituir reformas sociais efetivas pelo mero aumento do poder de compra da população e incentivo ao consumo e ao crédito, seu governo começa bem e termina mal. Episódios de corrupção se avolumam e, junto ao péssimo estado dos serviços públicos, à violência descontrolada e à má situação econômica, amplificam o descontentamento.

Há protestos da esquerda em todos os seus matizes, com forte apelo entre a juventude suburbana – universitária, trabalhadora ou ambas as coisas. E também da direita liberal-conservadora, cuja força motriz e base social é uma classe média mais branca e abastada. O governo, incorrendo inclusive em violações aos direitos humanos, reprime apenas a esquerda e deixa livre o terreno para a direita.

Nas eleições seguintes, o partido do governo perde, mas preserva seu piso histórico de votos. A esquerda parlamentar é arrastada na lama pelo colaboracionismo da maior parte de suas facções para com ele e pela divisão interna. A direita tradicional, vista corretamente pela maioria do eleitorado como parte do problema, e não da solução, é igualmente repudiada.

Quem capitaliza o descontentamento é um candidato até há pouco folclórico, que concorria por um partido improvisado. Sua vitória faz ascender um regime policialesco que se afirma pela conjugação de liberalismo econômico radical, incremento da repressão interna, agressividade face à imprensa e ao desmoralizado Congresso e avassalamento do Judiciário.

À frente de disso, está um capitão expulso do Exército, décadas atrás, por conduta desonrosa. Contra todo prognóstico, sua liderança é aceita pelas forças armadas: não são os generais que terminam por engoli-lo, mas o contrário.

Não por isso, no entanto, as FFAA deixam de se firmar como fator real de poder. Na verdade, seu poder e ingerência em questões que não deveriam estar a cargo delas vinham crescendo desde o governo anterior, de centro-esquerda, que as emprega em tarefas de segurança interna com resultados desastrosos em termos de incremento da violência e desrespeito aos direitos humanos.

Elas deixam de lado, porém, velhas pretensões de modernizar o país que haviam levado a cabo durante seu governo, anos antes, e também suas pretensões de afirmação do país como potência regional. A troco de recompensas individuais nem sempre lícitas, seus oficiais aderem plenamente às diretrizes militares e geopolíticas dos EUA e de Israel. Os poucos que, dentro delas, erguem a voz contra esse arranjo espúrio viram alvo de perseguições.

O novo governo está em minoria no Congresso, mas, com os votos da direita tradicional e sem maior resistência do partido que recém deixara o poder nem da esquerda em crise, aprova privatizações, desregulação trabalhista e medidas de reforço do poder repressivo do Estado.

A base social do novo regime é composta por setores médios pouco letrados, com forte presença de contapropristas às vezes precários, atraídos pela ideologia do empreendedorismo, e de membros das corporações armadas, ademais de alguma adesão de setores populares. Dela, emerge uma direita lúmpen, inepta para usar talheres de peixe, mas capaz de tirar votos da esquerda, da direita tradicional e do partido mais estruturado (o de centro-esquerda).

Tal arranjo tem como um de seus sustentáculos as igrejas neopentecostais, decisivas para a vitória eleitoral. De forma um pouco mais surpreendente, se somam a ele também facções de direita da igreja católica, como o Opus Dei, com a cumplicidade da hierarquia eclesiástica.

Esses grupos católicos são uma das pontes com as elites empresariais, que aprovam, no fundamental, o novo regime, ao qual – mesmo evitando vincular publicamente sua imagem à dele – fornecem quadros para postos estratégicos.

O novo governo é um circo de horrores, mescla de atroz vulgaridade com moralismo rasteiro. Os escândalos familiares do presidente não inibem seus filhos de interferir em decisões governamentais. Grassa a estigmatização e perseguição aos estudantes universitários, reputados, por essa simples condição, “comunistas” pelas forças de segurança e pela base social do regime. Os vínculos com grupos paramilitares (ou melhor, militares em horas extras sem farda) logo aparecem, e há provas – ou, no mínimo, fortíssimos indícios – de comprometimento pessoal do presidente com eles.

Com a assistência de especialistas nativos e estrangeiros em operações psicossociais, se estrutura uma campanha de difamação e estigmatização contra opositores, com amplo uso da internet.

Contra o ex-presidente e líder do partido mais estruturado do país, se desata uma ofensiva judicial e midiática, que mescla episódios reais de corrupção durante seu governo – alguns dos quais se deram sobre bases preexistentes, legadas por governos anteriores nunca investigados – com provas duvidosas de culpa pessoal direta. Isso serve para retirá-lo fisicamente do cenário político, de modo a deixar livre o caminho para a execução do programa do novo regime. Ele continua, porém, dando as cartas em seu partido, mesmo à distância.

Há discretos indícios de um acordo pelo menos tácito – ou, no mínimo, de uma convergência de interesses – , entre o líder tirado do jogo e seu partido, por um lado, e o novo regime, por outro. Apesar da forte retórica contra o governo anterior, usada para mobilizar seus próprios adeptos, o novo regime não toca nos quadros que o partido do ex-presidente inserira na estrutura do Estado. Aliás, alguns deles, notoriamente no Judiciário, passam a servir ao novo governo com desfaçatez.

A imposição, pelo ex-presidente a seu partido, da eterna espera por seu retorno e de candidaturas inexpressivas nas eleições seguintes, além da recusa à formação de uma frente contra o novo regime e da desmobilização de seu aparato sindical, servem a ambos, ao impedir o surgimento de novas lideranças que ameacem a tranquilidade do governo de um e a posição de comando partidário do outro.

Uma coisa, no entanto, o carismático ex-presidente e seu partido perdem: pela primeira vez em muitos anos, deixam de ser o eixo ordenador da política nacional, em adesão ou repúdio ao qual as outras forças se organizam, à esquerda e à direita. Cedem esse papel ao novo presidente, ou pelo menos o dividem com ele em posição minoritária.

Isso foi o que ocorreu no Peru nos anos 80 e 90, nos governos de Alan García Pérez, do Partido Aprista Peruano, e Alberto Fujimori (o capitão expulso do Exército, no caso, foi o mentor intelectual deste último, Vladimiro Montesinos). Ou alguém pensou em outra coisa?!

Claro: não há analogia perfeita entre situações históricas distintas. Além do detalhe de que García não foi preso, mas exilado, há umas quantas diferenças importantes que nos põem em posição pior.

Primeiro, os peruanos, ao eleger Fujimori em 1990, não votaram na direita lúmpen, mas contra o choque econômico prometido pelo outro candidato, Mario Vargas Llosa: só após tomar posse, Fujimori põe em prática o programa descrito acima e o arranjo político e social destinado a sustentá-lo – respaldados eleitoralmente, isto sim, em sua reeleição (1995).

Segundo, a queda de Fujimori foi possível, em grande medida, por causa de algo que o Brasil há muito não tem: uma imprensa que cumpriu seu papel de investigação e denúncia de seus crimes. Destacam-se a revista Caretas, os jornais Liberación e La República (em vida de seu fundador, Gustavo Mohme Llona) e jornalistas como Gustavo Gorriti e Cesar Hildebrandt.

Terceiro, por mais graves e repudiáveis que tenham sido o desvio militarista do Sendero Luminoso e sua violência demencial contra populações civis desarmadas – não pior, em todo caso, que a das forças de segurança – , uma orgia de sangue com fundo político sempre soa menos má do que a mesma coisa cometida nos marcos da criminalidade mafiosa e do desespero individualista por bens de consumo supérfluos, como se dá, hoje, no Brasil, onde morrem, a cada ano, a mesma quantidade de pessoas que em 20 de guerra interna no Peru.

Quarto, ainda se está por descobrir quem é o Cérebro desse Pinky, o Montesinos desse Fujimori. Olavo de Carvalho? Talvez, mas ele parece farsante demais para uma tarefa que requer não só inteligência como uma capacidade organizativa privilegiada.

No fundamental, porém, as situações se assemelham muito, como se assemelham as estruturas sociais de Brasil e Peru, as trajetórias e essências do PT e da APRA. E, principalmente, a mesma estratégia estadunidense e israelense que tem o fujimorismo como leading case inspira o bolsonarismo.

E como a história termina? Aqui vão alguns spoilers.

Fujimori caiu – até com ajuda de um governo democrata dos EUA – e está preso há 12 anos, mas o fujimorismo remanesce como expressão social e política, com um piso de votos muito alto que o mantém permanentemente às portas do poder. Para mobilizar sua base, recorre a fantasmas como o combate à “ideologia de gênero” e à “doutrinação escolar” (política ou sexual). Seu discurso é fortemente patriarcal, conservador e homofóbico. Seu modus operandi é acusar de comunista e/ou homossexual todo aquele que o enfrenta. Soa familiar?

O temor permanente de retorno do fujimorismo não atinge por igual todas as demais forças políticas. Em 2011, Ollanta Humala, que foi para o 2o turno contra Keiko Sofia, filha do ex-ditador, teve que abdicar de toda pretensão de reforma social originalmente inserida em sua plataforma para obter dos outros partidos a adesão que lhe permitiu ser eleito por estreita margem. Em 2016, a esquerda e a centro-esquerda tiveram que aderir incondicionalmente à candidatura do banqueiro naturalizado estadunidense Pedro Pablo Kuscynski para impedir a eleição da mesma Keiko, sem arrancar dele a mínima concessão programática.

A condenação de Alan García por corrupção foi anulada, não por prova cabal de sua inocência, mas por irregularidades processuais. Em 2006, ele voltou à presidência.

Atualmente, todo o sistema de poder peruano está em cheque: o Congresso, o Judiciário e empresas poderosas são alvos de denúncias graves e comprovadas. Quem o defende com todas as forças no parlamento e na sociedade? Quem assume o papel de guardião de coisas que vão desde a mineração predatória até as máfias judiciais e parlamentares? O “fujiaprismo”, expressão usada por parte da imprensa peruana para designar a aliança – de conveniência, obviamente, mas que aliança não o é? – entre ambos. Ou alguém acreditou que eles eram mesmo inimigos?

Pode-se prever para o Brasil, num futuro breve, a repetição, entre o bolsonarismo e o PT, desse Pacto de Moncloa lúmpen que vigora hoje no Peru.

A hipótese deste artigo é que, com Bolsonaro, o Brasil não assiste – ao contrário do que sustentam alguns bons analistas e eu próprio cheguei a pensar inicialmente – à volta de um “partido fardado” como o dos anos 30 a 70, estruturado conforme a hierarquia militar e a visão de mundo dos think-tanks das Forças Armadas. O que estamos vivendo é o surgimento de um fenômeno social e político que tem num militarismo algo mítico uma de suas bases discursivas, mas que se afiança mais numa liderança pessoal cujo próprio histórico militar é, ironicamente, péssimo. Esse fenômeno mobiliza os piores instintos de uma parte expressiva da população brasileira e tende a durar até mesmo se seu líder ou símbolo for deposto ou preso.

A estratégia estadunidense, hoje, fomenta esse tipo de regime bruto e policialesco, e não um governo militar convencional dotado, por exemplo, de visão geopolítica própria, ainda que restrita à América do Sul. A experiência dos anos 70 e 80 mostra que generais podem ser muito úteis para massacrar líderes e militantes populares, mas saem do controle e podem criar cenários indesejáveis. 

Não falo só de algumas veleidades de autonomia da ditadura brasileira a partir dos anos 70: até um regime delirantemente retrógrado e alinhados aos EUA do ponto de vista econômico, como a última ditadura argentina, colocou o equilíbrio militar e político do continente em xeque ao tentar retomar as Ilhas Malvinas. Evitar que isso repercutisse, por exemplo, num conflito por Arica e Tarapacá entre Peru (que se aliou à Argentina) e Chile (que aderiu pela mesma razão à Inglaterra) foi uma das tarefas mais delicadas da história da diplomacia estadunidense.

O bolsonarismo é a expressão de uma doutrina de terra arrasada que, dos regimes militares clássicos, recolhe apenas a brutalidade repressiva. Os generais são, obviamente, cúmplices, e não a troco de nada, mas o centro de formulação não está em qualquer instituição militar brasileira, nem no Brasil. Isso, claro, não atenua a responsabilidade deles: ao contrário, talvez a agrave.

Outro inconveniente das ditaduras militares clássicas é que não mantêm as aparências. Na Colômbia pós-Bogotazo e na Venezuela do regime de Punto Fijo, o parlamento, os partidos e o judiciário nunca deixaram de funcionar livremente, e o Estado pôde matar tantos militantes populares, e com tanta eficácia, quanto na Argentina, Chile, Brasil e Uruguai dos anos 70/80. Lição aprendida.

Isso requer, porém, forças políticas e sociais opositoras que sejam, ao mesmo tempo, cúmplices. Elas são necessárias para simular normalidade democrática e, inclusive, para preencher espaços e impedir o crescimento de outras que não o sejam. Mas, para que sejam cúmplices, é preciso dar-lhes algo em troca: algumas dezenas de gabinetes no Congresso, governos estaduais e a preservação do controle do aparato sindical, por exemplo.

O PT – esta é outra hipótese deste artigo – aceitou tal papel. Terá, para compor com o bolsonarismo por baixo dos panos, a mesma falta de escrúpulos que teve para fazer o mesmo com o PSDB por anos. O fato de ter mudado (para pior) a força hegemônica no âmbito da direita não muda a disposição de fazer arranjos espúrios com ela, nem de compartilhar com ela a responsabilidade pela repressão a qualquer força não-institucional de esquerda que surja.

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