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Lalo Leal: “É uma pobreza de autoconfiança o governo não enfrentar os meios de comunicação”

Para o jornalista e ex-ouvidor da EBC, Lalo Leal, governos petistas não avançam na democratização da comunicação para evitar conflito com grandes meios.
Para o jornalista e ex-ouvidor da EBC, Lalo Leal, governos petistas não avançam na democratização da comunicação para evitar conflito com grandes meios. Por Gabriel Deslandes | Revista Opera
O professor e jornalista Laurindo Lalo Leal foi ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação e apresentador do programa de entrevistas Ver TV. (Foto: Reprodução TV Brasil)

Debater a regulamentação dos meios de comunicação no Brasil continua sendo um tabu que poucos têm disposição de enfrentar publicamente. Foi como um dos principais críticos do modelo de negócios da radiodifusão no Brasil que o jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal assumiu essa luta inglória pela democratização da mídia.

Professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP e profissional de televisão com passagem pela Globo, TV Cultura e Bandeirantes, Lalo Leal conhece – na teoria e na prática – como operam as empresas de comunicação e suas relações com as instâncias do poder e a sociedade civil. Essa trajetória o influenciou na defesa não só de um marco regulatório atualizado para a mídia, mas também de uma TV pública de qualidade. Por esse engajamento, foi convidado para o posto de ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) nos governos Lula e Dilma e apresentou na emissora o programa de entrevistas Ver TV, voltado para a análise do papel social da televisão no país.

Em um contexto de transformação das mídias eletrônicas, Lalo Leal reafirma a necessidade de uma nova política para a radiodifusão e estende para as Big Techs suas preocupações com a falta de regulação. Para falar dos problemas históricos e prementes no trato das comunicações no Brasil, o jornalista concedeu esta entrevista à Revista Opera, em que explica as suas “guerras de ideias” e alerta para o risco de se assistir o domínio de monopólios e oligopólios sem reação organizada.

Revista Opera: Uma das políticas regulatórias mais citadas no debate sobre democratização da comunicação é a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual argentina, a chamada “Ley de Medios”, sancionada em 2009. Quais mudanças inéditas essa lei inaugurou no país a ponto de torná-la tão referenciada na América Latina e o que sobrou hoje da sua aplicação na Argentina?

Lalo Leal: Tenho citado muito a Lei de Meios argentina por duas razões: pela forma como ela foi construída e aprovada e pelo seu conteúdo, que realmente democratiza a comunicação eletrônica. A Lei de Meios argentina é fruto de um longo processo de maturação, que passou pela academia, movimentos sociais, Congresso, e foi às ruas, o que eu acho bastante significativo, porque é muito difícil ter um movimento em prol da democratização da comunicação que chegue a se tornar um movimento de massa. Ele geralmente se restringe, no máximo, aos Parlamentos e ao debate na própria mídia.

Na Argentina, tal discussão teve impulso pelo próprio governo – e isso é fundamental. Começou com o Néstor, mas se aprofundou e se concretizou com Cristina Kirchner. Os dois presidentes levaram esse debate à frente, e a legislação foi aprovada pelo Congresso. Tudo com bastante luta, e é claro que toda a mídia conservadora estava contra o projeto, já que o seu conteúdo é democratizante. A despeito do que dizem os seus detratores, a lei não tem qualquer laivo de censura. Ao contrário, trata-se de uma legislação que amplia o número de vozes que podem falar nos meios. Lá como cá, os meios – tanto eletrônicos, como impressos – são concentrados nas mãos de poucos grupos e famílias. A lei veio justamente para romper com esse monopólio, abrindo novas emissoras e impulsionando a produção regional e de pequenas empresas. Ela, inclusive, amplia as possibilidades de empreendimento para novas produtoras e médias empresas de comunicação, aumentando o número de empregos e democratizando a circulação de ideias.

Aquilo foi uma batalha, a ponto de alguns autores afirmarem que o governo argentino precisou enfrentar um “jornalismo de guerra”, promovido por veículos como os do Grupo Clarín. Esse enfrentamento teve resultados positivos. Costumo lembrar que são 166 artigos, sendo a maioria deles com referências às mais modernas leis democráticas de comunicação. Além do olhar para a própria Argentina, esse marco se baseia em leis da Alemanha, Inglaterra, Japão, Canadá e Estados Unidos. Então, em cada artigo da Lei de Meios, você encontra a remissão às legislações de outros países. Ela é de 2009, mas segue sendo a mais moderna.

Com a vitória do Macri, um de seus primeiros atos foi sustar alguns artigos que influenciavam diretamente nos interesses do Grupo Clarín. A televisão a cabo na Argentina é bem mais desenvolvida que no Brasil e tem uma força cultural e política grande. O Clarín monopolizava essa transmissão, e a lei estipulava que um grupo empresarial não poderia ter mais concessões que o determinado. Isso obrigava o Grupo Clarín a abrir mão de certas concessões para que outros atores pudessem participar. Contra isso, o Macri conseguiu, por meio do Judiciário, sustar alguns artigos. Até o momento, o governo peronista atual não retomou essa questão.

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Para concluir, quero citar um exemplo que considero importantíssimo da Lei de Meios e que tem a ver com a experiência brasileira: ela rompeu uma proibição preexistente de não se falar, nos canais de rádio e TV, outros idiomas se não o espanhol. A lei derrubou esse impedimento e permitiu que os indígenas mapuches passassem a ter os seus canais de radiodifusão – de alta qualidade. Acho que esse é um grande exemplo para o Brasil e, inclusive, no grupo de Comunicação Social do gabinete de transição do governo Lula, eu propus que a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) tivesse um pé no novo Ministério dos Povos Originários para acompanhar as demandas deles. Espero que isso se concretize.

Revista Opera: A interdição das discussões sobre regular as atividades de comunicação recorre comumente ao fantasma do “modelo chavista”. Entre os governos progressistas dos anos 2000, a Venezuela foi o primeiro país a aprovar seu próprio marco legislativo – a Lei Orgânica de Telecomunicações, de 2000. Que tipo de resultados práticos podem ser observados no país em decorrência dessa política?

Lalo Leal: Foi bom você lembrar porque a Lei de Meios venezuelana é exemplar. Nela, há a clareza de que não existe qualquer tipo de censura a programas de televisão. O que existe lá – e eu não vi isso em outras legislações – é a classificação das programações por faixas etárias e de acordo com o conteúdo. As emissoras podem colocar no ar qualquer tipo de programação, como sexo no horário da tarde, por exemplo, se for um conteúdo médico ou educativo. Porém, há uma gradação, e as cenas mais explícitas de violência e sexo só podem ir ao ar talvez depois da meia-noite.

A legislação uruguaia também estipula isso. São legislações que vão sendo aprimoradas na América Latina a partir de uma prática que vai sendo desenvolvida e que não fere, de maneira alguma, a liberdade de expressão.

A lei venezuelana é altamente democrática e, como na Argentina, ampliou a oferta das emissoras de rádio nas comunidades em todo o país. Acredito que podemos tê-la como referência, ao lado da argentina.

Revista Opera: Na década de 1970, as análises sobre a influência dos meios de comunicação de massa na opinião pública levaram à formulação da Teoria do Agendamento (Agenda-setting), segundo a qual a imprensa é capaz de determinar quais assuntos devem ser considerados mais importantes pelos consumidores de suas notícias. A dinâmica comunicativa em rede forjada pela Internet fragilizou de fato esse poder?

Lalo Leal: Fragilizou, mas com ressalvas. Digo que fragilizou do ponto de vista empresarial, na medida em que há um enfraquecimento claro de grande parte das corporações. Elas tiveram seus processos comerciais abalados por uma nova forma de obtenção de publicidade operada pelas Big Techs. As grandes plataformas, afinal, dispõem de um volume publicitário muito grande.

Do ponto de vista do conteúdo, num primeiro momento, ampliou-se a oferta sim. Tanto que alguns acadêmicos sérios – no Brasil e fora daqui – comemoraram esse aumento da oferta. A meu ver, eles ficaram demasiadamente iludidos com tal possibilidade, já que as novas tecnologias não abriram espaço apenas para mensagens de caráter civilizatório ou democrático circulassem. Ao contrário, elas foram ocupadas também – nós temos exemplos tristes disso – por mensagens que vão do conservadorismo ao nazifascismo. Se, de um lado, a oferta aumentou, a proliferação dessas mensagens violentas e criminosas remete também à ideia de que há a necessidade de portos seguros. Estes portos costumavam ser buscados na mídia tradicional. Só que, como a mídia tradicional está comprometida com o capital, ela tem muita dificuldade de operar e servir realmente de porto seguro.

No Brasil, isso é claríssimo. Em outros países, há veículos tradicionais que ainda podem ser tidos como referência, como The Guardian. Não é o ideal, mas, pelo menos, ele é mais consistente que essas mensagens de poucos caracteres que circulam pelas redes. Considero um momento difícil esse da transição de um modelo analógico para o digital, que permite que cada um possa ser um emissor.

Agora, eu não vejo isso com uma preocupação tão inédita porque essa discussão que se faz hoje já era feita há cem anos. Quando o rádio chegou, dizia-se na Inglaterra que o diretor-chefe da BBC se tornaria o homem mais poderoso do mundo, pois ele entraria diretamente na casa das pessoas. Era algo que nunca tinha acontecido na história da humanidade. Hoje, as plataformas entram nas casas das pessoas, e nós estamos na mesma discussão. Há 100 anos, discutia-se se esse poder deveria ser regulado, e ele foi em vários países – não no Brasil. Hoje o debate é o mesmo – como as plataformas têm que ser reguladas. Há, porém, uma diferença grande: o rádio só entrava nas casas, enquanto as Big Techs entram e saem com as mensagens.

Mesmo assim, a necessidade da regulação continua a mesma. As plataformas têm que ser regulamentadas sim e não podem continuar operando acima das legislações dos países. Elas não podem ter mais poder que os Poderes republicanos. Esse debate só não pode acabar ocultando e obscurecendo aquele sobre a regulação necessária para a radiodifusão. Você veja a ênfase com que os apresentadores da Globo e os editoriais de O Globo defendem a regulação das plataformas, já que elas interferem nos modelos de negócios deles. Contudo, não falam um pio sobre a regulação da mídia. Então, não se deve esquecer disso.

Revista Opera: O PL 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, que prevê a regulação das plataformas digitais, segue em tramitação no Congresso Nacional. Do ponto de vista político e comercial, quais pontos em comum uma proposta de regulamentação das Big Techs pode compartilhar com uma política de democratização da radiodifusão?

Lalo Leal: A PL está voltada para as grandes plataformas, mas temos uma longa história de estudos e projetos de regulação da radiodifusão. Por serem instrumentos distintos do ponto de vista tecnológico e atuarem em partes diferentes da esfera pública, elas necessitam tramitar separadamente. A regulamentação das plataformas, dados os malefícios causados à sociedade e à democracia, tem uma urgência e caminha rápido por conta do empenho que esse governo e parte do Parlamento estão colocando na aprovação dessa legislação.

Agora, a regulação da radiodifusão tem um conteúdo histórico no Brasil. Tem muita coisa já acumulada. Há duas coisas centrais aí: uma é ampliação dos espaços, conforme a longa luta de denúncias que temos contra a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Na verdade, isso se reduz a um artigo da Constituição que diz claramente que, nesse setor empresarial, não podem ocorrer monopólios e oligopólios. Então, uma lei sobre radiodifusão é, no limite, a lei infraconstitucional do capítulo sobre Comunicação Social que está na Constituição, cujos artigos nunca foram regulamentados. Uma legislação como essa consiste em aplicar o que diz a Carta constitucional, colocando um fim nesses monopólios e oligopólios e abrindo espaço para que outras vozes possam se manifestar. Acho que essa é uma característica central.

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Porém, na medida em que se está discutindo Comunicação em relação a essas plataformas, poderíamos politicamente ampliar essa discussão para a Lei de Meios. Algo fundamental para as Big Techs e a radiodifusão – aí sim, trata-se de uma questão compartilhada entre ambas – é a agência reguladora. E essa é uma grande falha do PL 2630! A lacuna desse projeto, retirada por pressão das plataformas, é ter o órgão que aplicará a lei. Não há! Existia a criação de uma agência reguladora, um organismo da sociedade que não está diretamente subordinado ao Estado, mas que tem a presença dele, e que coloque em funcionamento a Lei de Meios. Sem isso, é uma lei que não vai pegar. E isso vale para as grandes plataformas e a radiodifusão.

São mais de 30 anos de debate e sempre aparece a necessidade de se ter um órgão regulador. Hoje, o pouco que existe de legislação é operado pelo Ministério das Comunicações, e sabemos bem a quem ele serve historicamente e continua servindo!

Revista Opera: A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi a primeira agência reguladora a ser instalada no Brasil, durante o governo FHC. As ferramentas que essa autarquia dispõe têm sido usadas, na prática, na defesa do interesse público nesse setor?

Lalo Leal: Nenhuma. Eu não conheço. Você lembrou que ela surgiu no governo FHC, e essas agências surgem na esteira do neoliberalismo. Elas entram num vácuo para cobrir o espaço deixado pelas privatizações, pelas entregas de setores importantes da economia para a iniciativa privada. Infelizmente, muitas delas são capturadas pelos interesses privados. Acaba não havendo a necessária diversidade para que elas operem democraticamente.

No caso da Anatel, ela foi criada para operar o controle e a organização da tecnologia da informação, das empresas de telefonia e telecomunicações. Agora, na esteira da discussão do PL das Fake News na Câmara dos Deputados, a Anatel rapidamente se apresentou, por meio dos seus diretores, como o organismo capaz de fazer essa regulação. No projeto original do relator, havia a figura de uma nova agência, mas a pressão do Centrão fez com que fosse retirada. Foi aí que a direção da Anatel se colocou publicamente como a agência que teria as condições de tratar dessa questão.

Contudo, não há na Anatel qualquer grupo especializado para tratar de conteúdo. Ela não tem know how [conhecimento] algum para isso. Se isso acontecer, vai ser uma tragédia! As empresas de telefonia já têm um poder gigante lá, feito o Conselho de Educação, no qual as escolas particulares já dominam tudo. Na Anatel, essas empresas não têm qualquer interesse em democratizar conteúdo ou abrir espaço para vozes indígenas, organizações populares etc. Portanto, nós temos um vazio. Minha posição é radicalmente contrária a que a Anatel assuma essa tarefa. É preciso recompor, no projeto de lei, a criação de uma agência de regulação de conteúdo, como é em todo o mundo.

Revista Opera: Em 2010, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo Lula, Franklin Martins, trabalhou na elaboração de um anteprojeto de marco regulatório para a radiodifusão no Brasil. Entretanto, no governo Dilma, a própria presidente rejeitou o plano, alegando que o único controle sobre os meios de comunicação deveria ser o “controle remoto”. O que levou o governo petista a não dar encaminhamento a essa iniciativa?

Lalo Leal: Acompanhei um pouco porque estive no grupo de trabalho que criou a EBC, embora não tenha participado da discussão do projeto. Aliás, ele foi guardado a sete chaves. Foi concluído no final do segundo mandato do presidente Lula e entregue pelo ministro Franklin Martins ao Paulo Bernardo. É curioso porque o Franklin era secretário de Comunicação Social (Secom), e o Bernardo veio a ser ministro das Comunicações da Dilma. Na posse dela, o Franklin disse para mim: “Eu já entreguei para a presidente o projeto da Lei de Meios”. Eu entendo que ele entregou para a presidenta, e ela encaminhou para o ministro das Comunicações, que engavetou. Se foi por ordem dela ou por livre arbítrio dele, eu não sei. Apenas sei que o governo Dilma não tomou qualquer providência para dar andamento a esse projeto de lei.

É verdade que ela e outros políticos de esquerda usaram essa expressão do Jô Soares de que “o melhor controle é o controle remoto”. É uma frase de fácil entendimento para a população e que traduz a ideia da censura. Na realidade, é uma frase que cabe muito bem naqueles que defendem o status quo contra qualquer tipo de democratização. Infelizmente, a Dilma falou isso mesmo, e o projeto foi engavetado. Bastava responder a ela o seguinte: “Olha, você usa o controle remoto para mudar de um canal para o outro na TV brasileira e vê sempre a mesma coisa”. Muda o cenário e o apresentador, mas o conteúdo é o mesmo. É um conteúdo antidemocrático, individualista e consumista. Não tem diferença! Era só responder isso, mas eles quiseram evitar conflito com os meios de comunicação, a quem todos os governos, inclusive os populares, temem de uma forma reverencial.

Esses grupos têm a comunicação apenas como álibi para fazer outros negócios. Eles têm a comunicação para dar prestígio, mas o negócio deles é a agropecuária, setor imobiliário ou o mundo das finanças. Então, até hoje, não tivemos qualquer governo capaz de enfrentá-los. E acho uma pobreza de autoconfiança. Se o governo é autoconfiante nas suas políticas públicas e seus programas de ação, tem que ter força para enfrentar esses grupos e dizer: “Estamos fazendo assim, e vocês têm que contar o que estamos fazendo, mesmo criticando”.

Revista Opera: Em entrevista ao Coletivo Alvorada, você recorda uma fala do presidente Lula de que os dois pontos nos quais “ele sentia que não avançou como deveria” seriam a comunicação e o Judiciário. De volta ao Governo Federal, foi nomeado Juscelino Filho, deputado do União Brasil, para o Ministério das Comunicações. Como esse quadro possibilita que uma política diferente seja feita no setor?

Lalo Leal: Não há possibilidade de ter qualquer modificação na política de radiodifusão e comunicação – não só do ponto de vista tecnológico, mas como cultura. Não há possibilidade de mudar a cultura da comunicação no Brasil com esse tipo de partido controlando o ministério. A gente esperava que esse governo Lula entregasse o Ministério das Comunicação para alguém que tivesse, pelo menos, alguma referência nesse debate da comunicação na sociedade. Não precisava ser um militante, mas que soubesse o que já foi discutido sobre o assunto. Entregou-se para uma pessoa que tem demonstrado ter outros problemas além da incompetência.

O que acaba acontecendo é que toda a questão da comunicação foi canalizada para a Secom. Só existe um canal de diálogo sobre o tema com esse governo, feito por meio da Secom, e acho que com bastante dificuldade. É um terreno tão amplo e vasto, com tantos pontos delicados e de risco de atrito, que é muita coisa para uma secretaria com objetivos muito precisos, como a Secretaria de Imprensa da Presidência da República e a EBC.

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Não há uma estrutura política e administrativa capaz de dar conta da dimensão desse problema, que é muito grande e necessitaria ter uma complementaridade entre a ação da Secom e a do ministério. Não adianta a Secom dizer que os indígenas precisam de um canal aberto de televisão e de rádio nos seus idiomas porque quem dá a concessão é Ministério das Comunicações. Se não houver uma integração entre as pastas, isso não irá para frente. Esse é um gargalo que não se resolverá sem uma troca de comando do ministério – o que não vai resolver, mas, pelo menos, avançará.

Revista Opera: Em editorial no Canal do Barão de Itararé, você afirma que “são ainda poucos os espaços para debater e criticar a comunicação no Brasil” e que a “mídia tende a falar dos mais variados assuntos, menos dela mesma”. Um dos raros espaços em que a radiodifusão foi objeto de debate foi o programa de entrevistas Ver TV, apresentado por você na TV Brasil entre 2006 e 2017. De que forma surgiu essa iniciativa e como foi sua experiência levantando essa discussão?

Lalo Leal: Essa história vem da década de 1990. Eu havia retornado do meu pós-doutorado na Inglaterra, e, aqui no Brasil, a televisão aberta em 1997 ou 1998 era majoritária – a TV a cabo estava começando. A disputa pelo mercado e pela publicidade era acirradíssima, e a ideia dos controladores das emissoras de TV era que, para aumentar a audiência, tinha que baixar o nível. Tinha que explorar os instintos mais animalescos do ser humano. É sair do reino da cultura e cair no da natureza. Então, sexo, violência e drogas passaram a ganhar cada vez mais espaço. Cresceu o grande exemplo do Ratinho, que chegava a levar crianças ao programa dele e abria exames de DNA, com o risco de a família ir para o auditório com uma família e ter que voltar com a outra!

Naquela época, a Marta Suplicy era deputada federal. Como psicóloga e psicanalista, ela havia tido um programa vespertino na Rede Globo, falando de sexualidade com respeito e seriedade. Como parlamentar, Marta passou a receber demandas da sociedade do que fazer com essa televisão, que punha essas barbaridades no ar. Obviamente, ela nunca ia optar pela censura. Então, ela criou um grupo e convidou algumas pessoas para discutir esse problema. Eu fui convidado, junto com pessoal da psicologia, juristas, um grupo de uns 15 estudiosos. A situação era tão dramática que vazou a existência desse grupo, e as pessoas começaram a nos encaminhar reclamações e queixas, como se a gente tivesse alguma possibilidade de intervir nisso.

Aí, decidimos institucionalizar o grupo e criamos a ONG TVer. Tínhamos uma boa relação com o Ministério Público Federal e enviávamos as demandas para alguns procuradores – pessoas que são nossas amigas até hoje –, que abriam processos. A Record tem um processo que ainda não foi resolvido, envolvendo a criminalização das religiões de matriz africana. Perderam em todas as instâncias!

Uma das nossas propostas era criar um programa de televisão que discutisse televisão. Até levamos um projeto para a TV Cultura, mas não foi para frente. Somente quando o governo Lula assumiu é que foi possível oferecer esse tipo de programa por meio da então Radiobrás, que controlava a TV Nacional de Brasília. Aí é que surgiu o Ver TV, como uma consequência da ONG TVer. Era um programa semanal, produzido em parceria com a TV Câmara, que oferecia o estúdio. Depois, a TV Nacional se associou à TVE do Rio de Janeiro – também do Governo Federal – e, quando se inaugura a TV Brasil, o programa passou a ser veiculado por ela.

Do ponto de vista do conteúdo, o programa debatia o papel social da televisão com quem estudava a televisão. Abrimos espaço para acadêmicos de altíssima competência que nunca haviam sido convidados para falar na TV porque eram críticos. Então, é isso que resume a minha frase de que a televisão, que discute tudo, nunca discutia ela mesma. Com o Ver TV, ela passou a ser discutida. E de uma maneira séria, aprofundada, apontando caminhos e trazendo, inclusive, os diretores de emissoras.

Falávamos de vários temas, como, por exemplo, o negro na televisão ou a publicidade dirigida para crianças. Coisa que jamais a TV aberta discutiria porque é o que a sustenta! Então, o cara estava zapeando a TV e, de repente, se deparava com alguém no programa falando em “concessão”. Essa palavra é proibida! As emissoras escondem que são concessões. Ou então refletia: “Mas não tem um negro nos comerciais?”. Hoje em dia, há sim, mas não naquela época. Logo, eram temas censurados e que despertavam a curiosidade.

Revista Opera: Além de apresentador, você foi ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicações (EBC). Que balanço você faz de cada um dos serviços de radiodifusão pública geridos pela EBC desde a sua criação em 2007?

Lalo Leal: Foi um avanço pelo ineditismo! Nunca houve na história brasileira uma emissora pública e não governamental de caráter nacional. A EBC se baseava nos padrões consagrados internacionalmente do que é uma emissora pública. Ela pôde mostrar que havia, no Brasil e no mundo, outras histórias para serem contadas e outras visões de mundo para serem descritas que não eram incorporadas pela comunicação tradicional, com interesses comerciais. Ela surgiu como uma alternativa, e esse é o mérito dela.

No Brasil, nunca houve a consolidação de uma massa crítica para dar, na sociedade, respaldo à comunicação pública. As pessoas nunca ouviram falar disso, além de alguns poucos anos na década de 1920, quando Roquette-Pinto criou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que era pública – pois era uma sociedade de ouvintes que cotizavam para mantê-la, parecida com o que é a BBC até hoje. Isso rapidamente acabou porque os interesses comerciais perceberam que o rádio era um bom negócio. E se consolidou no Brasil a ideia de que rádio é comércio e, a partir de 1950, a televisão também. Então, você pergunta: “Quem é o dono da televisão?”. É Roberto Marinho, é Sílvio Santos etc. Primeiro, não se sabe o que são concessões públicas e que eles são donos das empresas concessionárias. Então, você não cria uma massa crítica que dê apoio à comunicação pública.

Quando surge a TV Brasil, você expõe essa questão. É claro que recebemos uma avalanche de críticas contrárias – “TV do Lula”, “TV traço”, “TV chapa-branca” -, mas, de qualquer forma, você coloca a existência desse modo de comunicação em debate. A Folha chegou a pedir, em editorial, o fechamento da TV Brasil. Se você coloca no ar algo que ganha um, dois ou três pontos de audiência, esses pontinhos estão saindo de algum lugar. Saem deles! É alguém que mudou de canal. Para eles, isso era um ataque aos seus interesses comerciais.

Estou dizendo tudo isso porque finalmente se instalou no Brasil a ideia de se investir em uma comunicação pública. É aí que entra a crítica que eu faço. Quando houve o golpe de 2016, eu escrevi um artigo em que faço críticas ao fato, por exemplo, de a TV Brasil e as rádios não terem atingido a sociedade como um todo. Investiu-se na estrutura, nos estúdios, contratou gente e tal, mas não se gastou dinheiro nem ação política para colocar o sinal da TV Brasil em todos os domicílios brasileiros. Ela não atendeu um princípio básico da comunicação pública que é a universalidade de acesso. Todo cidadão ou cidadã que paga o imposto que mantém aquele empreendimento tem o direito de receber esse serviço em casa. E a TV Brasil não chegava a São Paulo! Eu costumava brincar que é como se a BBC não entrasse em Londres. Tinha dificuldade de chegar à Asa Norte, em Brasília. Na Baixada Fluminense, nem passar! Só na Zona Sul e Centro do Rio. Como é que você pode ter sustentação política para mantê-la e defendê-la se ela não chega até as pessoas?

Outro problema para enfrentar isso foi o erro de querer criar uma rede nacional a partir de Brasília por meio das emissoras ditas regionais, que, na verdade, são vinculadas aos governos estaduais. E a TV Brasil entendia que elas poderiam formar a rede. Elas estão mais interessadas em falar as coisas dos seus respectivos estados – com razão – e botavam a TV Brasil em alguns poucos momentos. Assim, foram vários os obstáculos para tornar a TV Brasil uma TV de todo o Brasil.

Há outros problemas, como não ter um noticiário jornalístico claramente diferenciado. Não era para fazer propaganda de governo, mas você tem tanta coisa acontecendo no Brasil que não necessita ficar preso às mesmas pautas das emissoras comerciais. Na verdade, o microfone da TV Brasil era, muitas vezes, um microfone em meio aos da Globo, SBT e Record na boca do presidente da Febraban. Você não tinha pautas diferenciadas para falar, por exemplo, dos problemas da agricultura familiar ou da realidade sobre o MST e se contrapor a essa cobertura absurda. E você não precisa de propaganda para fazer isso. Basta fazer bom jornalismo! Basta fazer reportagem! As pautas da Globo, Band e Record já são sempre as mesmas. A TV Brasil não fez isso. Foi fazer cópia das TVs comerciais, com muito menos recursos que elas.

Então, a ideia foi boa e importante, mas a sua implantação não atendeu àquela expectativa de criar uma emissora que concorresse realmente com as comerciais. E não é uma concorrência simplesmente pelo número de pontos de audiência, mas na busca de telespectadores interessados nas visões de mundo de fora da mídia comercial.

Revista Opera: Em 1991, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) apresentou o PL 236, que dispõe sobre a regionalização da programação artística, cultural e jornalística, com percentuais mínimos para a produção local na grade de emissoras de rádio e televisão. Até hoje, esse projeto não foi votado. Quais são os principais motivos para que propostas como essa não avancem?

Lalo Leal: A regionalização mexe com os interesses dos radiodifusores. Esse é o melhor exemplo que você trouxe. São 32 anos desde que a Jandira apresentou esse PL. É uma lei infraconstitucional que coloca em prática o dispositivo que determina a regionalização da produção audiovisual brasileira e produção local. Isso não avança um palmo no Congresso. Muito se fala da bancada da bala, do boi, disso e daquilo, mas existe a bancada da radiodifusão! Uma bancada forte, que está presente desde o golpe contra o presidente João Goulart. Em 1963, houve um projeto de lei apresentado por essa bancada que dava amplos poderes aos radiodifusores. Jango vetou 52 artigos, e a Câmara derrubou os 52 vetos! Dou esse exemplo para mostrar o poderio e a força, que são históricos. Vão mudando os deputados e senadores, mas a bancada continua firme. Foi essa derrubada de vetos que impulsionou a criação da famosa Abert – a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão –, que é a porta-voz dos interesses dos radiodifusores.

Revista Opera: No Brasil, existe uma normalização de programas policiais com cenas explícitas de violência e da transmissão de cultos de televangelistas que promovem charlatanismo religioso. De que maneira é possível questionar a concessão pública a emissoras de rádio e televisão que exibem esses conteúdos, muitas vezes, em horário nobre?

Lalo Leal: São duas agressões à civilização e à ética, e também há questionamentos até jurídicos em relação a esses dois problemas que você levantou: os programas policialescos, que são absurdos, e os canais ocupados por confissões ditas religiosas – muitas delas são meros empreendimentos comerciais. No caso dos programas policialescos, ganharam uma nova dimensão e se remodelaram com o uso de imagens de câmeras privadas com atos de violência. Eles já existem desde a décadas de 1950, mas foram crescendo e ocupando espaços, e aquilo que eu disse sobre o Ratinho serve para isso também: é a busca do público pela violência.

Só que há uma burla jurídica aí, porque esses programas se apresentam como jornalísticos. Por isso, ficam fora de qualquer objeção do ponto de vista do horário. O Ministério da Justiça já estipulou, há algum tempo, certos horários. Não está na lei, tal qual na Venezuela ou no Uruguai, mas, aqui no Brasil, mesmo a coisa sendo bem frouxa, temos algumas horas do dia em que algum tipo de cena pode ser contestado legalmente. Porém, para evitar essa contestação, afirma-se que esses programas são jornalísticos e, portanto, podem passar às 17h ou 18h da tarde, mostrando pessoas sendo assassinadas ao vivo. Uma TV do Ceará chegou a botar até um estupro de uma menina. Clamam pela pena de morte e fazem isso sem nenhum pudor. São uma aberração e prestam um desserviço. Um órgão regulador poderia estar discutindo isso e, no mínimo, colocando tais programas depois da meia-noite. Pelo menos, a gente tem a hipótese de que as crianças poderiam estar dormindo.

Com relação aos ditos religiosos, é outra aberração. Temos concessões outorgadas pelo Estado brasileiro, e o concessionário a recebe para prestar um serviço público – como acontece com a linha de ônibus, a água ou o telefone. Só que o concessionário não usa a concessão, mas a aluga para a igreja. A Band chegou a ter um canal 24 horas locado para essas igrejas. O RR Soares parece estar em duas ou três emissoras. É como se você recebesse um terreno público e locasse para outra pessoa utilizar.

Revista Opera: Em que aspectos a aproximação do governo Bolsonaro com emissoras de televisão, como a Rede Record e o SBT – Fábio Faria, genro de Silvio Santos, foi ministro das Comunicações –, impactou a relação do Estado brasileiro com a radiodifusão?

Lalo Leal: Foi um festival de outorgas a aliados políticos e grupos religiosos. O pouco que vinha sendo construído a duras penas no decorrer de muitos anos – ainda que de forma limitada – e o muito que havia sido discutido, formalizado e apresentado aos governos Lula e Dilma foram destruídos na primeira penada do Temer. Afinal, foram seis anos de tragédia, pois o Temer foi o líder do golpe de 2016. E um dos primeiros atos foi acabar com a independência da EBC. Ele conseguiu acabar com o Conselho Curador da EBC, TV Brasil e das emissoras de rádio e também com o mandato do presidente [da Empresa Brasil de Comunicação], que era de quatro anos. Esse foi o primeiro passo, e depois se seguiram outros que foram se avolumando nesses seis anos.

Dávamos passos tímidos, e agora temos que retomá-los com muito mais dificuldade. Por exemplo, retomar o Conselho Curador da EBC, cuja lei foi derrubada pelo Temer. Como se passa uma lei dessa hoje com a composição que temos no Congresso Nacional? É fundamental que o conselho volte, mas, para isso, vamos ter que enfrentar um Congresso com o qual nós sabemos quantas negociações precisam ser feitas para que seja aprovada uma lei que interesse à sociedade mais ampla.

Revista Opera: Em meados da década de 2000, surgiu um ecossistema midiático formado por blogs de jornalistas, militantes políticos ou movimentos sociais, que ficou conhecido como blogosfera progressista. O próprio Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, do qual você faz parte, congrega esses comunicadores e ativistas. Qual avaliação você faz da importância dessa rede de blogs? E que conquistas práticas esse movimento alcançou?

Lalo Leal: Sem dúvida, é um respiro da sociedade em relação à mídia tradicional do ponto de vista do jornalismo político. Porém, a meu ver, é um respiro que atende os setores mais engajados politicamente da sociedade e com uma dificuldade muito grande de se articular. O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé funciona há 13 anos e tenta, de alguma maneira, integrar – em reuniões, documentos e cursos – esses blogs e sites para que eles ganhem musculatura e possam enfrentar as informações, muitas vezes, distorcidas da mídia comercial.

Só que é pouco em relação ao poder que a grande mídia ainda tem no Brasil. As pesquisas mostram que os brasileiros ainda se informam majoritariamente pela TV aberta. Os sites ainda estão restritos a uma parcela da sociedade. A majoritária está na televisão e, em grande parte, no rádio. Quando eu era ouvidor da EBC, recebia cartas de ouvintes das zonas ribeirinhas da Amazônia dizendo: “Ouvi na Rádio Nacional da Amazônia isso. Por favor, dê a notícias de que o barco X vai chegar no dia tal”. As pessoas dos grandes centros urbanos não têm, às vezes, a noção do que é o Brasil. Então, elas se empolgam com a ideia de que essas tecnologias dão conta de toda essa diversidade.

Esses blogs e sites são uma alternativa, pelo menos, para os grupos mais engajados. Agora, há uma dificuldade grande de eles concorrerem efetivamente com a mídia tradicional. Estão muito voltados para o conteúdo político nacional e internacional. A mídia tradicional está também voltada para isso, mas dentro de um conjunto muito maior de ofertas culturais, como novelas, programas de auditório e futebol. A notícia é o recheio de tudo isso. E sendo recheio, ganha muita força, pois a pessoa está vendo a novela, deixa a TV ligada, vê o Jornal Nacional e vê a outra novela. Então, é uma concorrência difícil, disputando corações e mentes com armas muito díspares. É o que precisa ser pensado nessa guerra de ideias.

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