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A complexa postura da China sobre o conflito israelense-palestino

A China mantém seu histórico de apoio à Palestina, defendendo inclusive o direito à luta armada; por outro lado, é o 2º maior parceiro comercial de Israel
Javier Barroso e Nerea Hernández
As bandeiras da Palestina e da China tremulam no aeroporto de Pequim durante visita de Mahmoud Abbas, presidente da ANP, à China. 13/06/2023. (Foto: N509FZ / Wikicommons)

“Reconhecemos a legitimidade do povo para lutar pela libertação contra a dominação estrangeira e colonial; contra qualquer tipo de subjugação por qualquer meio disponível, inclusive a luta armada. Esse reconhecimento aparece em várias convenções internacionais. A luta armada, quando vinculada à autodeterminação de um território contra operações coloniais, distingue-se do terrorismo, e esse é um direito que emana do direito internacional”. Com essas palavras, Ma Xinmin, representando o Ministério das Relações Exteriores da China, dirigiu-se à Corte Internacional de Justiça em 22 de fevereiro, reconhecendo o direito do povo palestino de exercer a luta armada contra a opressão israelense.

Desde outubro do ano passado, o governo chinês tem mantido uma posição de “neutralidade pró-palestina”. Durante anos, a China fez declarações públicas em nível internacional a favor do direito legítimo do povo palestino de criar um Estado livre e soberano, escolhido pelos próprios palestinos. Essa última nuance é característica da política diplomática chinesa: oposição ao intervencionismo de terceiros. Por outro lado, a Palestina tem uma embaixada “informal” em Sanlitun, o distrito diplomático da capital chinesa. Historicamente, Pequim tem simpatizado com a causa palestina e tem apoiado consistentemente a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) desde a década de 1960. Foi o primeiro país não-árabe a reconhecer a Palestina como um Estado.

Em 1 de janeiro deste ano, o site oficial do Ministério das Relações Exteriores publicou uma declaração detalhando os oito acordos alcançados em uma reunião entre a China e o secretário-geral que representa os sete estados da Liga Árabe. Nesse acordo, é solicitado um “cessar-fogo total e imediato e violações do direito internacional e humanitário; oposição ao deslocamento forçado da população palestina e a criação de um corredor humanitário imediato”. Nos três pontos seguintes, eles afirmam que qualquer acordo de paz deve envolver a Palestina governando seu território, enfatizando a solução de dois Estados, retornando às fronteiras de 1967, e a entrada da Palestina como membro oficial das Nações Unidas em “uma solução que permita a coexistência pacífica dos povos judeu e árabe”.

A posição oficial do governo chinês foi novamente refletida no 14º Congresso Nacional do Povo da China, o mais alto órgão legislativo do país, que ocorreu entre a última semana de fevereiro e a primeira semana de março. O 两会 (liang hui), “Duas Sessões”, é o evento político mais importante da China, que reúne representantes políticos de todas as regiões, em sua maioria homens e com uma presença tímida e simbólica de mulheres. Essas sessões definem a agenda e os principais pontos de ação política para o ano que se inicia na China, depois de terem sido previamente debatidos dentro do Partido.

No contexto das “Duas Sessões”, às 10 horas da manhã do dia 7 de março de 2024, Wang Yi, Ministro das Relações Exteriores e membro do Comitê Central do Partido Comunista, respondeu a perguntas de jornalistas estrangeiros e nacionais em uma coletiva de imprensa. Sobre o conflito israelense-palestino, Wang Yi disse: “Essa rodada do conflito israelense-palestino causou 100 mil vítimas civis, além de inúmeras vidas inocentes enterradas sob os escombros. Não há distinção no valor das vidas e ela não pode ser estabelecida por razões religiosas. Não há um único motivo que justifique a continuidade desse conflito, nem um único motivo que justifique a morte de civis”. Wang Yi também conclamou a comunidade internacional a intervir imediatamente e impor um cessar-fogo como prioridade máxima. “A população de Gaza tem o direito de viver neste mundo, de ser ajudada, assistida e cuidada, todos os detidos devem ser libertados e qualquer ato de alvejar civis deve cessar”, acrescentou durante a coletiva de imprensa.

Para além das palavras: armas e semicondutores

Após analisar os comunicados oficiais, se analisarmos os laços comerciais entre a China e as duas partes do conflito, mudaremos nossa percepção. No caso da China e da Palestina, de acordo com fontes oficiais do governo chinês, o volume do comércio bilateral entre os territórios chegou a 160 milhões de dólares, refletindo um aumento de 23% em relação ao ano anterior. No entanto, quase tudo isso são exportações chinesas. Dados de janeiro a junho de 2023, meses antes do início da última onda de ataques, mostraram um saldo de 90 milhões de dólares. Essas vendas chinesas para a Palestina representam 5% do total de importações para a Palestina e fazem parte da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road), projeto com o qual a potência asiática busca fortalecer suas relações econômicas com diferentes áreas da Ásia, América Latina, Europa e África.

O consultor emérito do Observatório de Política da China, Xulio Ríos, destacou em uma análise de outubro de 2023 que “a China é o principal parceiro comercial de Teerã e a dependência econômica do Irã em relação à China é substancial. Por sua vez, o Irã fornece ajuda financeira, armas, treinamento e apoio tecnológico ao Hamas”.

Se nos voltarmos para as relações econômicas China-Israel, a China é atualmente o segundo maior parceiro comercial do país, com um valor comercial total de 24,5 bilhões de dólares, um aumento de 10% em 2022 em relação ao ano anterior. Em particular, entre 2019 e 2022, o comércio entre os dois países teve uma recuperação significativa, marcando um aumento de 6,41 bilhões de dólares, um crescimento de 57%. Esse aumento ocorreu devido às importações da China. Em 2021, a China ultrapassou os Estados Unidos e se tornou a maior fonte de importações de Israel. E esse aumento, que continua a crescer nos últimos anos, se deve ao desenvolvimento de tecnologia de ponta por ambos.

Dentro desse grande volume de comércio de importação está a DaJiang Innovation Technology, uma empresa que lida com tecnologia militar de ponta. A polícia e as forças de repressão israelenses usam drones vendidos por essa empresa para controle e repressão da população.

A cooperação comercial entre os dois países, que começou com o foco na compra de equipamentos militares israelenses, está mudando para materiais de infraestrutura e tecnologia civil, como semicondutores. O atual papel geopolítico fundamental dos semicondutores coloca as relações econômicas com Israel em um plano delicado, pois as empresas chinesas estão enfrentando o bloqueio e as restrições dos EUA nessa área sensível e crucial.

No geral, há um desequilíbrio ou inconsistência entre os aspectos puramente diplomáticos, que posicionam a China a favor do povo palestino e da solução de dois estados, e os econômicos, em que os laços comerciais com os israelenses são praticamente incomparáveis, de 240 bilhões de dólares e 160 milhões.

Pequenas redes de solidariedade

O jornalista palestino Khaled Abujarad, residente me Pequim, que trabalha para a CCTV+, observa que “tanto o governo chinês quanto o povo chinês mantiveram uma posição firme de apoio à Palestina desde o início”. Ele reconhece que, “embora não atinja o nível de envolvimento do Estado do Iêmen, a China tem mantido uma posição corajosa em comparação com o resto do mundo”.

Abujarad conta que sua família está em Rafah, tentando sobreviver em uma cidade que se tornou uma ratoeira para mais de 1,5 milhão de habitantes de Gaza. Ele admite que vive em um estado de angústia constante e lamenta que não haja nada que possa fazer a respeito. Embora diga que sua família mais próxima está bem, ele não consegue ficar em paz porque “todo o povo palestino é minha família e está sofrendo”.

Abujarad nos conta que vários amigos chineses se dispuseram a doar dinheiro para ajuda humanitária e que ele está facilitando essa corrente de solidariedade por meio de sua conta no Egito.

Além da comunidade palestina em Pequim, que está tentando ajudar seus parentes enviando remessas de dinheiro, os chineses decidiram dar um passo adiante e tentar organizar alguma forma de grupos de ajuda direta ao povo palestino. Na plataforma Zhihu, um fórum semelhante ao Reddit, o mais usado na China, há discussões sobre se é mais importante enviar dinheiro e recursos para os palestinos ou exercer pressão política sobre os israelenses por meio da opinião pública, com milhares de intervenções. O governo chinês também afirma estar enviando ajuda humanitária desde outubro de 2023.

Uma visão das redes

Falar sobre a opinião pública chinesa é problemático, na medida em que estamos falando de 1,4 bilhão de pessoas, mas observando as redes sociais, podemos encontrar algumas opiniões que se destacam nos mecanismos de busca. Dois jornalistas chineses da agência de notícias CCTV+, Lin Xiaoyu e Dong Feng (que nos pediram para alterar seus nomes com o intuito de preservar o anonimato), que estão diariamente em contato com os assuntos correntes nas redes sociais, nos dizem que “a opinião da maioria é de apoio ao povo palestino”.

O apoio é gerado no mundo virtual e inunda as redes sociais. Embora não tenha havido protestos, o posicionamento do público na internet é, em sua maioria, de apoio à Palestina. Se você acessar a rede Douyin (TikTok) e fizer uma pesquisa com palavras-chave sobre o conflito, os vídeos de habitantes de Gaza feridos ou mortos em ataques israelenses, ou de crianças feridas em busca de suas famílias, aparecem imediatamente. Campanhas esporádicas pedindo um boicote aos produtos israelenses também estão sendo organizadas na rede Xiaohongshu.

De acordo com Lin e Dong, “a oposição à agressão israelense em Gaza tem sido muito clara desde o início do conflito nas mídias sociais, onde várias contas publicaram e continuam publicando vídeos com traduções em chinês da barbárie do genocídio em Gaza. Elas também se voltaram para a criação gráfica de solidariedade ao soldado norte-americano imolado Aaron Bushnell. A viralização do vídeo na íntegra de Aaron Bushnell se martirizando criou grande comoção nas redes sociais”.

Além disso, durante o último dia 8 de março, de acordo com o portal de análise marxista chinês Chuang, o coletivo Chinese & Taiwanese Queers & Feminists for Palestine (Queers e Feministas Chineses e Taiwaneses pela Palestina, em tradução literal) publicou um manifesto, que também foi impresso em fanzines e distribuído em algumas cidades, no qual alertava contra as operações de pinkwashing (estratégia de marketing político com base nas liberdades que os grupos LGBTQ+ possuem num determinado lugar) realizado pela propaganda israelense ao apresentar seus massacres como uma libertação para as mulheres. O Bilibili é a principal rede social para assistir vídeos na China. Se digitarmos as palavras Israel e Palestina no mecanismo de busca e procurarmos os vídeos com mais visualizações, que são contabilizados em milhões, descobriremos que são, em sua maioria, vídeos de análise histórica de alguns canais especializados que tentam explicar as raízes do conflito.

Observando os comentários sobre esses vídeos, especialmente aqueles com mais “curtidas”, podemos encontrar dois pontos de vista principais. Primeiro, que Israel deixou de ser vítima para ser agressor. De fato, um dos vídeos usa a figura clássica do matador de dragões que se transforma em um dragão maligno. Não são poucos os que apontam que Israel está se envolvendo nas mesmas práticas genocidas do nazismo. Também encontramos várias mensagens criticando o governo da Autoridade Nacional Palestina (ANP) dentro e fora do território por não apoiar o Hamas de forma mais radical, que geralmente é visto como um grupo guerrilheiro e não um grupo terrorista.

O tom de simpatia pela Palestina é frequentemente associado ao sentimento anticolonialista enraizado no povo chinês por meio da educação e da história da Guerra de Resistência contra o Japão, que não tem sequer um século de existência. O tom de muitas das alusões nas redes pode ser uma reminiscência das declarações oficiais durante a era maoísta, quando o Partido Comunista era muito mais enérgico nesse aspecto.

A reação aos massacres na Palestina também se manifesta como um dos cenários em que a rivalidade geopolítica entre a China e os Estados Unidos, o principal aliado dos israelenses, está sendo representada. Depois que os EUA bloquearam qualquer tipo de ação (usando seu veto em três ocasiões) para interromper os massacres no Conselho de Segurança da ONU, a China foi contundente em sua rejeição a essa ação. Na segunda-feira, 25 de março, quase um mês depois, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jian, declarou que “a China continuará a apoiar o Conselho de Segurança na tomada de medidas responsáveis e significativas”, em referência à resolução apresentada pela Argélia, Guiana, Malta, Moçambique, Serra Leoa, Eslovênia e Suíça – um texto que exigia um cessar-fogo imediato. Outra resolução foi finalmente aprovada, desta vez sem o veto dos EUA.

Como Ríos aponta em outra de suas análises, os ecos da rivalidade EUA-China ressoam nesse conflito. Desde 2022, a China vem sugerindo uma série de propostas de políticas em sua “Estrutura de Segurança Abrangente”, que pretende ser uma alternativa ao aprofundamento da violência e ao aumento da influência dos EUA nas regiões asiáticas.

(*) Tradução de Raul Chiliani

El Salto El Salto é um meio de comunicação social autogerido, horizontal e associativo espanhol.

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