Na imprensa tem havido muita cobertura sobre as demandas do presidente norte-americano Joe Biden de que a China não apoie a invasão da Rússia sobre a Ucrânia. O que tais demandas sugerem é que os Estados Unidos têm a capacidade de punir a China economicamente de uma forma que imponha mais dor a ela do que a nós, estadunidenses. Isso pode ser verdade por enquanto, mas não está claro se será verdade por muito mais tempo – e pode nem se provar verdadeiro no momento.
É comum nos referirmos à China como a segunda maior economia do mundo, atrás dos Estados Unidos. No entanto, se usarmos como medida a paridade do poder de compra, o PIB chinês na verdade já teria passado o PIB dos EUA em 2016. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta que ele será ⅓ maior até 2026, último ano no seu período de projeção.
A medida de paridade do poder de compra, ao contrário da medida de taxa de câmbio mais comumente citada, aplica um conjunto comum de preços para todos os bens e serviços produzidos em ambas as economias. A maioria dos economistas vê na medida de paridade do poder de compra um quadro mais claro da força de uma economia, uma vez que ela mede o que é realmente produzido. A medida da taxa de câmbio pode flutuar enormemente conforme a moeda de um país sobe ou desce nos mercados financeiros. Ela também subestimará o PIB de um país que esteja deliberadamente segurando o valor de sua moeda.
Vale a pena notar que, em termos per capita, a China ainda é muito mais pobre do que os Estados Unidos. Ela tem quase quatro vezes mais pessoas, então seu PIB per capita ainda é inferior a um terço do PIB per capita nos Estados Unidos. No entanto, seu poder econômico no mundo depende mais de seu PIB geral do que de seu PIB per capita.
Isso significa que Biden está efetivamente ameaçando uma economia com um PIB maior que o dos Estados Unidos. Quaisquer grandes sanções econômicas, como uma redução acentuada nas importações, também terão grandes efeitos negativos na economia dos EUA, especialmente no contexto de uma economia que ainda está desfazendo as quebras nas cadeias de suprimentos causadas pela pandemia.
Os Estados Unidos seriam ajudados nesse tipo de confronto pelo fato de que Biden provavelmente pode contar com o apoio de aliados ricos na Europa Ocidental e no Japão, além de bolsões em outras partes do mundo. Somando as economias dos aliados dos EUA, Biden ainda seria capaz de comandar um bloco econômico maior que a China.
Mas é importante lembrar que a China também tem aliados. Essa lista inclui os principais países asiáticos, como Paquistão e Irã, bem como muitos países da África e da América Latina, que se ressentem da maneira como os Estados Unidos e a Europa Ocidental os trataram nos últimos duzentos anos.
Por enquanto, o bloco econômico de Biden é quase certamente maior que o de Xi, mas isso ainda não significa que ele esteja melhor posicionado para impor danos econômicos à China do que o contrário. Pelo que sabemos, Xi não precisa se preocupar com a oposição dentro da China, pelo menos enquanto não estiver enfrentando um colapso econômico completo.
Em contraste, nós podemos ter certeza de que o Partido Republicano se aproveitará de qualquer aumento de preços ou escassez que resulte de quaisquer sanções impostas por Biden ou de respostas chinesas. Os ataques republicanos também seriam apoiados pela maior parte dos veículos de imprensa, que ou os adotariam de boa vontade, ou divulgariam as críticas ao público para que ele decidisse se os problemas econômicos decorreram da má administração econômica de Biden ou de seus esforços de punir a China. Dado que as consequências políticas disso provavelmente resultarão em derrotas nas eleições de 2022 e 2024 para Biden e o Partido Democrata, não está claro se o presidente dos EUA teria a melhor posição em um confronto econômico com a China.
Indo além da invasão russa
Se pudermos imaginar um mundo após a invasão ser resolvida de alguma maneira, os estadunidenses ainda terão grandes escolhas a fazer sobre nosso relacionamento com a China. Há muitos que gostariam de manter uma postura de confronto semelhante à que mantivemos com a União Soviética na Guerra Fria. Essa é uma história que provavelmente não vai acabar bem para os Estados Unidos ou para o mundo.
Como observado acima, a economia da China já é maior do que a economia dos EUA e essa diferença, muito provavelmente, crescerá consideravelmente nas próximas décadas. Isso significa que a perspectiva de que podemos aumentar o investimento em nossas forças armadas e gastos em geral até levar a China à ruína, o que de certa forma fizemos com a União Soviética, simplesmente não é plausível.
Adotando essa perspectiva, é mais provável que sejamos nós os que gastam até chegar à ruína. Precisamos de uma estratégia diferente. Ao invés de uma estratégia de permanente confrontação, deveríamos optar pela cooperação seletiva, na qual trabalhamos com a China onde houver interesses comuns.
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As áreas mais óbvias onde há interesses comuns são a mudança climática e a saúde. Os EUA, a China e todo o mundo se beneficiariam de pesquisas abertas e compartilhadas nessas áreas, de forma que o mundo pudesse rapidamente adotar as inovações, seja lá quais forem.
Isso implicaria em algum tipo de acordo internacional que comprometesse fundos para as pesquisas, baseados no tamanho e riqueza dos países. Os detalhes de tal acordo seriam controversos, mas aqueles que falharam nas negociações sobre a Parceria Trans-Pacífico (TPP) e outros acordos comerciais sabem que as negociações sobre o atual sistema de regras de propriedade intelectual também são muito controversas.
Haveria enormes benefícios em ter todas as novas tecnologias climáticas transferidas a custo zero, sem as margens para monopólios de patentes concedidos pelo governo ou proteções relacionadas. Isso aceleraria enormemente o ritmo em que a energia limpa e os carros elétricos são adotados.
O caso é semelhante com as tecnologias médicas. Sem monopólios concedidos pelo governo, quase todos os medicamentos, vacinas e equipamentos médicos seriam baratos.[1] Eles se tornariam acessíveis a todos, exceto àqueles mais pobres, e atender às necessidades dos pobres se tornaria uma tarefa viável para as organizações internacionais humanitárias.
Protegendo a “nossa” propriedade intelectual
Quando proponho esse caminho para lidar com a China, quase invariavelmente me deparo com a reclamação de que estamos cedendo nossa propriedade intelectual. Isso indica uma confusão muito séria sobre o tema.
A propriedade intelectual em questão não pertence a nenhum “nós”, pertence a Bill Gates, Pfizer e Moderna, e ela criou pelo menos cinco bilionários desde o início da pandemia. Na verdade, nosso sistema de patentes e direitos autorais tem sido uma das principais causas do crescimento da desigualdade nas últimas quatro décadas.
Seria incrivelmente tolo, de uma perspectiva progressista, que enfrentássemos a China para proteger esse sistema antiquado e injusto. Estranhamente, em vez de contestar as regras de propriedade intelectual que aumentam a desigualdade, muitos estão buscando recuperar os empregos industriais que foram perdidos para o comércio com a China e outros países nas últimas décadas.
Essa estratégia é bizarra porque ignora as mudanças na qualidade dos empregos industriais durante esse período, em grande parte devido ao comércio. Quatro décadas atrás, a manufatura era um setor fortemente sindicalizado nos Estados Unidos. Como resultado, os empregos na manufatura pagavam consideravelmente mais do que os empregos em outras áreas.
Isso não é mais verdade nos EUA. A taxa de sindicalização na manufatura é apenas ligeiramente superior à taxa de sindicalização no setor privado como um todo. O prêmio salarial na manufatura praticamente desapareceu.
Se os progressistas adotarem um caminho de confronto com a China, que tenha a proteção da propriedade intelectual como seu centro, em troca de alguns empregos na manufatura que não serão especialmente bons, seria um verdadeiro caso de perde-perde para quem se preocupa com a desigualdade e a paz. Realmente não deveríamos seguir esse caminho. É importante que possamos ter uma discussão séria sobre essas questões agora.