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O golpe não passou, mas o golpismo não é passado

O legado mais importante do indiciamento da PF não seria a prisão de Bolsonaro e generais, mas sim uma discussão franca sobre se devemos confiar em nossas Forças Armadas
Pedro Marin
19.04.2024 – Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia do Dia do Exército, no Quartel-General do Exército. Brasília – DF. (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

O relatório final da Polícia Federal, que indicia 37 pessoas envolvidas em planos golpistas no contexto das eleições de 2022, finalmente silencia aqueles que tão insistentemente buscavam e buscam negar a viabilidade de um golpe no Brasil “nos dias de hoje”.

Nesta Revista Opera, temos sido ativos, já há muito tempo, na denúncia do retorno do Partido Fardado à cena política brasileira, e sempre insistimos, batendo-nos com os negacionistas vários, que um golpe era uma possibilidade real e viável. Após as revelações da PF, resta aos negacionistas dizer que caso o golpe tivesse avançado, não se manteria no “dia seguinte”, pois ele se traduziria num forte isolamento ao Brasil; ou dizer que a “aventura” só foi planejada por uns poucos militares individuais, e que não encontrou eco nas Forças Armadas como um todo. Mais perigosos, no entanto, são os que atribuem aos comandantes do Exército e da Aeronáutica a derrota do golpe. Não bastando se negarem a aprender com a longa trajetória histórica brasileira, se negam também a aprender com as notícias do dia: alguns chegam a dizer que tratou-se do golpe “mais anunciado da história”, omitindo de suas colunas correntes que, nas do passado, negaram-no abertamente.

A investigação da PF, no entanto, não deixa pedra sobre pedra: planejou-se, com um certo esmero, um golpe no Brasil; e dele escapamos por pouco.

No inquérito da PF há, entre os 37 indiciados, 25 militares. Destes, sete são coronéis – máximo nível hierárquico dentre os oficiais superiores, abaixo dos generais – sete são generais, e quatro generais de exército – isto é, os chamados quatro estrelas,  que tiveram passagem pelo Alto-Comando das Forças Armadas ou dele faziam parte na época em que a conspiração avançava. Se foram “desvios individuais”, maçãs podres, há de se perguntar: por que tantas, em tão relevantes posições?  Por que uma árvore supostamente saudável – as Forças Armadas – dá frutos podres com tanta profusão? Separar mãe do filho, CPFs do CNPJ, é dizer ao Brasil que se contente com a esperança de que de tal árvore, que rendeu tais frutos, nasçam, no futuro, somente frutos bons. Será possível, sem mexer a terra e realizar algumas extensas podas? Nesse tipo de metafísica não cremos, inclusive porque os coronéis e generais indiciados, ao longo de suas décadas de serviço funcional normal – antes de serem revelados como golpistas –, formaram centenas de outros militares; e os que tiveram passagem pelo Alto-Comando inclusive incidiram nas promoções de vários oficiais. Os “CPFs” que hoje estão na mira da Justiça não foram só moldados pelas Forças Armadas; moldaram-nas também, é bom recordar. Neste sentido, talvez a figura mais relevante seja a de Braga Netto. Se efetivamente processado como golpista – haveremos de ver quantos militares serão mantidos na denúncia do Procurador Geral da República, Paulo Gonet –, seus anos à frente da intervenção militar no Rio de Janeiro, em 2018, sob a qual a vereadora Marielle Franco foi assassinada, deveriam também ser investigados.

Nas explicações sobre porque o golpe não triunfou, têm-se apontado à recusa, por uma parte do Alto-Comando, e especialmente do então comandante do Exército, Freire Gomes, a embarcar na conspiração. Assim, um golpe gestado nas entranhas das Forças Armadas – mas por militares individuais – teria sido impedido pelas Forças Armadas como organização. Há algumas lacunas na tese por explicar: primeiro, porque o relatório da PF demonstra – como já era óbvio – que havia contato operacional entre os fardados e os acampamentos golpistas nos quartéis de todo o Brasil. E, como temos insistido aqui, as Forças Armadas em conjunto – Exército, Marinha e Aeronáutica – trabalharam ativamente para manter de pé os acampamentos, um dos elementos da trama golpista, inclusive emitindo nota conjunta em sua defesa; nota essa assinada pelos comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, ambos hoje apontados como fator de dissuasão da trama golpista. Quanto a estas figuras, cabe perguntar ainda porque mantiveram-se em silêncio não só durante os planejamentos golpistas, mas também após eles, quando um novo governo já havia sido empossado: não consta até o momento que tenha sido dos comandantes “legalistas” que nasceu a investigação da PF, afinal, mas sim de um tenente-coronel golpista, Mauro Cid – filho, por sua vez, do general Mauro Lorena, que também auxiliou os acampamentos golpistas, embora não conste na lista de indiciados da PF.

Ora, é óbvio que se os comandantes do Exército e da Aeronáutica tivessem dado seu apoio decidido ao golpe, como o fez o da Marinha, este teria triunfado. Atribuir a derrota do golpe a tal recusa é equivalente a dizer que um apostador não venceu na roleta porque os números certos não vieram, ou que um determinado time venceu a partida porque fez mais gols. No golpe, o silêncio é a mais conveniente das posições, porque permite àquele que o guarda beneficiar-se de qualquer resultado: se os golpistas avançam, já é valoroso ao golpismo a sua inércia; se são derrotados, tal inércia pode ser justificada como uma postura democrática. Uma coisa é não se comprometer com o golpe; outra coisa é comprometer-se em combatê-lo.

Fica cada vez mais evidente que a questão chave, também já levantada por este articulista há muito tempo, é se estes comandantes ditos legalistas, que guardaram silêncio quanto à conspiração e que se pronunciaram oficialmente pela manutenção dos acampamentos golpistas, ordenariam ações efetivas, de fogo, contra um eventual golpe movido por outros setores das Forças Armadas. Não levanto a questão por princípio, nem por necessariamente desejar ver Freire Gomes ou Baptista Júnior atrás das grades: minha preocupação é futura. Se os eventos que a PF revela voltassem a se repetir, mas com algum militar, isoladamente, tendo a audácia de tomar a iniciativa – como fez Mourão Filho em 1964 – os únicos instrumentos capazes de impedir o golpismo seriam, hoje, as Forças Armadas. Por acaso falam sério os que garantem que a maioria dos militares são perfeitamente legalistas e democratas? Os mesmos que se calam quanto a alguns crimes, como o planejamento de golpes, mas se pronunciam favoravelmente a outros, correlatos àqueles, como a manutenção dos acampamentos golpistas?

Evidentemente, o golpista trabalha, em alguma medida, com a racionalidade. O golpe não é um movimento de força. Buscará, tanto quanto possível, os apoios que garantam sua vitória. Mas é esdrúxulo supor que um golpe só é movido com a concordância absoluta da hierarquia militar, que o golpe é sempre um ato com vitória previamente garantida: é pensar o golpe, por excelência a quebra da normalidade, a partir da lógica da normalidade. O golpe não é um movimento de força, mas é fundamentalmente um movimento de força. E à medida que a força se move, a racionalidade habitual da política se altera.

Por outro lado, há a tão repetida versão de que um golpe significaria um amplo isolamento do Brasil no cenário internacional. De fato, é provável que isso ocorresse, ao menos parcial e transitoriamente. O problema, também já apontado aqui, é que os que insistem nessa tese parecem supor que o objetivo de um golpe é necessariamente levar a um governo de exceção permanente, quando de fato há diversas opções na mesa, do chamamento de novas eleições à formação de um governo transitório civil associado aos golpistas, passando inclusive pela fórmula da junta militar aberta.

De fato, se os planos de assassinar Lula e Alckmin frutificassem, o melhor que poderíamos esperar seriam novas eleições. Há de se recordar, ainda, que assim como um golpe adapta suas fórmulas posteriores à conjuntura, também a conjuntura muda, na medida em que os atores adaptam-se à situação de facto: a não ser que o governo Biden estivesse disposto a remover os golpistas à unha – e neste caso haveríamos de perguntar quem os militares yankees poriam no seu lugar, e se tal solução efetivamente seria positiva ao povo brasileiro –, bastaria aos golpistas resistir durante dois anos no governo para poderem contar com o beneplácito de Trump. Pode parecer absurdo para os apegados à “tara normalista”, mas o golpe boliviano de 2019 nos dá lições nesse sentido: embora o elemento militar tenha sido chave para o golpe bem-sucedido, foi uma civil, Jeanine Añez, quem assumiu a presidência. Seu governo, que teve um ano de duração, foi derrotado pela ampla mobilização do povo boliviano, não pela “pressão externa” – de fato, tanto os EUA quanto a OEA colaboraram ativamente para este golpe.

Por fim, mesmo com a PF revelando como o elemento militar era fundamental para qualquer iniciativa golpista, ainda há um apego desproporcional à figura de Bolsonaro. Insistimos muito na ideia de que Bolsonaro era tão somente um totem, que o elemento central de seu governo eram os militares, e isso, de novo, demonstra a investigação da PF: em um dos planos, os generais Augusto Heleno e Braga Netto comandariam um “gabinete de crise” pós-golpe.

O golpe não passou, aparentemente porque se acovardaram aqueles que poderiam movê- lo – de Bolsonaro aos tenentes-coronéis destacados para neutralizar Alexandre de Moraes. É evidente que a posição dos EUA, a eventual não-adesão dos comandantes do Exército e da Marinha, e o fato de que os beneficiários últimos do golpe seriam os fardados, e de que tais benefícios seriam inclusive fator de luta entre eles, foram elementos a colaborar com a derrota do golpe. Mas resta perguntar: e se um só não tivesse se acovardado? E se uma audaciosa ação individual tivesse posto fim à vida de Moraes, Lula ou Alckmin? E se um dos generais, mesmo sem a anuência aberta de seus companheiros, decidisse mover tropas? Neste caso, a única coisa à disposição para parar os golpistas seria um tal espírito democrático dentro das Forças Armadas que dispusesse aos comandantes e às tropas impedir, com sangue e fogo, próprio e de outros militares, o golpe. Tal espírito parece incompatível com Forças Armadas que se negam a discutir mudanças; com um ministro da Defesa que tudo faz para afastar a “suspeição” de Forças Armadas mais que suspeitas; com um presidente que, embora alvo de militares, com meios tão diversos quanto explosivos e envenenamento, impõe o silêncio não só sobre o golpismo passado, quando bloqueia discussões sobre 1964, mas também sobre o presente.

O legado mais importante do indiciamento da PF não seria a prisão de Bolsonaro e alguns generais, mas sim uma discussão franca sobre se podemos confiar, como povo, nas Forças Armadas que temos, e na adoção das medidas necessárias para criar as Forças desejadas. Seguir dependendo da covardia de muitos e do meio-oposicionismo silencioso de poucos para impedir golpes militares no Brasil é manter o golpismo vivo: uma hora alguém não se acovardará, e muitos não respeitarão sequer o silêncio.

​​(*) Pedro Marin é fundador e editor-chefe da Revista Opera. É editor de Opinião de Opera Mundi, autor de “Aproximações sucessivas – O Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III”, “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016”, e co-autor de “Carta no Coturno – a volta do Partido Fardado no Brasil”.

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