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Sejamos claros: Bolsonaro não reconheceu sua derrota

Sem reconhecer resultados, Bolsonaro é amparado por lunáticos nas ruas e auxilia no processo de tutela militar.
Sem reconhecer resultados, Bolsonaro é amparado por lunáticos nas ruas e auxilia no processo de tutela militar. Por Pedro Marin | Revista Opera
Presidente Jair Bolsonaro, acompanhado de vários ministros, fala com a imprensa no Palácio da Alvorada. (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil)

Após dois dias em silêncio desde sua derrota nas eleições do último domingo (30), o homúnculo que todavia preside o País, Jair Bolsonaro, finalmente se pronunciou. Reuniu sua coragem a partir da pressão de aliados da política e do chamado “mundo empresarial” – demonstrando que sua valentia moral, mesmo para o mais funesto, só pode se expressar sob coação, tal qual um rato só revida quando colocado contra a parede. Valdemar Costa Neto, presidente do PL, prometeu ao presidente que o partido pagará suas contas daqui para frente, para que nas eleições municipais de 2024 ajude a eleger prefeitos da legenda e abra caminho para uma próxima tentativa ao Executivo Nacional em 2026, segundo informa a imprensa. Típico, para um homem cuja fortuna foi feita por negociatas escusas feitas no baixo clero da política. Já o mundo empresarial, o agronegócio, os atacadistas e distribuidores, considerando-se beneficiados pela política econômica de Paulo Guedes, que jogou 33 milhões de brasileiros na fome, deram-se conta dos riscos que as vaidades do homúnculo em questão podem representar para seus negócios, e pediram um basta aos bloqueios de estradas e rodovias.

O presidente saiu de seu casulo e pronunciou palavras por dois minutos. Agradeceu seus 58 milhões de votos. Chamou as gangues de lunáticos que bloqueiam estradas de “movimentos populares”. Disse que a ação dos grupelhos são “fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu as últimas eleições”. Se indignam e se sentem injustiçados não pela forma das eleições, mas pelos resultados. Os que se fantasiam de verde-e-amarelo em defesa de um candidato que entrega Alcântara aos americanos e bate continência para a bandeira estrangeira sentiam-se, afinal, donos do País. A indignação é com o fato das urnas dizerem que não são; o sentimento de injustiça é o de um dono de escravos constatando que sua “mercadoria” fugiu. O leitor pode achar que exagero: mas não diz tudo a reação arquetípica da empresária que, em toda sua frustração, ataca o Nordeste e os nordestinos de frente a uma piscina adornada pela bandeira brasileira? “Parabéns bando de passa-fome do Nordeste”, disse, antes de tudo, a minúscula Eliziane Santos Neves. Passa-se fome no Nordeste hoje, realmente. Também no Sudeste, no Sul, no Norte e no Centro-Oeste. A congratulação cabe ao presidente e seu governo; esta é sua obra. Se o Nordeste é culpado de algo, o é por identificar com clareza seu inimigo; o que é virtude, não vício. Tal qual a maioria do povo brasileiro, de norte a sul, o fez. “Vai depender de Bolsa Família para o resto da vida. Vocês gostam sabe de quê? De esmola. Vocês não gostam de carteira de trabalho. Vocês não gostam de trabalhar, não, desgraça”, completou a eleitora do presidente que tentou fazer campanha em cima do “Auxílio Brasil”, de uma tal “Carteira Verde-Amarela”, e que expandiu o desemprego no País. Não o reelegendo, os nordestinos, assim como a maioria do povo brasileiro, demonstraram precisamente o oposto: que não gostam de esmola, e sim de trabalho. Afinal, não venderam seu voto ao homúnculo, tal qual Eliziane e seu candidato, do alto de seu sentimentalismo escravista, desejavam que fizessem.

Voltando ao pronunciamento do presidente, documento de mesma grandeza que o homem: disse ainda que “manifestações pacíficas serão bem vindas, mas os nosso métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicou a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir”. É uma declaração interessante, vinda de figura que, no governo, patrocinou a invasão de terras indígenas e a devastação das florestas, e que, nos discursos, exibe de fato uma grande consciência moral quanto aos métodos na política: são “metralhar a petralhada”, mandar os comunistas “para a ponta da praia”. Seu herói, Ustra, ficou conhecido por práticas como colocar ratos nas vaginas de mulheres ou espancá-las em frente de seus filhos durante suas sessões de tortura. Serão esses os métodos da direita?

Disse, por fim: “Mesmo enfrentando todo o sistema superamos a pandemia e as consequências de uma guerra, sempre fui rotulado de antidemocrático e ao contrário dos meus acusadores sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Enquanto presidente da República e cidadão continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição.” Se por “sistema” o presidentículo se refere à estrutura que, a despeito dele, buscou dar resposta à pandemia, de fato houve enfrentamento. Não é de se espantar outra figura arquetípica, talvez o contrário absoluto da empresária xenófoba, de que ouvi falar: uma enfermeira da região metropolitana de São Paulo, mulher simples, que pranteou longamente com os resultados das urnas no domingo, dizendo que “nunca perdoaria Bolsonaro” por ter imitado pacientes morrendo sem ar durante a pandemia. Emocionada, lembrou das pessoas que viu morrer, e pôde ainda balbuciar em meio ao choro algo como “eu estou bem, o Lula não precisa me ajudar não, não quero que me ajude. Se ele realmente ajudar o povo que está com fome eu já vou ficar feliz”. Se por “superação” Bolsonaro se refere aos 700 mil corpos que empilhou, de fato houve superação – centenas de milhares “superaram” a vida, tal qual os testemunhados pela enfermeira. Finalmente, se por “consequências de uma guerra” o presidente se refere aos últimos oito meses desde que a guerra começou na Ucrânia, ele de fato teve que lidar com elas – só resta explicar a tragédia que, em paz, impôs ao País nos três anos anteriores. Bolsonaro jogou de fato “dentro das quatro linhas da Constituição”: de lá, de dentro delas, tentou continuamente corroê-las e desfiá-las.

Quanto aos bloqueios, este articulista, que não é legalista, não pode dizer simplesmente que são criminosos. Isso a lei já o diz, e aparentemente somente a PRF e um punhado de governadores não perceberam. Se não vamos avaliar os atos simplesmente pela lente da legalidade, devemos os avaliar pelas lentes da ética, da moral e da estratégia. Comecemos pelo objeto: a turba em questão não bloqueia rodovias em busca de reivindicações salariais, para impedir a aprovação de uma lei que consideram injusta, para reivindicar casas. As bloqueiam porque, tal qual meninos mimados, foram derrotados nas eleições e não querem reconhecê-lo. A legitimidade de sua reivindicação é tanta quanto a da criança que exige vencer os outros para que todos possam jogar com sua bola. Caso contrário, a leva de volta para casa. Avancemos para a forma: os abobados querem bloquear estradas. Bloquear estradas exige uma certa disposição à imposição do bloqueio por todos os meios necessários; uma coragem física. No entanto, mesmo com o apoio da Polícia Rodoviária Federal, os lunáticos não demonstram tal coragem quando trabalhadores, torcedores ou policiais os enfrentam. Pelo contrário, fogem como ratos, desfazem suas barricadas e apelam à misericórdia, ajoelhando-se no chão. Na rodovia Castelo Branco, em São Paulo, uma demonstração total da valentia: os pais colocaram suas crianças em frente ao bloqueio para tentar impedir uma ação policial. Se escudam nos filhos, que sequer votar podem, para protestar contra os resultados das urnas. Por fim, unamos a forma à estratégia: se bloquear rodovias é – ou melhor, deveria ser – coisa de bravos, é de se supor que a estratégia para a realização da reivindicação em questão seja audaz. São revolucionários? Não. O caso da turba é que bloqueiam rodovias para pedir que as Forças Armadas dêem um golpe. É dizer: não querem jogar-se numa guerra irregular, combater numa guerra civil, estruturar uma rede clandestina de sabotagem; querem esmolar para que soldados voltem seus fuzis contra o resto do País. Mais do que criminosos pela lente da lei, sua ética é a do mau perdedor, sua estratégia é a covardia e sua moral é frouxa. Não impressiona que chamem de “mito” um tal líder.

Por fim, ao que importa: o pronunciamento. A íntegra dele foi reproduzida neste artigo, e como o leitor poderá notar, não há, em nenhum momento, o reconhecimento da derrota. Que o presidente tenha agradecido seus 58 milhões de votos não implica em dizer que estes foram todos os votos que mereceria, ou que o candidato vencedor tenha tido todos os votos que a urna acusa.

Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu enquadrar o pronunciamento desta forma “otimista”, forçando a mão e a interpretação para que o presidente se adeque. Se adequou, é claro, porque é um covarde. Mas, tal qual um covarde, deixou uma porta aberta para, à frente, dizer que “não foi bem assim”. Aqui temos de apurar nossa memória um pouco.

No ano passado, durante meses, Bolsonaro e os generais insistiram na necessidade das Forças Armadas participarem da Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os juízes e a imprensa, por meses, demonstraram resistência à ideia. Por fim, o ministro Barroso decidiu afrouxar frente à insistência e acolher o pedido, a princípio imaginando que, assim, poria fim à fabricação de suspeitas sobre as urnas. Concedeu, mas não a contraparte: pelo contrário, Bolsonaro e o Partido Fardado só aumentaram o tom.

Antes do 7 de setembro deste ano, por semanas a imprensa se pôs a discutir um suposto plano do presidente de realizar as comemorações da Independência com a presença das Forças Armadas não no centro do Rio de Janeiro, como de costume, mas em Copacabana, onde o presidente falaria a seus apoiadores. Após alguns dias, a imprensa passou a dizer, citando generais e prefeitos, que tal ideia não se concretizaria. A poucos dias do 7 de setembro, passaram a noticiar no entanto que haveria participação das Forças Armadas em Copacabana, mas que isso não constituiria o desfile que o presidente planejava. Sejamos claros: o desfile, no fim, ocorreu.

O mesmo padrão se repetiu quanto à apuração paralela dos resultados eleitorais. Possibilitada pela concessão anterior de Barroso, a ideia teve ampla rejeição da imprensa e dos juízes. Por fim, surgiu um plano dos militares, que insistiram em fazê-lo, e aquela mesma imprensa passou a dar mil-e-uma justificativas para não chamá-la de “apuração paralela”. Sejamos claros, como exigi então: foi uma apuração paralela.

Ou, melhor: é uma apuração paralela. É ainda porque, após o primeiro turno, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, deu 48 horas para que o ministro da Defesa informasse ao tribunal o que afinal os fardados apuraram. Ocorre que o ministro da Defesa respondeu que só o faria depois que todos os oito passos de sua apuração fossem cumpridos. Fixou nova data: a partir do dia 5 de janeiro, quatro dias após a posse do novo presidente, poderia entregar “em até 30 dias” o relatório final. Ou seja: além de fazerem apurações paralelas que passam a não serem chamadas pelo nome, os fardados fixam seus próprios métodos, e impõem suas datas ao presidente do TSE.

Até lá, eles terão esta carta na manga, ou no coturno, para negociar os termos da transição – quem será o próximo ministro da Defesa, o que pode e o que não pode ser feito sobre o artigo 142, o currículo militar, as promoções e os vencimentos dos fardados. Poderiam, afinal, em qualquer dia, declarar que encontraram uma “fraude” durante sua apuração. A estupidez dos que bloqueiam estradas, bem como o não-reconhecimento explícito do resultado das eleições pelo presidente, auxiliam a mão desses generais que sentam-se a negociar, mas sempre em seus próprios termos. Também o faz, ainda que com a melhor das intenções, todo aquele que não diz as coisas com clareza.

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